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Apropriação indébita tributária: reflexos do atual entendimento do STF
Em agosto de 2018, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 399.109/SC, pacificou o entendimento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias, mesmo que declarado, é fato típico.
O caso seguiu para o Supremo Tribunal Federal, que, no julgamento do RHC 163.334/SC, em dezembro de 2019, referendou a decisão do STJ e, por sua vez, deu novos contornos à criminalização dos ilícitos tributários, especificamente no que tange à espécie de apropriação indébita. O inteiro teor do acórdão foi publicado no último mês de novembro.
O presente artigo não intenta questionar a racionalidade jurídica da decisão ou a possível usurpação de competência típica do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário, mas refletir sobre os impactos oriundos do atual entendimento jurisprudencial.
Notadamente, debruça-se sobre a proposição de que a nova tese fixada pelo STF traduz a exigência de novos elementos constitutivos para a configuração delitiva dos crimes de apropriação indébita tributária, não somente daquele previsto pelo artigo 2º, II, da Lei nº 8.137/1990 quando do não recolhimento de ICMS.
Partindo-se da premissa de que o mero inadimplemento tributário não deve ser considerado fato típico, o ministro relator do RHC 163.334/SC, Luís Roberto Barroso, propôs uma análise teleológica para concluir que a criminalização do delito tributário busca responsabilizar “o devedor contumaz, que não paga quase que como estratégia empresarial, que lhe dá vantagem competitiva e permite que venda mais barato que os outros, induzindo os demais à mesma estratégia criminosa”. O ministro relator sinalizou ainda que “o que estamos tentando enfrentar é o comportamento empresarial ilegítimo que gera concorrência desleal”.
Pautado nesse discurso, o plenário do STF acabou por fixar a tese de que o “contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990”, uma espécie de apropriação indébita.
Vê-se, assim, que o entendimento exposto em referido leading case estabeleceu critérios para a devida diferenciação entre o crime tributário e o mero inadimplemento fiscal. Entre os requisitos de tipicidade merecem destaque a contumácia e o dolo especial de apropriação.
A contumácia, agora convertida em requisito de tipicidade objetiva, enseja lesão relevante ao bem jurídico tutelado e se expressa pela adoção da inadimplência como modus operandi do empresário.
Assim, sob um primeiro aspecto, exige-se que o não pagamento seja sistemático, com a repetição de omissões no recolhimento e seu emprego habitual a compor estratégia negocial da empresa.
Sob um segundo aspecto, o julgado determina a afetação do bem jurídico protegido a partir da repetição da conduta proibida e não do valor inadimplido.
A orientação, contudo, não afasta a já consolidada aplicação (também no âmbito da tipicidade) do princípio da insignificância aos crimes contra a ordem tributária, sempre que o débito tributário não atingir o montante mínimo sujeito à execução fiscal. Nesse sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça considera há tempos que incide a “insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho quando o débito tributário verificado não ultrapassar o limite de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei n. 10.522/2002, com as atualizações efetivadas pelas Portarias n. 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda” [1].
Embora o acórdão do RHC 163.334/SC não estabeleça o período específico de inadimplência que caracterizaria a contumácia, a jurisprudência já tem dado algumas diretrizes sobre o assunto. No último mês de setembro, no julgamento do AgRg no REsp 1865750/SC, a 6ª Turma do STJ absolveu contribuinte que deixara de recolher o ICMS por três meses, justamente porque tal circunstância não indicaria comportamento contumaz:
“Tendo o recorrente sido condenado por deixar de recolher o tributo por três meses, nos meses de julho, agosto e outubro de 2011, inexistindo referência a ser agente contumaz ou sobre a existência de processo administrativo fiscal para apurar apropriação em períodos posteriores a esse lapso temporal, deve ser reconhecida a atipicidade da conduta” [2].
Em outra oportunidade, no REsp 1852129/SC, o STJ considerou atípica a conduta do contribuinte que não recolhera o tributo por quatro meses. Naquela oportunidade, pontuou o ministro Sebastião Reis Júnior que “os elementos probatórios coligidos rechaçam a existência de contumácia delitiva, pois, do que se colhe da moldura fática delineada na instância ordinária, a ausência do recolhimento do ICMS declarado consubstanciou um evento isolado na gestão da pessoa jurídica pois perdurou por um pequeno período de tempo (quatro meses), inexistindo menção a nenhum processo administrativo fiscal iniciado para apurar apropriação subsequente a esse lapso temporal” [3].
Ainda no que tange ao pressuposto típico da contumácia, um importante reflexo prático consiste no fato de que o novo entendimento obstaculiza a imputação pelo delito de apropriação indébita na forma de concurso material ou crime continuado.
Isso porque o concurso material “existe em situações de sucessividade de tipos de injusto independentes, iguais ou desiguais” [4] e o crime continuado, por seu turno, é composto por “situações de pluralidade de fatos típicos de igual espécie, produzidos por uma pluralidade de ações ou de omissões de ação, realizadas em condições de tempo, lugar, modo de execução e outras indicadoras de que os fatos típicos posteriores são continuações do primeiro” [5].
Como a contumácia, conforme definido pelo próprio ministro relator, explicita-se pela inadimplência “reiterada” e “sistemática”, conclui-se que o não pagamento habitual é critério típico para a configuração de um único crime.
O dolo específico de apropriação, por sua vez, no âmbito da tipicidade subjetiva, materializa-se pela ação predatória voltada ao enriquecimento ilícito, lesão à concorrência ou financiamento econômico às custas do Erário.
De acordo com o precedente, devem ser verificados indícios de que o contribuinte age com o fim de locupletar-se indevidamente dos valores devidos ao Estado. Como exemplos desse especial intento, o STF aponta “o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de ‘laranjas’ no quadro societário, a falta de tentativa de regularização dos débitos, o encerramento irregular das suas atividades, a existência de débitos inscritos em dívida ativa em valor superior ao capital social integralizado etc”.
Vê-se, assim, que o STF impôs o que Alaor Leite e Ademar Borges denominaram “cláusulas de restrição” para a responsabilização penal, limitando “os efeitos da opção criminalizadora” [6].
Referida compreensão já vem sendo adotada pela jurisprudência. A título exemplificativo, é possível citar recentíssima decisão proferida pelo STJ, sob relatoria da ministra Laurita Vaz:
“Nos termos do atual entendimento do Pretório Excelso, inafastável a conclusão de que, conquanto o fato deletério atribuído ao ora agravante, a princípio, se subsuma à figura penal antes mencionada, a ausência de contumácia – o débito com o fisco se refere a tão somente um mês – conduz ao reconhecimento da atipicidade da conduta e, por conseguinte, à absolvição do réu” (STJ, AgRg no Recurso Especial n. 1.867.109/SC, rel. ministra Laurita Vaz, 6ª Turma, DJe: 4/9/2020).
Compreendemos que as novas diretrizes do STF devem ser aplicadas a todos os casos que envolvem crimes de apropriação indébita tributária, tendo em vista os fundamentos que sustentam a decisão proferida no âmbito do RHC 163.334/SC (tanto suas premissas quanto as conclusões obtidas por meio dos métodos interpretativos aplicados).
Em primeiro lugar, porque as “premissas para o exame da tipicidade penal”, presentes no voto condutor, não versam exclusivamente sobre o ICMS e, sim, sobre o Direito Penal Tributário de forma geral.
A primeira premissa é a de que o Direito Penal deve ser efetivo em dissuadir a criminalidade, igualitário em sua aplicação, e moderado, evitando-se excesso de tipificações e exacerbação de penas.
A segunda premissa é a de que pagar tributos é um dever fundamental de todos os cidadãos com capacidade contributiva. Dessa forma, a incidência do Direito Penal no âmbito tributário seria excepcional, mas necessária. Nesse ponto, o ministro relator aduz que “o crime fiscal nada mais é do que outra face da corrupção: a corrupção desvia dinheiro dos serviços públicos; o crime fiscal impede que sequer exista dinheiro para ser utilizado nesses serviços”.
Por derradeiro, a última premissa consiste no fato de que o mero inadimplemento tributário é apenas um ilícito administrativo, de forma que, para que o não recolhimento caracterize crime, é preciso que haja “algo a mais, uma reprovabilidade especial que justifique o tratamento mais gravoso”.
Em segundo lugar, a extensão dos requisitos típicos aos demais casos de apropriação indébita tributária se justifica ante a análise dos próprios métodos interpretativos que embasaram a fixação da tese: interpretações semântica, histórica (com referências de direito comparado), consequencialista e restritiva.
A interpretação semântica demonstraria que, na apropriação indébita, a censurabilidade da conduta consiste na apropriação, pelo agente, de valor que não lhe pertence.
Da interpretação histórica e da referência ao direito comparado, derivariam as conclusões de que: 1) o processo legislativo da Lei nº 8.137/1990 aponta para a tipicidade da conduta de omissão do não recolhimento de tributo retido na fonte ou transferido economicamente na cadeia produtiva; e que 2) há, em diversos países, tipos penais que criminalizam o não repasse ao Estado de valor recolhido a título de tributo.
A interpretação consequencialista assinala a ideia de que os crimes tributários são um mal social grave, que afetam o erário e a livre concorrência, e que o contexto brasileiro de fragilidade financeira exigiria a criminalização da falta de recolhimento intencional e reiterada. Por meio desse método interpretativo, o ministro Luís Roberto Barroso traz a única especificidade em relação ao ICMS: afirma ser esse o “tributo mais sonegado no país”.
Por fim, no âmbito da interpretação restritiva, o voto condutor reforça a necessidade de se esclarecer a diferença entre a mera inadimplência e a conduta que lesiona de forma significativa o bem jurídico tutelado.
Vê-se, pois, que tanto as “premissas para o exame da tipicidade penal” quanto os resultados oriundos dos métodos interpretativos utilizados apresentam justificativas genéricas para a fixação da tese, o que refuta a aplicabilidade do precedente exclusivamente ao devedor contumaz de ICMS.
Poderíamos somar às considerações do ministro relator e pontuar que as aludidas “cláusulas de restrição”, à luz de uma interpretação sistemática — “que tem por objetivo esclarecer o significado da norma isolada no contexto do sistema de normas” [7] —, impõem-se a todas as espécies de apropriação indébita tributária e quiçá com maior exigência no caso da previdenciária, cuja pena é mais grave (de dois a cinco anos e multa).
Nesse sentido, a decisão proferida no âmbito do RHC 163.334/SC pode acabar solucionando diversas injustiças da atual sistemática dos delitos tributários [8] — que confunde sonegadores e devedores contumazes com meros inadimplentes — e ensejar a limitação de uma criminalização desmedida.
Por essas razões, entendemos que a racionalidade jurídica que fundamentou a decisão do Supremo Tribunal Federal traduz a exigência dos novos elementos típicos objetivos e subjetivos a todos os delitos de apropriação indébita tributária no Direito brasileiro.
[1] RESP 1688878/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, DJe: 04/04/2018. No mesmo sentido: STJ, AgRg-HC 549.428/PA; QUINTA TURMA; Rel. Ministro JORGE MUSSI, DJe: 29/05/2020.
[2] STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial 1.865.750/SC, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, DJe: 29/09/2020.
[3] STJ, Recurso Especial 1852129/SC, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe: 26/06/2020.
[4] JESCHECK/WEIGEND, Lehbuch des Strafrechts. In: CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: Parte Geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 402.
[5] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: Parte Geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 407.
[6] LEITE, Alaor; BORGES, Ademar. Parâmetros interpretativos para a criminalização do não recolhimento de ICMS próprio. Jota, 17/12/2019.
[7] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: Parte Geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 59.
[8] TOFIC SIMANTOB, Fábio; OLIVEIRA, Júlio M. Para o bem ou para o mal?. Valor Econômico. 06/10/2020. Legislação. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/10/06/para-o-bem-ou-para-o-mal.ghtml.