30 anos depois do Carandiru, o massacre continua

violência policial no Brasil é marcada pela normalização de sua letalidade e impunidade. Os fatos são eloquentes. No último dia 2 de agosto, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que prevê anistia aos policiais militares processados ou punidos pela atuação no assassinato de 111 presos na Casa de Detenção de São Paulo, em 2 de outubro de 1992 —o tristemente conhecido massacre do Carandiru.

A tramitação desse projeto é motivo de profundo pesar. Em vez da necessária atribuição de responsabilidades penais, tenta-se anistiar a barbárie. De autoria do deputado Capitão Augusto (PL-SP), o PL 2.821/2021 é uma aberração jurídica. Constata-se um uso desvirtuado da função legislativa para afrontar decisão do Poder Judiciário, sendo que, para piorar, o julgamento nem sequer foi concluído.

O menosprezo aos direitos humanos e às consequências de um dos mais sangrentos episódios da história brasileira, materializado no PL 2.821/2021, deve ser veementemente rechaçado. O projeto de lei conflita não apenas com a independência da Justiça, como também com o funcionamento do Estado democrático de Direito.

Classificando os policiais como “heróis” que “deveriam ser condecorados”, o parecer do deputado Sargento Fahur (PSD-PR) é um acinte com a verdade dos fatos e com a Constituição. No Estado democrático de Direito, não cabe louvor à prática premeditada de crimes contra cidadãos por parte de agentes do Estado. Não cabe chamar homicídio de “neutralização” ou carnificina de ação “bem-sucedida”.

O PL 2.821/2021 pretende reescrever um julgamento de competência do Poder Judiciário, numa inversão de valores e princípios. Deseja transmitir a mensagem de que chacinas e morticínios serão tolerados, perdoados e até comemorados. É necessário e urgente que se reafirme o respeito à Constituição, à divisão de Poderes da República e ao Estado democrático de Direito.

O IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) foi fundado em 1992, como reação ao massacre do Carandiru. Não se calará em sua luta pela observância dos direitos humanos no âmbito da segurança pública. É preciso avançar, não retroceder. É preciso interromper a normalização da violência policial.


Por Marina Coelho Araújo, Alberto Zacharias Toron, Fábio Tofic Simantob, Bruno Salles Pereira Ribeiro, Felipe Cardoso Moreira de Oliveira, Ester Rufino, Rafael Serra Oliveira, Renato Stanziola Vieira, Maria Carolina de Melo Amorim, Leonardo Palazzi e Vinícius Assumpção.

Venda de indulgências

É válido o decreto de indulto individual editado pelo presidente Jair Bolsonaro? Não, por alguns motivos.

Antes de mais nada, é verdade que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que não cabe ao Judiciário se imiscuir nas razões de política criminal sopesadas pelo presidente da República para editar o indulto coletivo. No entanto, essa decisão do STF tem pouca ou nenhuma aplicação ao indulto individual. Isso porque, diferentemente do indulto coletivo, o individual dificilmente decorre de uma política criminal que o Executivo espera ver implantada no país, como a de desopilar o sistema prisional soltando condenados por casos menos graves —hipótese que sempre inspirou os decretos de indulto no Brasil até o governo Bolsonaro, que praticamente acabou com a tradição de editá-lo na época do Natal.

O indulto individual, por ser personalíssimo, precisa conter um motivo muito relevante, que justifique a sua adoção, sob pena de se transformar em favores do rei a amigos, familiares ou aliados.

Peguemos o caso hipotético de um herói nacional, um esportista adorado pela população, que acaba condenado por um crime não infamante —um crime de trânsito, por exemplo, cuja pena terá de cumprir já em estado avançado de um câncer terminal. Parece haver um interesse coletivo e um clamor nacional pelo indulto.

Diferente do que fez Bolsonaro. O presidente indultou um aliado político que, assim como ele, tem disparado ameaças e incitado a violência contra os Poderes constituídos. E, pior, o fez numa tentativa de substituir o julgamento do STF pelo dele.

Ocorre que não cabe ao presidente da República dizer se uma conduta é ou não criminosa. Quem define o que é crime em abstrato é o Congresso Nacional por meio de lei. E quem define o que é crime no caso concreto é o Judiciário por meio de uma decisão judicial. Nenhum decreto de indulto pode pretender redefinir uma conduta considerada criminosa pelo Judiciário. Somente o Congresso poderia desconstituir a tipicidade penal de um fato pretérito, por meio da chamada “abolitio criminis” ou da anistia. O indulto não se presta a isso. O presidente deu uma anistia individual a fatos praticados pelo amigo e a alcunhou de indulto.

Por outro lado, quando a Constituição Federal garante a imunidade parlamentar por palavras e votos, não está isentando de pena qualquer palavra proferida pelo deputado ou senador. Um pedido de propina é feito com palavras e é crime. Uma ordem para a prática de um crime, um homicídio, por exemplo, é feita com palavras e é crime. O parlamentar está protegido penalmente por opiniões, mas não por palavras que transbordam o terreno da mera opinião e desembocam no pântano perigoso de crimes mais graves.

Por fim, a Lei de Segurança Nacional, editada no final da ditadura militar, não era totalmente antagônica à liberdade de expressão. Tanto que muitos dos crimes nela previstos foram realocados na recém-aprovada Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, delitos nos quais o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) foi dado como incurso.

Alguns crimes nela previstos eram inconstitucionais de fato e, felizmente, abolidos com a nova lei, como o de imputar crime ao presidente da República (calúnia). Pasmem, porém, pois foi justamente por este crime que o agora benevolente presidente da República requisitou dezenas de investigações criminais contra opositores.

Ou seja, com uma mão Bolsonaro usa a Lei de Segurança Nacional para perseguir opositores, enquanto com a outra anistia amigos a quem garante uma liberdade de expressão ilimitada.

É patente a afronta ao princípio da isonomia. É evidente que o presidente age por capricho pessoal e não por interesse público. Extrapola em muito o poder de indultar e se aproxima da prevaricação.

Quarentena eleitoral para juiz protege Judiciário

Não há democracia sem um Judiciário independente, alheio às tentações políticas. Com a tramitação no Congresso do chamado novo Código Eleitoral (Projeto de Lei Complementar 112/21), o Brasil dá um passo importante na direção de concretizar essa ideia.

Pela nova regra, juízes e promotores que desejam concorrer às eleições precisariam se desvincular de suas funções quatro anos antes do pleito. O mesmo se aplicaria a policiais e militares. O projeto não inventa propriamente a regra, mas amplia o tempo de “quarentena” obrigatória entre o desligamento do servidor público e o lançamento de sua candidatura.

O estabelecimento de quarentenas para carreiras públicas é uma estratégia de fortalecimento das instituições de Estado

O texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados e aguarda votação no Senado. Caso entre em vigor, o novo Código Eleitoral será uma importante ferramenta de proteção e fortalecimento da democracia brasileira.

Nosso ordenamento jurídico já prevê regras especiais para carreiras públicas ou de grande alcance popular (caso, por exemplo, de apresentadores de rádio ou TV), visando ao equilíbrio do processo eleitoral. Pelas regras hoje vigentes, servidores do Estado precisam se desligar de suas funções, ainda que temporariamente, para disputar cargos eletivos. Em muitos casos, um período de quarentena já é exigido.

Ocorre que, quando tratamos das carreiras do Judiciário, em especial daquelas ligadas diretamente ao Direito Penal, o que está em jogo vai muito além da garantia da competitividade leal em uma eleição. Trata-se de resguardar a própria segurança jurídica do Estado democrático, o que requer, portanto, cuidados adicionais.

Um operador do Direito não pode estar sujeito à tentação de fazer proselitismo político a partir de seu cargo. Não raro, uma decisão tecnicamente correta, amparada nos autos, é também aquela que desagrada à opinião pública. A independência necessária ao trabalho de juízes e promotores decorre justamente do fato de que sua atuação está sujeita a critérios legais, não de popularidade.

Se permitirmos, no entanto, que decisões judiciais possam eventualmente catapultar carreiras políticas, estaremos contribuindo para corromper essa independência. Se permitirmos que juízes e promotores usem a caneta para atender à opinião pública, teremos ótimos juízes e promotores no Parlamento, mas não nas carreiras onde eles devem estar. Mais do que a lisura do processo eleitoral, põe-se em risco uma série de garantias constitucionais, bases de qualquer sistema democrático. A regra da quarentena para juízes, promotores e demais servidores busca justamente evitar esse risco.

Note-se ainda que o próprio exercício da magistratura, sem que consideremos qualquer violação ética ou normativa, já fere o princípio da paridade de armas em uma disputa eleitoral, dadas as potenciais repercussões das decisões emitidas pelos tribunais. A relevância social do trabalho do juiz, somada ao potencial destaque midiático que suas sentenças podem receber, cria, por definição, uma vantagem indevida no processo eleitoral.

Logo, a regra da quarentena não coloca “sob suspeita” todos os servidores indiscriminadamente, como alegam alguns críticos. Ao contrário, ela reconhece que apesar da conduta ilibada da enorme maioria dos juízes e promotores do país, há algo nas carreiras jurídicas que é essencialmente incompatível com o ambiente político e que, portanto, precisa ser resguardado pelo Código Eleitoral. Por outra, a regra existe não apenas para coibir exceções, garantindo o bom funcionamento do Poder Judiciário, mas também para impedir que os pleitos sejam marcados por competições inevitavelmente desiguais.

No mais, cumpre lembrar que o projeto em tramitação no Senado não impede o acesso dessas categorias à carreira política, apenas impõe um limite mínimo de tempo entre o abandono da toga e o lançamento da candidatura. Pode-se discutir alguns de aspectos do texto – o prazo de quatro anos, por exemplo, é tido por alguns como excessivo -, mas parece evidente que ele representa um avanço na legislação eleitoral brasileira.

Por fim, há que se comentar o contexto político em que a regra da quarentena para membros do Judiciário foi incluída no projeto de reforma do Código Eleitoral. A Operação Lava-Jato teve impacto gigantesco no cenário eleitoral brasileiro, além de ter alçado membros do Judiciário a carreiras políticas de destaque. O ex-juiz Sérgio Moro, membro mais destacado da operação, deixou a magistratura para iniciar imediatamente uma carreira política, ocupando brevemente o Ministério da Justiça do governo Jair Bolsonaro.

Além disso, elegemos em 2018 um número quatro vezes maior de policiais e militares para a Câmara e o Senado na comparação com o pleito anterior – categorias que também seriam incluídas, a princípio, na nova regra da quarentena. Não há dúvida, pois, de que o momento histórico brasileiro ajudou a determinar, ou pelo menos a acelerar, a tramitação do novo Código Eleitoral pela Câmara dos Deputados

No entanto, é incorreto supor que a regra da quarentena representa uma espécie de “revanche” de parte da classe política contra certos grupos de oposição ou candidaturas. Isso porque, caso aprovado, o novo Código Eleitoral só entrará em vigor em 2026, ou seja, daqui a duas eleições, sem qualquer impacto sobre o atual tabuleiro político.

Espera-se que os senadores retomem essas discussões e entendam que o estabelecimento de quarentenas eleitorais para certas carreiras públicas, especialmente no caso da magistratura, é uma estratégia de fortalecimento das instituições de Estado.

A caneta do juiz ou do promotor não pode jamais se transformar em ferramenta política. Proteger a independência do Poder Judiciário é proteger a própria democracia brasileira.

Clamor público

Os vizinhos ficaram em polvorosa. O bairro pacato e de gente de bem não estava acostumado a incidentes como aquele. Logo que ouviram os tiros, chamaram a polícia, mas não puderam ver o momento em que o homem foi levado para a delegacia. A cena do crime foi isolada, e dela também ninguém pôde se aproximar. Nada disto, no entanto, arrefeceu o espírito cívico daquela gente, obcecada por justiça. As associações de bairro logo organizaram uma manifestação na frente do prédio. Vizinhos colocaram faixas na janela com dizeres: “Abaixo a impunidade”, “Chega de violência”, “10 medidas contra a corrupção, já”, “Moro presidente”. Os restaurantes enxergaram no incidente uma boa jogada de marketing. Garantiram descontos para quem viesse comer com a camiseta “Quero meu bairro de volta”.

No dia seguinte, algumas pessoas começaram a ser chamadas para depor. A polícia principiou pelo presidente da principal associação de moradores. Ele não havia presenciado o ocorrido, mas deu um testemunho valoroso e muito detalhado sobre o clamor público que o crime provocou.

Alguns vizinhos que também não viram nada, muito menos a cena do crime, prestaram seu compromisso cívico e compareceram espontaneamente na delegacia para contar aos policiais um pouco sobre a personalidade do acusado. Esquisito, estranho, ameaçador, foram alguns dos adjetivos usados. Um dos vizinhos, médico psiquiatra, ousou ir um pouco além. “Por trás daquele olhar manso, pacato e gentil, sempre desconfiei que havia um psicopata”.

A personalidade do réu e o clamor público atestado pelas testemunhas foram os principais fundamentos da prisão decretada no dia seguinte.

O advogado chamado para atender a ocorrência quase que não aceita o patrocínio da causa. Sua esposa estava revoltada, como toda gente. Conseguiu com ela um alvará pelo menos para examinar os autos. Foi ao fórum e conseguiu vista. O laudo necroscópico já estava anexado. Descrevia um roedor de 8,8 cm, cor parda acinzentada, pesando 19 g. A causa da morte: hemorragia interna causada por instrumento perfuro-contundente. A vítima era um rato. Fora morto cruelmente com um tiro no estômago. O advogado se desiludiu. Já havia precedente no STJ para caso idêntico. Era causa perdida.

Genocídio?

Galvanizado pelas oitivas e resultados da CPI da Covid no Senado Federal, há um intenso debate em torno da caracterização de prática de genocídio no Brasil durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro.

É preciso ter sempre em mente que a vontade de punir muitas vezes se sobrepõe à racionalidade jurídica, a qual deve pautar os debates em torno dos enquadramentos de condutas de qualquer cidadão, inclusive do presidente da República, um dos fundamentos basilares do Estado de Direito.

Quem primeiro usou o termo genocídio foi Raphael Lemkin, advogado polonês de origem judaica, que emigrou para os Estados Unidos em 1941. Lemkin fez uso do termo não para tratar dos crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial, mas para falar do genocídio armênio. Em 1945, o especialista travou uma enorme batalha para que o crime de genocídio fosse incluído entre as acusações do Tribunal de Nuremberg. Finalmente, em 1946, a Convenção das Nações Unidas cria o crime de genocídio como um crime internacional. No Brasil, é incorporado ao direito penal por meio de lei em 1956.

A definição de genocídio é uma só: a tentativa ou a consumação de atos tendentes a exterminar, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, religioso ou racial. Bolsonaro já demonstrou inúmeras vezes ​—como no fatídico episódio na Hebraica do Rio de Janeiro, em 2018— desapreço por indígenas e quilombolas, mas seus atos enquanto presidente não têm sustentação jurídica como crime de genocídio.

Por mais tentadora que seja a vontade de incriminação, no trágico caso do Brasil, cuja política negacionista e obscurantista adotada pelo governo federal vitimou mais de 600 mil pessoas, não se verificam as elementares típicas de um crime de genocídio.

Apesar do evidente e maior impacto em grupos vulneráveis, como comunidades indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas e periféricas das metrópoles, além, é claro, dos chamados grupos de risco, idosos e pessoas com comorbidades, não se pode afirmar que esta foi uma política empregada com propósitos de extermínio de raça, de grupos religiosos, étnicos ou raciais.

Ela foi muito além. Trata-se de uma política ampla e generalizada de adoção da tese de imunidade de rebanho contra toda a população.

Não por outro motivo, o relatório da CPI indiciou o presidente por diversos crimes, inclusive crime contra a humanidade, mas não por genocídio. Dois juristas insuspeitos também repelem o termo genocídio para definir a conduta do presidente, como Sylvia Steiner, primeira brasileira a ocupar o cargo de juíza no TPI (Tribunal Penal Internacional), e Luciano Mariz Maia, procurador da República responsável pela primeira condenação de genocídio no Brasil.

Só é crime o que está na lei. O direito penal não deve ser utilizado com uma sanha punitivista e arbitrária, pois, dessa forma, como nas parábolas literárias, acabamos nos assemelhando ao que pretendemos combater.

Bolso-nazismo

O anti-judaísmo é uma das formas mais longevas de discriminação religiosa, racial e étnica. Atravessa ao menos dois milênios de história.

​Na alta Idade Média se manifestou sob a forma de perseguição religiosa, e o deicídio (com judeus acusados de matar Cristo) era motivação para a explosão de ódio e violência contra comunidades judaicas na Europa. Mais tarde, na baixa Idade Média, os judeus europeus eram vítimas de falsas acusações e fake news, acusados de praticar bruxaria, matar crianças e causar a peste.

Na modernidade, surgiram os estereótipos socioeconômicos relacionando a comunidade a estigmas como “avarentos” e “dinheiristas”. Os judeus foram colocados como protagonistas de uma conspiração internacional, homogênese perversa, que intencionava, nessa perspectiva, degenerar e corromper a humanidade. É a transformação do anti-judaísmo tradicional no antissemitismo moderno.

Já no século 19, a figura do judeu passa a ser o estrangeiro, o diferente, o apátrida traidor. O caso Dreyfus é o início simbólico desse antissemitismo moderno. O capitão judeu do exército francês passa a incorporar todos os valores racistas e preconceituosos do antissemitismo: é um traidor por ser um judeu. Degenera e coloca em risco o Estado francês por ser judeu, ou seja, é membro de uma conspiração internacional.

Nessa toada surge o livro “Protocolos dos Sábios de Sião”, ou “Os Protocolos de Sião”, um texto antissemita que tenta justificar todas as tragédias do mundo como sendo produtos de uma conspiração judaica para dominar todos os países e governos.

Não é casual que Adolph Hitler tenha bebido nessa fonte para escrever “Minha Luta”, livro embrião do regime nazista, que toma o poder na Alemanha de 1930 e que acaba produzindo, ao fim e ao cabo, o genocídio de milhões de judeus e outros grupos considerados minorias na Europa —e cujo símbolo maior foram os campos de extermínio.

Em um mundo ideal, um judeu jamais poderia apoiar líderes políticos que pregam alguma forma de xenofobia, discriminação, desrespeito ou intolerância com outros povos. A mera lembrança do genocídio, porém, não é suficiente para educar politicamente os descendentes de suas vítimas.

Quando Jair Bolsonaro esteve no clube Hebraica do Rio de Janeiro e comparou quilombolas a gado gordo, ele estava efetivamente reproduzindo um pensamento racista —mas alguns preferiram relevar. Quando o secretário da Cultura gravou um vídeo emulando Joseph Goebbels, tampouco despertou a ira ou a revolta daqueles que queriam enxergar Bolsonaro como o amiguinho dos judeus e de Israel. O presidente, no passado, já havia feito elogios a Hitler. Mas isso também não foi grave o suficiente para encará-lo como um líder racista e antissemita.

A oposição da esquerda internacional a Israel contribuiu para que parcela da comunidade judaica buscasse refúgio na extrema direita. Ledo e grave engano.

A extrema direita polonesa e húngara e os supremacistas americanos —parceiros ideológicos do bolsonarismo— não escondem seu ódio aos judeus. Idolatram uma Israel branca e cristã, a Israel imaginária, enquanto que, de outro, não toleram o estranho, o diferente, o estrangeiro —em suma, o judeu histórico. Criam um judeu para chamar de seu, enquanto continuam a acreditar nas teses supremacistas e conspiratórias típicas do antissemitismo e do racismo estrutural.

A visita de deputada de um partido de extrema direita alemão a Bolsonaro nos fez lembrar disso. Posições xenófobas e que relativizam o Holocausto não podem ser toleradas. Judeus e não judeus devem entender os vínculos ideológicos do bolsonarismo com o nazismo.

Eles nunca foram ocultos, mas hoje estão mais claros do que nunca, sorridentes e saindo do armário para os braços de uma deputada neonazista. Só não vê quem não quer.

Foro privilegiado às avessas

julgamento de Lula no Supremo Tribunal Federal tem suscitado muitas controvérsias. Sergio Moro é suspeito? Curitiba era ou não competente para julgá-lo? Estas são questões jurisdicionais que apenas o STF, em última instância, pode resolver.

Há, no entanto, outras questões envolvendo o caso, que já não dizem respeito apenas ao caso concreto, mas ao funcionamento da própria Justiça penal.

Achar que o plenário pode resolver qualquer coisa é uma dessas questões. Afetar ao pleno uma causa virou moda. Mas nem sempre está de acordo com o regimento. O regimento prevê a possibilidade de um habeas corpus, por exemplo, ser levado para o pleno, em vez de ser julgado pela turma, o juiz natural, quando se trata de resolver uma controvérsia jurídica relevante. Jurídica, não política!

No próprio caso Lula, chamou atenção quando o habeas corpus que discutia prisão em segunda instância foi levado para o pleno, e não julgado na segunda turma, onde a maioria dos ministros vinha mantendo em liberdade os condenados até o trânsito em julgado.

A justificativa era a de que se tratava de questão relevante juridicamente, o que notoriamente não era verdade. Se fosse o caso de julgar uma questão importante para o direito brasileiro, o que deveria ter sido pautado pelo pleno eram as ADCs (Ações Declaratórias de Constitucionalidade) 43, 44 e 54, que discutiam a questão sem personalismos ou fulanizações.

Mas não. Pautaram o HC do Lula. E denegaram o HC contra o voto de três ministros, que teriam feito maioria a favor do ex-presidente se o julgamento tivesse ocorrido na turma. Pior, o HC foi denegado por diferença de um voto porque a ministra Rosa Weber —mesmo sendo contra a prisão em segunda instância— preferiu, naquele momento, seguir o entendimento majoritário por se tratar de um caso específico e não de uma questão objetiva, ou seja, por não ser o julgamento das ADCs.

Ora, então o pleno naquele momento julgou uma pessoa e não uma questão jurídica relevante. E julgou subtraindo o réu de seu juiz natural, que era a segunda turma. Fosse Lula um réu anônimo, teria permanecido em liberdade como tantos outros que tiveram habeas corpus concedido pela segunda turma na época. Lula teve um julgamento diferenciado e foi prejudicado porque era o Lula.

O mesmo parece se avizinhar agora com o julgamento da incompetência do ex-juiz Sergio Moro. A incompetência de Curitiba para casos que não digam respeito à Petrobras já está mais do que pacificada no STF. Qual seria a razão para submeter o caso de Lula a plenário? O próprio ministro Edson Fachin, ao decidir monocraticamente, realçou que se trata de questão incontroversa. Se não há relação com Petrobras, Curitiba não é competente.

Ah, mas precisa ver se neste caso há ou não relação com a Petrobras. Pode até ser. Mas isto é questão de prova, casuísta, e não uma questão jurídica relevante, como aponta o regimento. Ou seja, a Procuradoria-Geral da República tem o direito de recorrer da decisão monocrática e submeter a questão ao colegiado. Só que o colegiado competente para dirimir questões como esta é a turma e não o plenário.

Usar o plenário para aleatoriamente julgar réus relevantes, em vez de questões jurídicas relevantes, como preconiza o regimento interno, é uma forma perigosa de se criar um juízo de exceção para determinados réus. Um foro privilegiado às avessas.

Eleições da OAB/SP: Da imprescindibilidade do voto à distância

Em novembro desse ano, portanto, daqui a sete meses, serão realizadas as eleições para os representantes da Seccional Paulista da OAB. Será escolhida uma chapa que preencherá 176 cargos, entre a diretoria, Conselho Seccional, presidência da CAASP e os representantes no Conselho Federal.

Nas últimas eleições, realizadas no ano de 2018, dos aproximadamente 300.000 advogados e advogadas regularmente inscritos, cerca de 150.000 compareceram às urnas, distribuídas pelos vários pontos de votação da capital e do interior. Trata-se de evento de expressiva magnitude, que promove grande concentração de pessoas e cuja imagem pode ser representada pelo tradicional congestionamento de veículos nos arredores das faculdades que cedem ou alugam suas estruturas para votação na capital do estado de São Paulo. Trata-se, também, de um evento impensável nos dias de hoje.

Infelizmente, a pandemia do coronavírus se agravou com violência no Brasil e, hoje, atinge com particularidade o Estado de São Paulo. Já são mais de 12 milhões de brasileiros e brasileiras vitimados pela doença, dentre os quais, mais de 300.000 perderam suas vidas. Desse total, 71.747 pereceram em solo paulista e dos cerca de 3.000 novos óbitos diários que se avolumam atualmente, cerca de 1.000 ocorrem nesse estado.

O entusiasmo em torno do início do processo de vacinação no país foi logo suplantado pelos números estarrecedores de novos casos e óbitos, pela descoberta de cepas ainda mais letais e pela constatação agastada de que, infelizmente, medidas de isolamento social são indispensáveis para evitar um premente colapso de nossos sistemas de saúde.

O que se tem hoje é um cenário nebuloso. Nem mesmo a duração da imunidade é conhecida. O prognóstico, infelizmente, é de que ainda levará muito tempo para a vida voltar ao normal. O mundo, contudo, não será mais o mesmo de março de 2020. Impossível retroceder em certos aspectos.

Afinal, na dificuldade e no isolamento, foi a tecnologia que salvou do abismo até mesmo aqueles que com ela não simpatizavam. Conhecemos da noite para o dia o zoom, o meets, o teams e os afins, e percebemos que por meio de plataformas é possível confraternizar, interagir, realizar eventos, advogar e julgar. E, por que não, votar?

Nesse contexto, a promoção de um evento que, em apenas um dia, demandaria o deslocamento de cerca de 200.000 pessoas, entre advogados e funcionários da organização, não é apenas uma atitude impensável: é uma atitude irresponsável e imoral.

Por outro lado, oriunda de nossa tradição democrática – cujos alicerces foram fincados com vital auxílio da própria Ordem dos Advogados do Brasil – a não realização do pleito eleitoral também se afigura impensável. Felizmente a situação não representa um dilema instransponível.

É possível – e necessário – conciliar as indispensáveis medidas sanitárias de distanciamento social e de resguardo à saúde e à vida com a inexorável preservação do sistema representativo de escolha dos mandatários do nosso órgão de classe. Para tanto, o quanto basta é a adoção das eleições remotas por meios virtuais, o que já será realidade neste ano em diversas seccionais ao redor do Brasil, como as do Distrito Federal e Territórios, do Paraná, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Tocantins, de Pernambuco, do Ceará e do Rio Grande do Norte.

 

Isto porque, no ano passado o Conselho Federal da OAB alterou o art. 1°, parágrafo único, do provimento 146/11-CFOAB, facultando a cada seccional a opção pela realização de certame eleitoral com o sistema de votação que melhor atenda às necessidades de saúde e organização de seus eleitores, seja ele presencial ou virtual à distância.

São Paulo tem hoje, mais do que nunca, a necessidade de implantação das eleições virtuais e à distância.

Ainda que não se estivesse diante de um cenário de calamidade sanitária, a adoção do pleito virtual urge de maneira clara, o que se constata pelo impressionante índice de abstenção nas últimas eleições.

Assim sendo, a adoção de eleições por meios que permitam o voto de maneira remota se afigura como poderoso instrumento de fortalecimento da participação dos eleitores no pleito de escolha dos representantes da classe. O ambiente virtual, ademais, fomenta a inclusão de novos participantes no processo de escolha: seja por candidaturas novas, mais diversas e mais plurais, seja pela inclusão de um imenso número de eleitores que, sem sombras de dúvidas, estarão mais estimulados a se envolver no processo democrático de escolha de seus representantes.

Atualmente, existem meios tecnológicos cada vez mais seguros e econômicos para a realização de eleições on-line, de modo que a adoção do voto à distância se tornou imperativa e não pode ser retardada com base em subterfúgios de ordem prática. São inúmeras as empresas que fornecem arquitetura tecnológica para a realização de eleições desse cariz, sendo o processo auditável por terceiros e, portanto, deveras confiável.

Diversas instituições já implantaram a medida, sem notícias de que possa ter causado qualquer prejuízo aos pleitos. A título de exemplo, o Conselho Federal de Enfermagem adotou o voto pela internet em 26 unidades federativas, atendendo a 2.401.015 pessoas aptas para votar virtualmente.

Em conclusão, aquilo que já seria conveniente – pela eficiência, pela rapidez, pela economia e pelo aumento da participação dos integrantes de nossa ordem, o que asseguraria uma OAB mais diversa, mais plural e mais representativa – hoje se eleva a uma imposição de ordem ética e humanitária. Espera-se que Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, honrando sua tradicional participação nos assuntos de interesse da sociedade, seja sensível a essa realidade e não se omita em seu papel fundamental.

Afinal, não se pode optar pelo método às vésperas da eleição. O planejamento deve começar agora.

Análise: As ordens jurídica e democrática postas à toda prova

prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) mostra como a democracia no Brasil vive o paradoxo da tolerância. Se formos tolerantes demais com os intolerantes, vencerá a intolerância. Como lidar com um deputado federal que ostensivamente desafia a ordem democrática, ofende ministros, incita a violência e a intolerância?

Não há menor dúvida de que, de forma consciente e voluntária, o deputado testa os limites da sua imunidade parlamentar, os limites da liberdade de expressão e do ordenamento jurídico como um todo.

A conduta do deputado parece se enquadrar com perfeição naquilo que a Constituição Federal, no seu artigo 55, II, chama de falta de decoro parlamentar e enseja a perda do mandato. Uma das hipóteses de falta de decoro é a do parlamentar que abusa de suas prerrogativas. A questão é que quem decide sobre a perda de mandato nestes casos é a casa legislativa onde está o congressista.

STF aparentemente não quis esperar para ver, preferiu forçar a porta. E acabou testando também os limites da ordem jurídica. Uma primeira questão é até onde vai a amplitude da imunidade parlamentar por palavras e votos. Pode o parlamentar responder criminalmente por suas manifestações ou a imunidade é ilimitada? Ou ainda, onde termina a imunidade e onde começam as condutas criminosas previstas na Lei de Segurança Nacional (diploma usado para determinar a prisão do deputado)?

Neste ponto, ninguém poderá subtrair da Suprema Corte o papel constitucional de definir estas fronteiras.

O que, no entanto, não se coaduna com a ordem jurídica vigente é o chamado “mandado de prisão em flagrante”. Como a Constituição proíbe que parlamentares sejam presos, a não ser em flagrante delito, é a segunda vez que a Suprema Corte usa do expediente da ordem judicial de flagrante para prender um congressista. A primeira foi na Lava Jato, contra o então senador Delcídio do Amaral.

O flagrante, porém, é quando a pessoa é pega com a boca na botija. Exige instantaneidade. Pode ser preso em flagrante quem “está cometendo o crime” ou “acabou de cometê-lo” (por exemplo está ao lado da vítima morta com a faca cheia de sangue), mas nunca alguém cuja ação já está no passado, ainda que recente. Flagrante seria se a polícia o detivesse durante o discurso ou a gravação do vídeo. Crimes permanentes, como é o sequestro, permitem flagrante enquanto estiverem sendo praticados. Não era este o caso.

O STF, pesa dizer, confundiu reiteração e efeitos permanentes de um crime (o fato de o vídeo estar nas redes) com permanência delitiva, para poder argumentar assim que o deputado estava em pleno cometimento do crime quando foi preso. Tamanha é a elasticidade deste entendimento que, levado a ferro e fogo, daqui a quarenta anos, alguém poderá ser processado por um vídeo existente na rede, ao argumento de que a prática criminosa nunca cessou. Os próprios vídeos de Bolsonaro exaltando o AI-5, a tortura e fazendo apologia ao assassinato do FHC circulam até hoje impunemente pelas redes. Embora criminoso e deplorável, não configura hipótese legitimadora de flagrante delito.

Nada é mais ilustrativo de que as chamas do flagrante já se apagaram do que o recurso a uma decisão judicial escrita e fundamentada buscando reacendê-lo. Em suma: ordem judicial de prisão em flagrante é uma contradição em termos.

Se o flagrante é um óleo sobre tela com cheiro de tinta fresca, a ordem judicial de prisão em flagrante é um pôster velho e desbotado.

Qual é, afinal, o papel do juiz?

Quando as mensagens trocadas entre procuradores da Força Tarefa da Lava Jato e o ex-juiz Sérgio Moro foram liberadas pelo STF, houve forte reação da comunidade jurídica. Muita gente, porém, principalmente os menos familiarizados com a praxe judiciária, não conseguiu alcançar a gravidade que seu conteúdo revela.

Afinal, não é normal conversas entre juízes e promotores? As partes não podem conversar com o juiz fora dos autos? O que está nas mensagens não é algo corriqueiro, que ocorre todos os dias, e que faz parte da praxe forense? Para combater o crime organizado, o juiz não precisaria estar assim, lado a lado com os procuradores? Afinal, qual seria realmente o papel de um juiz na justiça criminal?

Estas perguntas poderiam compor uma biblioteca inteira, em seções que vão desde Teoria do Estado até o estudo especializado do processo penal.

Deixemos por ora as teorias e os tratadistas. Usemos o bom senso.

Advogados e promotores conversam com juízes, às vezes até mesmo por mensagem eletrônicas. Nisto não há qualquer problema ou ilegalidade. Mas, não é recomendável que conversas sobre o caso em que ambos atuam sejam feitas fora do ambiente forense. É um protocolo que costuma ser respeitado à risca. No mundo jurídico, soa como gafe, para dizer o menos, abordar um juiz fora do seu habitat (o fórum) para falar de uma determinada causa.

A troca diária de mensagens entre o juiz e os acusadores (ou seja, entre o juiz e uma das partes) já não seria, digamos assim, uma prática muito ortodoxa. Ainda assim, não chegaria a ser ilegal, e muito menos criminosa. As mensagens da qual ora tomamos conhecimento, porém, revelam algo muito mais grave.

Nelas, vê-se um juiz interessado pessoalmente no sucesso da demanda cujo julgamento lhe foi confiado. Mais do que isto, vê-se um juiz assumindo posturas de comando em relação à parte, dando ordens, cobrando providências, repreendendo a desenvoltura em audiência, ou seja, assumindo, enfim, postura de quem não está lá para julgar, mas para vencer. Bastante semelhante à daqueles técnicos de vôlei que, no intervalo, reúnem a equipe, e de forma enérgica orientam novas táticas, ao que a equipe reponde apenas com aqueles gritos de guerra motivacionais típicos da caserna, e que foram sendo incorporados à prática esportiva.

Agora imaginem esta mesma cena ocorrendo às escondidas no vestiário, e em vez de pelo técnico as ordens ao time fossem dadas pelo juiz do jogo…

É neste ponto que as mensagens não apenas impressionam, como escandalizam. Como pode julgar com isenção o juiz que comemora ao saber que a denúncia contra o réu (a inicial do processo criminal) foi finalmente protocolada? Como pode um juiz julgar com imparcialidade um réu, se ele mesmo apontou para a acusação os caminhos que deveriam ser feitos para se obter a condenação? Se o juiz está consorciado desde o início com a acusação, qual a chance de um réu acusado por equívoco ser inocentado? Como pode um juiz fiscalizar o trabalho da parte, e em alguns momentos até repreendê-la, para que a prova contra o réu pudesse ser melhor produzida?

Se um juiz assim não for considerado parcial, nenhum outro, em nenhuma outra circunstância, poderá sê-lo.

Eis o grande desafio…