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Análise: As ordens jurídica e democrática postas à toda prova
A prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) mostra como a democracia no Brasil vive o paradoxo da tolerância. Se formos tolerantes demais com os intolerantes, vencerá a intolerância. Como lidar com um deputado federal que ostensivamente desafia a ordem democrática, ofende ministros, incita a violência e a intolerância?
Não há menor dúvida de que, de forma consciente e voluntária, o deputado testa os limites da sua imunidade parlamentar, os limites da liberdade de expressão e do ordenamento jurídico como um todo.
A conduta do deputado parece se enquadrar com perfeição naquilo que a Constituição Federal, no seu artigo 55, II, chama de falta de decoro parlamentar e enseja a perda do mandato. Uma das hipóteses de falta de decoro é a do parlamentar que abusa de suas prerrogativas. A questão é que quem decide sobre a perda de mandato nestes casos é a casa legislativa onde está o congressista.
O STF aparentemente não quis esperar para ver, preferiu forçar a porta. E acabou testando também os limites da ordem jurídica. Uma primeira questão é até onde vai a amplitude da imunidade parlamentar por palavras e votos. Pode o parlamentar responder criminalmente por suas manifestações ou a imunidade é ilimitada? Ou ainda, onde termina a imunidade e onde começam as condutas criminosas previstas na Lei de Segurança Nacional (diploma usado para determinar a prisão do deputado)?
Neste ponto, ninguém poderá subtrair da Suprema Corte o papel constitucional de definir estas fronteiras.
O que, no entanto, não se coaduna com a ordem jurídica vigente é o chamado “mandado de prisão em flagrante”. Como a Constituição proíbe que parlamentares sejam presos, a não ser em flagrante delito, é a segunda vez que a Suprema Corte usa do expediente da ordem judicial de flagrante para prender um congressista. A primeira foi na Lava Jato, contra o então senador Delcídio do Amaral.
O flagrante, porém, é quando a pessoa é pega com a boca na botija. Exige instantaneidade. Pode ser preso em flagrante quem “está cometendo o crime” ou “acabou de cometê-lo” (por exemplo está ao lado da vítima morta com a faca cheia de sangue), mas nunca alguém cuja ação já está no passado, ainda que recente. Flagrante seria se a polícia o detivesse durante o discurso ou a gravação do vídeo. Crimes permanentes, como é o sequestro, permitem flagrante enquanto estiverem sendo praticados. Não era este o caso.
O STF, pesa dizer, confundiu reiteração e efeitos permanentes de um crime (o fato de o vídeo estar nas redes) com permanência delitiva, para poder argumentar assim que o deputado estava em pleno cometimento do crime quando foi preso. Tamanha é a elasticidade deste entendimento que, levado a ferro e fogo, daqui a quarenta anos, alguém poderá ser processado por um vídeo existente na rede, ao argumento de que a prática criminosa nunca cessou. Os próprios vídeos de Bolsonaro exaltando o AI-5, a tortura e fazendo apologia ao assassinato do FHC circulam até hoje impunemente pelas redes. Embora criminoso e deplorável, não configura hipótese legitimadora de flagrante delito.
Nada é mais ilustrativo de que as chamas do flagrante já se apagaram do que o recurso a uma decisão judicial escrita e fundamentada buscando reacendê-lo. Em suma: ordem judicial de prisão em flagrante é uma contradição em termos.
Se o flagrante é um óleo sobre tela com cheiro de tinta fresca, a ordem judicial de prisão em flagrante é um pôster velho e desbotado.