Clamor público

Os vizinhos ficaram em polvorosa. O bairro pacato e de gente de bem não estava acostumado a incidentes como aquele. Logo que ouviram os tiros, chamaram a polícia, mas não puderam ver o momento em que o homem foi levado para a delegacia. A cena do crime foi isolada, e dela também ninguém pôde se aproximar. Nada disto, no entanto, arrefeceu o espírito cívico daquela gente, obcecada por justiça. As associações de bairro logo organizaram uma manifestação na frente do prédio. Vizinhos colocaram faixas na janela com dizeres: “Abaixo a impunidade”, “Chega de violência”, “10 medidas contra a corrupção, já”, “Moro presidente”. Os restaurantes enxergaram no incidente uma boa jogada de marketing. Garantiram descontos para quem viesse comer com a camiseta “Quero meu bairro de volta”.

No dia seguinte, algumas pessoas começaram a ser chamadas para depor. A polícia principiou pelo presidente da principal associação de moradores. Ele não havia presenciado o ocorrido, mas deu um testemunho valoroso e muito detalhado sobre o clamor público que o crime provocou.

Alguns vizinhos que também não viram nada, muito menos a cena do crime, prestaram seu compromisso cívico e compareceram espontaneamente na delegacia para contar aos policiais um pouco sobre a personalidade do acusado. Esquisito, estranho, ameaçador, foram alguns dos adjetivos usados. Um dos vizinhos, médico psiquiatra, ousou ir um pouco além. “Por trás daquele olhar manso, pacato e gentil, sempre desconfiei que havia um psicopata”.

A personalidade do réu e o clamor público atestado pelas testemunhas foram os principais fundamentos da prisão decretada no dia seguinte.

O advogado chamado para atender a ocorrência quase que não aceita o patrocínio da causa. Sua esposa estava revoltada, como toda gente. Conseguiu com ela um alvará pelo menos para examinar os autos. Foi ao fórum e conseguiu vista. O laudo necroscópico já estava anexado. Descrevia um roedor de 8,8 cm, cor parda acinzentada, pesando 19 g. A causa da morte: hemorragia interna causada por instrumento perfuro-contundente. A vítima era um rato. Fora morto cruelmente com um tiro no estômago. O advogado se desiludiu. Já havia precedente no STJ para caso idêntico. Era causa perdida.

Genocídio?

Galvanizado pelas oitivas e resultados da CPI da Covid no Senado Federal, há um intenso debate em torno da caracterização de prática de genocídio no Brasil durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro.

É preciso ter sempre em mente que a vontade de punir muitas vezes se sobrepõe à racionalidade jurídica, a qual deve pautar os debates em torno dos enquadramentos de condutas de qualquer cidadão, inclusive do presidente da República, um dos fundamentos basilares do Estado de Direito.

Quem primeiro usou o termo genocídio foi Raphael Lemkin, advogado polonês de origem judaica, que emigrou para os Estados Unidos em 1941. Lemkin fez uso do termo não para tratar dos crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial, mas para falar do genocídio armênio. Em 1945, o especialista travou uma enorme batalha para que o crime de genocídio fosse incluído entre as acusações do Tribunal de Nuremberg. Finalmente, em 1946, a Convenção das Nações Unidas cria o crime de genocídio como um crime internacional. No Brasil, é incorporado ao direito penal por meio de lei em 1956.

A definição de genocídio é uma só: a tentativa ou a consumação de atos tendentes a exterminar, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, religioso ou racial. Bolsonaro já demonstrou inúmeras vezes ​—como no fatídico episódio na Hebraica do Rio de Janeiro, em 2018— desapreço por indígenas e quilombolas, mas seus atos enquanto presidente não têm sustentação jurídica como crime de genocídio.

Por mais tentadora que seja a vontade de incriminação, no trágico caso do Brasil, cuja política negacionista e obscurantista adotada pelo governo federal vitimou mais de 600 mil pessoas, não se verificam as elementares típicas de um crime de genocídio.

Apesar do evidente e maior impacto em grupos vulneráveis, como comunidades indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas e periféricas das metrópoles, além, é claro, dos chamados grupos de risco, idosos e pessoas com comorbidades, não se pode afirmar que esta foi uma política empregada com propósitos de extermínio de raça, de grupos religiosos, étnicos ou raciais.

Ela foi muito além. Trata-se de uma política ampla e generalizada de adoção da tese de imunidade de rebanho contra toda a população.

Não por outro motivo, o relatório da CPI indiciou o presidente por diversos crimes, inclusive crime contra a humanidade, mas não por genocídio. Dois juristas insuspeitos também repelem o termo genocídio para definir a conduta do presidente, como Sylvia Steiner, primeira brasileira a ocupar o cargo de juíza no TPI (Tribunal Penal Internacional), e Luciano Mariz Maia, procurador da República responsável pela primeira condenação de genocídio no Brasil.

Só é crime o que está na lei. O direito penal não deve ser utilizado com uma sanha punitivista e arbitrária, pois, dessa forma, como nas parábolas literárias, acabamos nos assemelhando ao que pretendemos combater.

Bolso-nazismo

O anti-judaísmo é uma das formas mais longevas de discriminação religiosa, racial e étnica. Atravessa ao menos dois milênios de história.

​Na alta Idade Média se manifestou sob a forma de perseguição religiosa, e o deicídio (com judeus acusados de matar Cristo) era motivação para a explosão de ódio e violência contra comunidades judaicas na Europa. Mais tarde, na baixa Idade Média, os judeus europeus eram vítimas de falsas acusações e fake news, acusados de praticar bruxaria, matar crianças e causar a peste.

Na modernidade, surgiram os estereótipos socioeconômicos relacionando a comunidade a estigmas como “avarentos” e “dinheiristas”. Os judeus foram colocados como protagonistas de uma conspiração internacional, homogênese perversa, que intencionava, nessa perspectiva, degenerar e corromper a humanidade. É a transformação do anti-judaísmo tradicional no antissemitismo moderno.

Já no século 19, a figura do judeu passa a ser o estrangeiro, o diferente, o apátrida traidor. O caso Dreyfus é o início simbólico desse antissemitismo moderno. O capitão judeu do exército francês passa a incorporar todos os valores racistas e preconceituosos do antissemitismo: é um traidor por ser um judeu. Degenera e coloca em risco o Estado francês por ser judeu, ou seja, é membro de uma conspiração internacional.

Nessa toada surge o livro “Protocolos dos Sábios de Sião”, ou “Os Protocolos de Sião”, um texto antissemita que tenta justificar todas as tragédias do mundo como sendo produtos de uma conspiração judaica para dominar todos os países e governos.

Não é casual que Adolph Hitler tenha bebido nessa fonte para escrever “Minha Luta”, livro embrião do regime nazista, que toma o poder na Alemanha de 1930 e que acaba produzindo, ao fim e ao cabo, o genocídio de milhões de judeus e outros grupos considerados minorias na Europa —e cujo símbolo maior foram os campos de extermínio.

Em um mundo ideal, um judeu jamais poderia apoiar líderes políticos que pregam alguma forma de xenofobia, discriminação, desrespeito ou intolerância com outros povos. A mera lembrança do genocídio, porém, não é suficiente para educar politicamente os descendentes de suas vítimas.

Quando Jair Bolsonaro esteve no clube Hebraica do Rio de Janeiro e comparou quilombolas a gado gordo, ele estava efetivamente reproduzindo um pensamento racista —mas alguns preferiram relevar. Quando o secretário da Cultura gravou um vídeo emulando Joseph Goebbels, tampouco despertou a ira ou a revolta daqueles que queriam enxergar Bolsonaro como o amiguinho dos judeus e de Israel. O presidente, no passado, já havia feito elogios a Hitler. Mas isso também não foi grave o suficiente para encará-lo como um líder racista e antissemita.

A oposição da esquerda internacional a Israel contribuiu para que parcela da comunidade judaica buscasse refúgio na extrema direita. Ledo e grave engano.

A extrema direita polonesa e húngara e os supremacistas americanos —parceiros ideológicos do bolsonarismo— não escondem seu ódio aos judeus. Idolatram uma Israel branca e cristã, a Israel imaginária, enquanto que, de outro, não toleram o estranho, o diferente, o estrangeiro —em suma, o judeu histórico. Criam um judeu para chamar de seu, enquanto continuam a acreditar nas teses supremacistas e conspiratórias típicas do antissemitismo e do racismo estrutural.

A visita de deputada de um partido de extrema direita alemão a Bolsonaro nos fez lembrar disso. Posições xenófobas e que relativizam o Holocausto não podem ser toleradas. Judeus e não judeus devem entender os vínculos ideológicos do bolsonarismo com o nazismo.

Eles nunca foram ocultos, mas hoje estão mais claros do que nunca, sorridentes e saindo do armário para os braços de uma deputada neonazista. Só não vê quem não quer.

Foro privilegiado às avessas

julgamento de Lula no Supremo Tribunal Federal tem suscitado muitas controvérsias. Sergio Moro é suspeito? Curitiba era ou não competente para julgá-lo? Estas são questões jurisdicionais que apenas o STF, em última instância, pode resolver.

Há, no entanto, outras questões envolvendo o caso, que já não dizem respeito apenas ao caso concreto, mas ao funcionamento da própria Justiça penal.

Achar que o plenário pode resolver qualquer coisa é uma dessas questões. Afetar ao pleno uma causa virou moda. Mas nem sempre está de acordo com o regimento. O regimento prevê a possibilidade de um habeas corpus, por exemplo, ser levado para o pleno, em vez de ser julgado pela turma, o juiz natural, quando se trata de resolver uma controvérsia jurídica relevante. Jurídica, não política!

No próprio caso Lula, chamou atenção quando o habeas corpus que discutia prisão em segunda instância foi levado para o pleno, e não julgado na segunda turma, onde a maioria dos ministros vinha mantendo em liberdade os condenados até o trânsito em julgado.

A justificativa era a de que se tratava de questão relevante juridicamente, o que notoriamente não era verdade. Se fosse o caso de julgar uma questão importante para o direito brasileiro, o que deveria ter sido pautado pelo pleno eram as ADCs (Ações Declaratórias de Constitucionalidade) 43, 44 e 54, que discutiam a questão sem personalismos ou fulanizações.

Mas não. Pautaram o HC do Lula. E denegaram o HC contra o voto de três ministros, que teriam feito maioria a favor do ex-presidente se o julgamento tivesse ocorrido na turma. Pior, o HC foi denegado por diferença de um voto porque a ministra Rosa Weber —mesmo sendo contra a prisão em segunda instância— preferiu, naquele momento, seguir o entendimento majoritário por se tratar de um caso específico e não de uma questão objetiva, ou seja, por não ser o julgamento das ADCs.

Ora, então o pleno naquele momento julgou uma pessoa e não uma questão jurídica relevante. E julgou subtraindo o réu de seu juiz natural, que era a segunda turma. Fosse Lula um réu anônimo, teria permanecido em liberdade como tantos outros que tiveram habeas corpus concedido pela segunda turma na época. Lula teve um julgamento diferenciado e foi prejudicado porque era o Lula.

O mesmo parece se avizinhar agora com o julgamento da incompetência do ex-juiz Sergio Moro. A incompetência de Curitiba para casos que não digam respeito à Petrobras já está mais do que pacificada no STF. Qual seria a razão para submeter o caso de Lula a plenário? O próprio ministro Edson Fachin, ao decidir monocraticamente, realçou que se trata de questão incontroversa. Se não há relação com Petrobras, Curitiba não é competente.

Ah, mas precisa ver se neste caso há ou não relação com a Petrobras. Pode até ser. Mas isto é questão de prova, casuísta, e não uma questão jurídica relevante, como aponta o regimento. Ou seja, a Procuradoria-Geral da República tem o direito de recorrer da decisão monocrática e submeter a questão ao colegiado. Só que o colegiado competente para dirimir questões como esta é a turma e não o plenário.

Usar o plenário para aleatoriamente julgar réus relevantes, em vez de questões jurídicas relevantes, como preconiza o regimento interno, é uma forma perigosa de se criar um juízo de exceção para determinados réus. Um foro privilegiado às avessas.

Eleições da OAB/SP: Da imprescindibilidade do voto à distância

Em novembro desse ano, portanto, daqui a sete meses, serão realizadas as eleições para os representantes da Seccional Paulista da OAB. Será escolhida uma chapa que preencherá 176 cargos, entre a diretoria, Conselho Seccional, presidência da CAASP e os representantes no Conselho Federal.

Nas últimas eleições, realizadas no ano de 2018, dos aproximadamente 300.000 advogados e advogadas regularmente inscritos, cerca de 150.000 compareceram às urnas, distribuídas pelos vários pontos de votação da capital e do interior. Trata-se de evento de expressiva magnitude, que promove grande concentração de pessoas e cuja imagem pode ser representada pelo tradicional congestionamento de veículos nos arredores das faculdades que cedem ou alugam suas estruturas para votação na capital do estado de São Paulo. Trata-se, também, de um evento impensável nos dias de hoje.

Infelizmente, a pandemia do coronavírus se agravou com violência no Brasil e, hoje, atinge com particularidade o Estado de São Paulo. Já são mais de 12 milhões de brasileiros e brasileiras vitimados pela doença, dentre os quais, mais de 300.000 perderam suas vidas. Desse total, 71.747 pereceram em solo paulista e dos cerca de 3.000 novos óbitos diários que se avolumam atualmente, cerca de 1.000 ocorrem nesse estado.

O entusiasmo em torno do início do processo de vacinação no país foi logo suplantado pelos números estarrecedores de novos casos e óbitos, pela descoberta de cepas ainda mais letais e pela constatação agastada de que, infelizmente, medidas de isolamento social são indispensáveis para evitar um premente colapso de nossos sistemas de saúde.

O que se tem hoje é um cenário nebuloso. Nem mesmo a duração da imunidade é conhecida. O prognóstico, infelizmente, é de que ainda levará muito tempo para a vida voltar ao normal. O mundo, contudo, não será mais o mesmo de março de 2020. Impossível retroceder em certos aspectos.

Afinal, na dificuldade e no isolamento, foi a tecnologia que salvou do abismo até mesmo aqueles que com ela não simpatizavam. Conhecemos da noite para o dia o zoom, o meets, o teams e os afins, e percebemos que por meio de plataformas é possível confraternizar, interagir, realizar eventos, advogar e julgar. E, por que não, votar?

Nesse contexto, a promoção de um evento que, em apenas um dia, demandaria o deslocamento de cerca de 200.000 pessoas, entre advogados e funcionários da organização, não é apenas uma atitude impensável: é uma atitude irresponsável e imoral.

Por outro lado, oriunda de nossa tradição democrática – cujos alicerces foram fincados com vital auxílio da própria Ordem dos Advogados do Brasil – a não realização do pleito eleitoral também se afigura impensável. Felizmente a situação não representa um dilema instransponível.

É possível – e necessário – conciliar as indispensáveis medidas sanitárias de distanciamento social e de resguardo à saúde e à vida com a inexorável preservação do sistema representativo de escolha dos mandatários do nosso órgão de classe. Para tanto, o quanto basta é a adoção das eleições remotas por meios virtuais, o que já será realidade neste ano em diversas seccionais ao redor do Brasil, como as do Distrito Federal e Territórios, do Paraná, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Tocantins, de Pernambuco, do Ceará e do Rio Grande do Norte.

 

Isto porque, no ano passado o Conselho Federal da OAB alterou o art. 1°, parágrafo único, do provimento 146/11-CFOAB, facultando a cada seccional a opção pela realização de certame eleitoral com o sistema de votação que melhor atenda às necessidades de saúde e organização de seus eleitores, seja ele presencial ou virtual à distância.

São Paulo tem hoje, mais do que nunca, a necessidade de implantação das eleições virtuais e à distância.

Ainda que não se estivesse diante de um cenário de calamidade sanitária, a adoção do pleito virtual urge de maneira clara, o que se constata pelo impressionante índice de abstenção nas últimas eleições.

Assim sendo, a adoção de eleições por meios que permitam o voto de maneira remota se afigura como poderoso instrumento de fortalecimento da participação dos eleitores no pleito de escolha dos representantes da classe. O ambiente virtual, ademais, fomenta a inclusão de novos participantes no processo de escolha: seja por candidaturas novas, mais diversas e mais plurais, seja pela inclusão de um imenso número de eleitores que, sem sombras de dúvidas, estarão mais estimulados a se envolver no processo democrático de escolha de seus representantes.

Atualmente, existem meios tecnológicos cada vez mais seguros e econômicos para a realização de eleições on-line, de modo que a adoção do voto à distância se tornou imperativa e não pode ser retardada com base em subterfúgios de ordem prática. São inúmeras as empresas que fornecem arquitetura tecnológica para a realização de eleições desse cariz, sendo o processo auditável por terceiros e, portanto, deveras confiável.

Diversas instituições já implantaram a medida, sem notícias de que possa ter causado qualquer prejuízo aos pleitos. A título de exemplo, o Conselho Federal de Enfermagem adotou o voto pela internet em 26 unidades federativas, atendendo a 2.401.015 pessoas aptas para votar virtualmente.

Em conclusão, aquilo que já seria conveniente – pela eficiência, pela rapidez, pela economia e pelo aumento da participação dos integrantes de nossa ordem, o que asseguraria uma OAB mais diversa, mais plural e mais representativa – hoje se eleva a uma imposição de ordem ética e humanitária. Espera-se que Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, honrando sua tradicional participação nos assuntos de interesse da sociedade, seja sensível a essa realidade e não se omita em seu papel fundamental.

Afinal, não se pode optar pelo método às vésperas da eleição. O planejamento deve começar agora.

Análise: As ordens jurídica e democrática postas à toda prova

prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) mostra como a democracia no Brasil vive o paradoxo da tolerância. Se formos tolerantes demais com os intolerantes, vencerá a intolerância. Como lidar com um deputado federal que ostensivamente desafia a ordem democrática, ofende ministros, incita a violência e a intolerância?

Não há menor dúvida de que, de forma consciente e voluntária, o deputado testa os limites da sua imunidade parlamentar, os limites da liberdade de expressão e do ordenamento jurídico como um todo.

A conduta do deputado parece se enquadrar com perfeição naquilo que a Constituição Federal, no seu artigo 55, II, chama de falta de decoro parlamentar e enseja a perda do mandato. Uma das hipóteses de falta de decoro é a do parlamentar que abusa de suas prerrogativas. A questão é que quem decide sobre a perda de mandato nestes casos é a casa legislativa onde está o congressista.

STF aparentemente não quis esperar para ver, preferiu forçar a porta. E acabou testando também os limites da ordem jurídica. Uma primeira questão é até onde vai a amplitude da imunidade parlamentar por palavras e votos. Pode o parlamentar responder criminalmente por suas manifestações ou a imunidade é ilimitada? Ou ainda, onde termina a imunidade e onde começam as condutas criminosas previstas na Lei de Segurança Nacional (diploma usado para determinar a prisão do deputado)?

Neste ponto, ninguém poderá subtrair da Suprema Corte o papel constitucional de definir estas fronteiras.

O que, no entanto, não se coaduna com a ordem jurídica vigente é o chamado “mandado de prisão em flagrante”. Como a Constituição proíbe que parlamentares sejam presos, a não ser em flagrante delito, é a segunda vez que a Suprema Corte usa do expediente da ordem judicial de flagrante para prender um congressista. A primeira foi na Lava Jato, contra o então senador Delcídio do Amaral.

O flagrante, porém, é quando a pessoa é pega com a boca na botija. Exige instantaneidade. Pode ser preso em flagrante quem “está cometendo o crime” ou “acabou de cometê-lo” (por exemplo está ao lado da vítima morta com a faca cheia de sangue), mas nunca alguém cuja ação já está no passado, ainda que recente. Flagrante seria se a polícia o detivesse durante o discurso ou a gravação do vídeo. Crimes permanentes, como é o sequestro, permitem flagrante enquanto estiverem sendo praticados. Não era este o caso.

O STF, pesa dizer, confundiu reiteração e efeitos permanentes de um crime (o fato de o vídeo estar nas redes) com permanência delitiva, para poder argumentar assim que o deputado estava em pleno cometimento do crime quando foi preso. Tamanha é a elasticidade deste entendimento que, levado a ferro e fogo, daqui a quarenta anos, alguém poderá ser processado por um vídeo existente na rede, ao argumento de que a prática criminosa nunca cessou. Os próprios vídeos de Bolsonaro exaltando o AI-5, a tortura e fazendo apologia ao assassinato do FHC circulam até hoje impunemente pelas redes. Embora criminoso e deplorável, não configura hipótese legitimadora de flagrante delito.

Nada é mais ilustrativo de que as chamas do flagrante já se apagaram do que o recurso a uma decisão judicial escrita e fundamentada buscando reacendê-lo. Em suma: ordem judicial de prisão em flagrante é uma contradição em termos.

Se o flagrante é um óleo sobre tela com cheiro de tinta fresca, a ordem judicial de prisão em flagrante é um pôster velho e desbotado.

Qual é, afinal, o papel do juiz?

Quando as mensagens trocadas entre procuradores da Força Tarefa da Lava Jato e o ex-juiz Sérgio Moro foram liberadas pelo STF, houve forte reação da comunidade jurídica. Muita gente, porém, principalmente os menos familiarizados com a praxe judiciária, não conseguiu alcançar a gravidade que seu conteúdo revela.

Afinal, não é normal conversas entre juízes e promotores? As partes não podem conversar com o juiz fora dos autos? O que está nas mensagens não é algo corriqueiro, que ocorre todos os dias, e que faz parte da praxe forense? Para combater o crime organizado, o juiz não precisaria estar assim, lado a lado com os procuradores? Afinal, qual seria realmente o papel de um juiz na justiça criminal?

Estas perguntas poderiam compor uma biblioteca inteira, em seções que vão desde Teoria do Estado até o estudo especializado do processo penal.

Deixemos por ora as teorias e os tratadistas. Usemos o bom senso.

Advogados e promotores conversam com juízes, às vezes até mesmo por mensagem eletrônicas. Nisto não há qualquer problema ou ilegalidade. Mas, não é recomendável que conversas sobre o caso em que ambos atuam sejam feitas fora do ambiente forense. É um protocolo que costuma ser respeitado à risca. No mundo jurídico, soa como gafe, para dizer o menos, abordar um juiz fora do seu habitat (o fórum) para falar de uma determinada causa.

A troca diária de mensagens entre o juiz e os acusadores (ou seja, entre o juiz e uma das partes) já não seria, digamos assim, uma prática muito ortodoxa. Ainda assim, não chegaria a ser ilegal, e muito menos criminosa. As mensagens da qual ora tomamos conhecimento, porém, revelam algo muito mais grave.

Nelas, vê-se um juiz interessado pessoalmente no sucesso da demanda cujo julgamento lhe foi confiado. Mais do que isto, vê-se um juiz assumindo posturas de comando em relação à parte, dando ordens, cobrando providências, repreendendo a desenvoltura em audiência, ou seja, assumindo, enfim, postura de quem não está lá para julgar, mas para vencer. Bastante semelhante à daqueles técnicos de vôlei que, no intervalo, reúnem a equipe, e de forma enérgica orientam novas táticas, ao que a equipe reponde apenas com aqueles gritos de guerra motivacionais típicos da caserna, e que foram sendo incorporados à prática esportiva.

Agora imaginem esta mesma cena ocorrendo às escondidas no vestiário, e em vez de pelo técnico as ordens ao time fossem dadas pelo juiz do jogo…

É neste ponto que as mensagens não apenas impressionam, como escandalizam. Como pode julgar com isenção o juiz que comemora ao saber que a denúncia contra o réu (a inicial do processo criminal) foi finalmente protocolada? Como pode um juiz julgar com imparcialidade um réu, se ele mesmo apontou para a acusação os caminhos que deveriam ser feitos para se obter a condenação? Se o juiz está consorciado desde o início com a acusação, qual a chance de um réu acusado por equívoco ser inocentado? Como pode um juiz fiscalizar o trabalho da parte, e em alguns momentos até repreendê-la, para que a prova contra o réu pudesse ser melhor produzida?

Se um juiz assim não for considerado parcial, nenhum outro, em nenhuma outra circunstância, poderá sê-lo.

Eis o grande desafio…

Apropriação indébita tributária: reflexos do atual entendimento do STF

Em agosto de 2018, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 399.109/SC, pacificou o entendimento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias, mesmo que declarado, é fato típico.

O caso seguiu para o Supremo Tribunal Federal, que, no julgamento do RHC 163.334/SC, em dezembro de 2019, referendou a decisão do STJ e, por sua vez, deu novos contornos à criminalização dos ilícitos tributários, especificamente no que tange à espécie de apropriação indébita. O inteiro teor do acórdão foi publicado no último mês de novembro.

O presente artigo não intenta questionar a racionalidade jurídica da decisão ou a possível usurpação de competência típica do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário, mas refletir sobre os impactos oriundos do atual entendimento jurisprudencial.

Notadamente, debruça-se sobre a proposição de que a nova tese fixada pelo STF traduz a exigência de novos elementos constitutivos para a configuração delitiva dos crimes de apropriação indébita tributária, não somente daquele previsto pelo artigo 2º, II, da Lei nº 8.137/1990 quando do não recolhimento de ICMS.

Partindo-se da premissa de que o mero inadimplemento tributário não deve ser considerado fato típico, o ministro relator do RHC 163.334/SC, Luís Roberto Barroso, propôs uma análise teleológica para concluir que a criminalização do delito tributário busca responsabilizar “o devedor contumaz, que não paga quase que como estratégia empresarial, que lhe dá vantagem competitiva e permite que venda mais barato que os outros, induzindo os demais à mesma estratégia criminosa”. O ministro relator sinalizou ainda que “o que estamos tentando enfrentar é o comportamento empresarial ilegítimo que gera concorrência desleal”.

Pautado nesse discurso, o plenário do STF acabou por fixar a tese de que o “contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990”, uma espécie de apropriação indébita.

Vê-se, assim, que o entendimento exposto em referido leading case estabeleceu critérios para a devida diferenciação entre o crime tributário e o mero inadimplemento fiscal. Entre os requisitos de tipicidade merecem destaque a contumácia e o dolo especial de apropriação.

A contumácia, agora convertida em requisito de tipicidade objetiva, enseja lesão relevante ao bem jurídico tutelado e se expressa pela adoção da inadimplência como modus operandi do empresário.

Assim, sob um primeiro aspecto, exige-se que o não pagamento seja sistemático, com a repetição de omissões no recolhimento e seu emprego habitual a compor estratégia negocial da empresa.

Sob um segundo aspecto, o julgado determina a afetação do bem jurídico protegido a partir da repetição da conduta proibida e não do valor inadimplido.

A orientação, contudo, não afasta a já consolidada aplicação (também no âmbito da tipicidade) do princípio da insignificância aos crimes contra a ordem tributária, sempre que o débito tributário não atingir o montante mínimo sujeito à execução fiscal. Nesse sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça considera há tempos que incide a “insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho quando o débito tributário verificado não ultrapassar o limite de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei n. 10.522/2002, com as atualizações efetivadas pelas Portarias n. 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda” [1].

Embora o acórdão do RHC 163.334/SC não estabeleça o período específico de inadimplência que caracterizaria a contumácia, a jurisprudência já tem dado algumas diretrizes sobre o assunto. No último mês de setembro, no julgamento do AgRg no REsp 1865750/SC, a 6ª Turma do STJ absolveu contribuinte que deixara de recolher o ICMS por três meses, justamente porque tal circunstância não indicaria comportamento contumaz:

“Tendo o recorrente sido condenado por deixar de recolher o tributo por três meses, nos meses de julho, agosto e outubro de 2011, inexistindo referência a ser agente contumaz ou sobre a existência de processo administrativo fiscal para apurar apropriação em períodos posteriores a esse lapso temporal, deve ser reconhecida a atipicidade da conduta” [2].

Em outra oportunidade, no REsp 1852129/SC, o STJ considerou atípica a conduta do contribuinte que não recolhera o tributo por quatro meses. Naquela oportunidade, pontuou o ministro Sebastião Reis Júnior que “os elementos probatórios coligidos rechaçam a existência de contumácia delitiva, pois, do que se colhe da moldura fática delineada na instância ordinária, a ausência do recolhimento do ICMS declarado consubstanciou um evento isolado na gestão da pessoa jurídica pois perdurou por um pequeno período de tempo (quatro meses), inexistindo menção a nenhum processo administrativo fiscal iniciado para apurar apropriação subsequente a esse lapso temporal” [3].

Ainda no que tange ao pressuposto típico da contumácia, um importante reflexo prático consiste no fato de que o novo entendimento obstaculiza a imputação pelo delito de apropriação indébita na forma de concurso material ou crime continuado.

Isso porque o concurso material “existe em situações de sucessividade de tipos de injusto independentes, iguais ou desiguais” [4] e o crime continuado, por seu turno, é composto por “situações de pluralidade de fatos típicos de igual espécie, produzidos por uma pluralidade de ações ou de omissões de ação, realizadas em condições de tempo, lugar, modo de execução e outras indicadoras de que os fatos típicos posteriores são continuações do primeiro” [5].

Como a contumácia, conforme definido pelo próprio ministro relator, explicita-se pela inadimplência “reiterada” e “sistemática”, conclui-se que o não pagamento habitual é critério típico para a configuração de um único crime.

O dolo específico de apropriação, por sua vez, no âmbito da tipicidade subjetiva, materializa-se pela ação predatória voltada ao enriquecimento ilícito, lesão à concorrência ou financiamento econômico às custas do Erário.

De acordo com o precedente, devem ser verificados indícios de que o contribuinte age com o fim de locupletar-se indevidamente dos valores devidos ao Estado. Como exemplos desse especial intento, o STF aponta “o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de ‘laranjas’ no quadro societário, a falta de tentativa de regularização dos débitos, o encerramento irregular das suas atividades, a existência de débitos inscritos em dívida ativa em valor superior ao capital social integralizado etc”.

Vê-se, assim, que o STF impôs o que Alaor Leite e Ademar Borges denominaram “cláusulas de restrição” para a responsabilização penal, limitando “os efeitos da opção criminalizadora” [6].

Referida compreensão já vem sendo adotada pela jurisprudência. A título exemplificativo, é possível citar recentíssima decisão proferida pelo STJ, sob relatoria da ministra Laurita Vaz:

“Nos termos do atual entendimento do Pretório Excelso, inafastável a conclusão de que, conquanto o fato deletério atribuído ao ora agravante, a princípio, se subsuma à figura penal antes mencionada, a ausência de contumácia – o débito com o fisco se refere a tão somente um mês – conduz ao reconhecimento da atipicidade da conduta e, por conseguinte, à absolvição do réu” (STJ, AgRg no Recurso Especial n. 1.867.109/SC, rel. ministra Laurita Vaz, 6ª Turma, DJe: 4/9/2020).

Compreendemos que as novas diretrizes do STF devem ser aplicadas a todos os casos que envolvem crimes de apropriação indébita tributária, tendo em vista os fundamentos que sustentam a decisão proferida no âmbito do RHC 163.334/SC (tanto suas premissas quanto as conclusões obtidas por meio dos métodos interpretativos aplicados).

Em primeiro lugar, porque as “premissas para o exame da tipicidade penal”, presentes no voto condutor, não versam exclusivamente sobre o ICMS e, sim, sobre o Direito Penal Tributário de forma geral.

A primeira premissa é a de que o Direito Penal deve ser efetivo em dissuadir a criminalidade, igualitário em sua aplicação, e moderado, evitando-se excesso de tipificações e exacerbação de penas.

A segunda premissa é a de que pagar tributos é um dever fundamental de todos os cidadãos com capacidade contributiva. Dessa forma, a incidência do Direito Penal no âmbito tributário seria excepcional, mas necessária. Nesse ponto, o ministro relator aduz que “o crime fiscal nada mais é do que outra face da corrupção: a corrupção desvia dinheiro dos serviços públicos; o crime fiscal impede que sequer exista dinheiro para ser utilizado nesses serviços”.

Por derradeiro, a última premissa consiste no fato de que o mero inadimplemento tributário é apenas um ilícito administrativo, de forma que, para que o não recolhimento caracterize crime, é preciso que haja “algo a mais, uma reprovabilidade especial que justifique o tratamento mais gravoso”.

Em segundo lugar, a extensão dos requisitos típicos aos demais casos de apropriação indébita tributária se justifica ante a análise dos próprios métodos interpretativos que embasaram a fixação da tese: interpretações semântica, histórica (com referências de direito comparado), consequencialista e restritiva.

A interpretação semântica demonstraria que, na apropriação indébita, a censurabilidade da conduta consiste na apropriação, pelo agente, de valor que não lhe pertence.

Da interpretação histórica e da referência ao direito comparado, derivariam as conclusões de que: 1) o processo legislativo da Lei nº 8.137/1990 aponta para a tipicidade da conduta de omissão do não recolhimento de tributo retido na fonte ou transferido economicamente na cadeia produtiva; e que 2) há, em diversos países, tipos penais que criminalizam o não repasse ao Estado de valor recolhido a título de tributo.

A interpretação consequencialista assinala a ideia de que os crimes tributários são um mal social grave, que afetam o erário e a livre concorrência, e que o contexto brasileiro de fragilidade financeira exigiria a criminalização da falta de recolhimento intencional e reiterada. Por meio desse método interpretativo, o ministro Luís Roberto Barroso traz a única especificidade em relação ao ICMS: afirma ser esse o “tributo mais sonegado no país”.

Por fim, no âmbito da interpretação restritiva, o voto condutor reforça a necessidade de se esclarecer a diferença entre a mera inadimplência e a conduta que lesiona de forma significativa o bem jurídico tutelado.

Vê-se, pois, que tanto as “premissas para o exame da tipicidade penal” quanto os resultados oriundos dos métodos interpretativos utilizados apresentam justificativas genéricas para a fixação da tese, o que refuta a aplicabilidade do precedente exclusivamente ao devedor contumaz de ICMS.

Poderíamos somar às considerações do ministro relator e pontuar que as aludidas “cláusulas de restrição”, à luz de uma interpretação sistemática — “que tem por objetivo esclarecer o significado da norma isolada no contexto do sistema de normas” [7] —, impõem-se a todas as espécies de apropriação indébita tributária e quiçá com maior exigência no caso da previdenciária, cuja pena é mais grave (de dois a cinco anos e multa).

Nesse sentido, a decisão proferida no âmbito do RHC 163.334/SC pode acabar solucionando diversas injustiças da atual sistemática dos delitos tributários [8] — que confunde sonegadores e devedores contumazes com meros inadimplentes — e ensejar a limitação de uma criminalização desmedida.

Por essas razões, entendemos que a racionalidade jurídica que fundamentou a decisão do Supremo Tribunal Federal traduz a exigência dos novos elementos típicos objetivos e subjetivos a todos os delitos de apropriação indébita tributária no Direito brasileiro.

[1] RESP 1688878/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, DJe: 04/04/2018. No mesmo sentido: STJ, AgRg-HC 549.428/PA; QUINTA TURMA; Rel. Ministro JORGE MUSSI, DJe: 29/05/2020.

[2] STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial 1.865.750/SC, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, DJe: 29/09/2020.

[3] STJ, Recurso Especial 1852129/SC, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe: 26/06/2020.

[4] JESCHECK/WEIGEND, Lehbuch des Strafrechts. In: CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: Parte Geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 402.

[5] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: Parte Geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 407.

[6] LEITE, Alaor; BORGES, Ademar. Parâmetros interpretativos para a criminalização do não recolhimento de ICMS próprio. Jota, 17/12/2019.

[7] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: Parte Geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 59.

[8] TOFIC SIMANTOB, Fábio; OLIVEIRA, Júlio M. Para o bem ou para o mal?. Valor Econômico. 06/10/2020. Legislação. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/10/06/para-o-bem-ou-para-o-mal.ghtml.

Tribunal do Júri, esse ilustre desconhecido

Nos anos 1930, em uma pequena cidade mineira, dois irmãos foram acusados da morte de um caminhoneiro. Sob tortura, confessaram o crime.

Levados a júri, foram absolvidos; os jurados farejaram o cheiro de arbitrariedade policial. O Tribunal de Justiça, porém, não aceitou o veredito e os mandou a novo júri.

Os jovens foram levados a novo julgamento e novamente absolvidos. Neste meio-tempo, um decreto editado pelo ditador Getúlio Vargas acabava de vez com a soberania do júri, de modo que o Tribunal de Justiça agora podia não apenas cassar o veredito como ele mesmo decidir a culpa dos réus.

Escolheu-se a segunda opção, e os irmãos foram condenados a longos anos de cadeia. Alguns anos depois, um deles já havia morrido em um asilo, como indigente, após lhe ter sido concedido o livramento condicional —e eis então que a vítima aparece viva, em carne e osso.

O caso dos irmãos Naves é até hoje um dos mais conhecidos erros judiciários da história brasileira. O erro foi cometido pela Justiça técnica três vezes: não só pelo tribunal que cassou a decisão do júri e depois condenou, mas também pelo juiz que autorizou o caso ir a júri (em decisão chamada sentença de pronúncia).

Mais do que isso, o erro jurídico teria sido evitado se aos jurados fosse dado o poder de julgar arbitrariamente contra as provas ou a evidência dos autos.

Quando se maldiz a instituição do júri, acusando-a de arbitrária —conforme o artigo “Abaixo o Tribunal do Júri”, do colunista Hélio Schwartsman, publicado nesta Folha em 29 de dezembro último—, na verdade se critica sua maior virtude.

A possibilidade de o júri decidir sem apoio na prova, se for para absolver, não é um fardo a suportar em nome da soberania, mas a sua própria razão de ser. E, como corolário desta soberania, a absolvição proclamada pelo júri não pode ser censurada pelas cortes togadas.

Nos EUA, esta é uma regra de ouro. A Quinta Emenda da Constituição estadunidense prevê que “ninguém terá sua vida ou integridade física submetida a risco duas vezes em razão dos mesmos fatos”. É a garantia do “no double jeopardy”.

No Brasil, o Código de Processo Penal, dos anos 1940, admite a cassação dos vereditos populares contrários à prova dos autos, o que sempre foi motivo de crítica de setores da doutrina e da academia. Em 2008, com a reforma parcial do código, introduziu-se um quesito obrigatório que deve ser formulado ao jurado: “O jurado absolve o réu?”.

Decorreu daí nova polêmica: se é dado ao jurado a oportunidade de absolver independentemente do caso e das teses sustentadas (o quesito é obrigatório sempre), é possível censurar a decisão absolutória do júri sem ferir sua soberania?

É o que está em discussão no julgamento do recurso extraordinário nº 1.225.185-MG. Se o STF decidir a favor da soberania do júri, estará, embora com décadas de atraso, oxigenando uma das instituições mais democráticas que o direito já foi capaz de criar —e que erra sim, como todos os juízes humanos.

Há Estados democráticos sem a instituição do júri, mas dificilmente veremos o funcionamento de um júri popular soberano em Estados antidemocráticos.

Para o bem ou para o mal?

No julgamento do RHC 163334, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que declarar ICMS mas não recolhê-lo ao Fisco configura o crime do artigo 2º, II, da Lei nº 8.137, de 1990, uma espécie de apropriação indébita tributária.

Sucede que o próprio STF, ao julgar o caso, estabeleceu uma série de critérios, sem os quais a criminalização não pode ocorrer. Um desses critérios é a contumácia. Ou seja, não basta dever um, dois ou três meses para que já fique configurado o crime. É necessário ainda um dolo especial e usar o não pagamento como estratégia negocial.

O entendimento do STF, criminalizando a mera dívida de ICMS, pode servir para equilibrar o sistema penal tributário

A forma como esses critérios serão usados na prática ainda não é muito clara. Só o fato de o caso tratado no leading case ser de uma dívida de pequena monta, em que os réus eram defendidos pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, já é suficiente para colocar uma série de dúvidas sobre o real alcance de expressões como contumácia e estratégia negocial do contribuinte.

A grande questão é de que forma esse julgamento do ICMS pode acabar impactando outros impostos, cujo mero não pagamento também configura crime, como é o caso do INSS e do IR retido na fonte.

Os novos critérios estabelecidos pelo STF, como contumácia, intenção de empreender estratégia negocial, se aplicam a outros impostos ou somente ao ICMS? Ou melhor, teria o STF abrandado a criminalização do não pagamento desses outros impostos, limitando sua aplicação aos casos de evidente e manifesta vontade de se locupletar dos recursos dos impostos?

Sim, pois não faria sentido aplicar tais critérios apenas a uma modalidade de tributo, se do ponto de vista valorativo a conduta é exatamente a mesma, fere o mesmo bem jurídico, e produz o mesmo resultado. Até porque essa distinção entre tributos diretos e indiretos, do ponto de vista econômico, não se sustenta, afinal todos os tributos são considerados na formação do preço de um produto/serviço, sob pena da empresa que o produz/presta ou revende se tornar cronicamente deficitária e quebrar.

Fato é que, se o entendimento puder ser aplicado a outros casos de apropriação indébita tributária, o precedente pode acabar solucionando diversas injustiças que a atual sistemática dos crimes tributários não consegue resolver.

Afinal, continua muito difícil de defender que a criminalização do mero não pagamento não é uma reles prisão por dívida, aplicada fora das hipóteses permitidas pela Constituição Federal, que só a autoriza em casos em depositário infiel e de devedor de pensão alimentícia. Nitidamente, o devedor de tributos que não sonega a dívida, mas apenas não adimple o pagamento, é um devedor civil como qualquer outro, de modo que sua prisão pelo não pagamento passa a ser mais um fator de insegurança jurídica e um obstáculo relevante ao empreendedorismo.

Nos casos em que o não pagamento de tributos é considerado apropriação indébita tributária, a única saída para não ser condenado criminalmente é a defesa do réu conseguir mostrar que a empresa estava em completa ruína empresarial e financeira, de tal modo que não seria lícito exigir dele o pagamento dos impostos. É uma hipótese de excludente de culpabilidade.

Ocorre que a jurisprudência dos tribunais acabou criando padrão probatório tão exigente, que torna quase impossível, na prática, a demonstração dessa situação de penúria capaz de excluir o crime. O drama real então é que, em muitos casos, a ruína financeira acaba sendo coroada com a condenação penal.

Essa pecha de criminoso que se incute em meros devedores é uma violência do direito penal brasileiro que precisa ser corrigida, e o precedente do ICMS, por paradoxal que possa parecer, acaba mostrando a saída para separar o joio do trigo, ou seja, distinguir o devedor honesto, que é a maioria, daquele que usa a dívida tributária para se locupletar dos valores pertencentes ao Fisco.

A hipótese criminal, então, pela lógica desse aparente novo entendimento, ficaria restrita àquele que age com predeterminação, aquele que age de forma premeditada, planeja não recolher tributos, e isentaria, por via oposta, aquele que deixa de recolher tributos de forma ocasional, eventual e sem que haja o uso de um estratagema visando se locupletar de valores pertencentes ao Fisco.

Se é verdade o dito popular de que há males que vêm para o bem, o draconiano entendimento do STF, criminalizando a mera dívida de ICMS, pode acabar servindo de paradigma para equilibrar um pouco o sistema penal tributário como um todo, que hoje acaba colocando sonegadores e meros devedores no mesmo balaio, permitindo uma visão menos punitiva e mais justa no tratamento da mera dívida fiscal.