Há um peso e duas medidas na política contra drogas

Causou certa polêmica a decisão do Governo do Estado de São Paulo, anunciada na semana passada, de internar compulsoriamente, mesmo contra sua vontade, os usuários de drogas que perambulam pelas ruas do centro da cidade.

Embora haja alguns consensos aparentes nesta questão, como o de que as pessoas com nível de dependência mais grave, mesmo à sua revelia, não só necessitam como fazem jus a tratamento médico custeado pelo poder público, a preocupação dos céticos parece ser mais com os rumos que uma política como esta pode tomar, do que propriamente com a ideia em si.

Sim, porque quando se fala em drogas e dependência química, logo entram em cena alguns fantasmas, que vão desde a condenação moral e ética, até o medo e seu corolário mais sombrio, o desejo de contenção social do usuário contumaz, como forma de profilaxia penal. E é neste ponto específico da questão que se abre uma fenda enorme por onde penetram políticas que, inevitavelmente, nos remetem a momentos dramáticos da história da humanidade, como a higienização da população e a eliminação social dos “perigosos” ou “indesejáveis”.

De fato, a preocupação não parece desarrazoada, porque, a despeito do discurso oficial invocar sempre o salvamento de vidas, não há como dissociar do plano governamental o interesse na recuperação de uma área bastante degradada da cidade, onde o belo e o horrendo parecem conviver lado a lado.

 

Preocupa sobremaneira, ainda nesta toada, a ideia de convocar uma plêiade de profissionais, advogados, promotores, médicos e juízes, “escolhidos” especificamente para levar a cabo a tal política de internação. Por mais bem intencionados que possam ser esses profissionais, a experiência histórica nos mostra que quando homens da lei e auxiliares da Justiça são escolhidos para fazer funcionar uma política específica de governo, eles correm o risco de se tornarem meros atores de uma “farsa judicial” destinada a legitimar um “escopo maior”, neste caso, a internação a qualquer custo.

Levado ao seu grau máximo, farsas judiciais foram responsáveis no curso da história por legitimar inclusive políticas sanguinárias, a exemplo da convenção jacobina e das “troikas” soviéticas, ambas de triste memória, responsáveis por dar ares de legalidade a políticas de extermínio em massa dos considerados adversários do regime.

Antes, porém, que um exagero comparativo possa comprometer a seriedade da preocupação externada, é bom lembrar que “as tragédias se repetem como farsas”, ou seja, os erros de outrora voltam com novos disfarces e é preciso estar atento para identificá-los e não repeti-los.

E uma boa forma de identificar uma política equivocada é colocá-la dentro de um contexto maior, que no caso da internação compulsória deve ser o próprio sistema de Justiça criminal, em cujo dia-a-dia a questão da dependência química é tratada quase com desdém.

Quem milita na Justiça criminal, sabe que o diagnóstico de dependência química é uma lenda urbana: os médicos raramente diagnosticam a doença, enquanto promotores e juízes raramente contestam o parecer do médico, mantendo, em vez disto, os acusados — muitos deles, aliás, presos por pequenos furtos em locais como a “Cracolândia” — no ambiente deletério da prisão, onde a droga ingressa facilmente, agravando o problema da dependência. A dúvida é se esses baixos índices de dependência correspondem à realidade, ou apenas refletem mais uma situação de descaso com a saúde do preso.

O cenário suscita no mínimo outra indagação. Se o diagnóstico da dependência é tão difícil de se verificar entre os presos, por que seria diferente com os moradores de rua usuários de droga, universo de onde, não raro, muitos detentos são oriundos? Ao fazer este confronto de realidades, a prisional e a de rua, torna-se inevitável perceber que o projeto do governo está fadado ao insucesso, por duas razões. Pois, ou bem os diagnósticos continuarão seguindo a estatística da Justiça criminal, e neste caso a previsão é de que não deverá haver internações em escala suficiente que justifique a adoção da política anunciada, ou bem constataremos algo mais grave, um aumento dos casos de dependência em comparação com os de presos, e aí sim, a confirmação de que o diagnóstico médico judicial não obedece apenas a fatores clínicos, mas também a critérios políticos e de conveniência administrativa. Neste caso, o disfarce histórico começaria a mostrar sua face.

Esta face escura revelaria, colocando em xeque os eufemismos, um objetivo velado de excluir do convívio social número cada vez maior de usuários, seja com a prisão de infratores, quando legalmente autorizada, seja com a internação médica de inocentes, quando a mera detenção é vedada por lei. Passaria a impressão de que o problema só é tratado como de saúde pública, quando o Estado precisa lançar mão do viés médico para restringir a liberdade de alguns indesejáveis, em situações tais que a lei não autorizaria a prisão.

É verdade que ainda é cedo para proferir um veredicto tão definitivo sobre uma política pública que mal começou a ser implementada. Entretanto, alguns sintomas já dão a tônica de uma política ruim, como o fato de nenhuma menção ter sido feita à estranhíssima escassez de diagnósticos da dependência no universo prisional, inclusive entre moradores de rua, estrato social onde, infelizmente, a relação entre droga e delito é quase simbiótica.

Assim, se o governo estiver mesmo disposto e enfrentar o problema da dependência química, e neste caso não pode deixar de lado os dependentes do álcool, provavelmente a droga mais ligada à prática dos crimes violentos, a iniciativa é louvável e bem vinda, mas para não cair na armadilha da hipocrisia, precisa primeiro começar a tratar os doentes que já se encontram sob sua tutela, aos milhares, nos presídios paulistas.

Lei de lavagem de dinheiro está com imagem arranhada

O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Ação Penal 470, examinou com profundidade um dos temas de maior polêmica: a extensão do crime de lavagem de dinheiro. A Lei de Lavagem, que está em vigor no Brasil desde 1998, sofreu alteração no último mês de julho, mas há um princípio sagrado no Direito Penal, o princípio da anterioridade, que proíbe a utilização de lei nova para fatos anteriores a ela. Assim, apesar de a nova lei ter entrado em vigor antes do começo do julgamento, o STF julgou o caso à luz da lei antiga.

Entretanto, a única modificação substancial é que na lei de 1998 só o lucro de pouquíssimos crimes podia configurar lavagem, ao passo que agora não há mais nenhuma distinção quanto a isso, de modo que até o lucro da contravenção penal poderá configurar lavagem. Essa é, aliás, uma das maiores polêmicas surgidas com a nova lei, pois em alguns casos a conduta acessória (a lavagem) é punida com mais rigor do que a principal (no caso da contravenção).

Agora, o que já causava polêmica na lei antiga e não foi solucionado pelo legislador de 2012 é a enorme amplitude e obscuridade do tipo penal: “Ocultar ou dissimular origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Por sinal, lendo-o, tem-se a impressão de que a lei penal vem sendo redigida só para juristas entenderem. Neste caso, ainda pior, porque, ao que tudo indica, nem os juristas parecem entendê-la.

 

Feuerbach, considerado o pai do princípio da legalidade, concebia-o como um instrumento de coação psicológica, e não como ideia – mais aceita hoje – de garantia da liberdade do cidadão. Todavia, ainda que Feuerbach estivesse correto, quem se sentirá coagido psicologicamente por um tipo penal que não pode compreender? Poderão dizer que o STF terá arrumado uma forma de acomodar melhor o entendimento sobre o crime. Então, o que nos protege não é mais a lei, mas a vontade do funcionário público incumbido da função de julgar. E todos nós sabemos que a vontade do julgador pode mudar ao sabor dos ventos.

Só para lembrar, em Cuba é crime “subverter, de qualquer modo, a revolução”. O que é subverter? O que é “de qualquer modo”? O que é a revolução? Tudo isso fica a cargo do intérprete e, então, quem garante a liberdade das pessoas não é mais a lei, mas o agente estatal ocasionalmente investido no cargo.

Veja-se que, com estas críticas, não se está advogando a desnecessidade de uma Lei de Lavagem de Dinheiro. O problema não é tanto se devemos ou não incriminar, mas como incriminar. Porque é no como que costumam ocorrer os abusos do poder punitivo. Tipos penais amplos são próprios de Estados totalitários.

Fenomenologicamente falando, há certo consenso entre estudiosos de que a lavagem de dinheiro é o processo destinado a conferir aparência de licitude a bens ou valores obtidos com a prática de crime. Ora, e por que, então, a lei não diz simplesmente isso, em vez de optar pela indecifrável fórmula “ocultar ou dissimular a origem, localização, disposição…”?

Dirão alguns que essa aparente distorção se deve ao fato de que a lei não pune apenas o fenômeno em si, mas também as várias etapas do processo de lavagem. Desse modo, a ocultação ou dissimulação da origem, propriedade, disposição seriam punidas como etapa do processo de lavagem, já que para converter o dinheiro em ativo lícito o criminoso precisaria primeiro escondê-lo.

Mas como é possível olhar para a ocultação de um bem ou valor e profetizar que aquilo visaria à sua posterior reinserção na economia com aparência de licitude, sendo, portanto, etapa da lavagem? Só mesmo de forma especulativa poderíamos dizê-lo.

Os pontos cegos, contudo, não param por aí. Como separar a natural ocultação do bem obtido com o crime de algo maior, que é a lavagem? Para tal seria necessária, pelo menos, uma ruptura temporal entre o recebimento do valor e uma nova conduta, repleta de novos e próprios significados. Assim, quando o STF condena por lavagem o réu que usou de dissimulação para receber o valor ilícito, inaugura uma nova figura, inédita na doutrina internacional, a da lavagem precoce, praticada antes mesmo de terminado o crime principal.

Seja como for, os verbos ocultar e dissimular dizem muito pouco – ou dizem demais -, até mesmo porque é próprio das atividades econômicas, ilícitas ou não, a extrema discrição nas transações financeiras (fato lembrado por vários ministros do Supremo), assim como os predicativos “origem, localização, movimentação, disposição, propriedade, direitos ou valores” esgotam uma gama tão grande de situações que fica difícil saber não “o que é lavagem”, mas “o que não é lavagem”.

Será que qualquer transação monetária envolvendo dinheiro proveniente de um ilícito configura lavagem? Isso pode, num primeiro momento, parecer justo, porque as pessoas tendem a projetar a hipótese no outro, jamais em si mesmas. Mas quando paramos para pensar que pelo simples fato de alguém prestar um serviço lícito e receber por ele – caso o cliente seja suspeito de enriquecer ilicitamente – poderá ser enquadrado no tipo penal, a situação começa a ficar mais preocupante.

Será, por exemplo, que o dono do restaurante deverá recusar-se a servir refeição ao suspeito de um crime? O hotel deverá recusar a sua hospedagem? A escola deverá expulsar os filhos desse sujeito, para não correr o risco de responder por lavagem de dinheiro? E se o sujeito for inocentado depois? Quem resgatará, ademais, a dignidade das crianças?

Todas essas dúvidas mostram que, no frigir dos ovos, quem sai com a imagem arranhada desse julgamento, além, é claro, dos acusados, é a própria Lei de Lavagem, de tal modo que, muito embora uma nova redação tenha acabado de entrar em vigor, nasce já no momento de se pensar outro diploma para substituí-la.

O direito de defesa agoniza no país, mas não morre

A história da advocacia criminal é a história da perseguição aos advogados e das tentativas de acovardar a profissão. É célebre a frase com que Nicolas Berryer costumava iniciar suas defesas no tribunal do terror revolucionário: “Trago à convenção a verdade e a minha cabeça; poderão dispor da segunda, mas só depois de ouvir a primeira.”

Malfalado, achincalhado e colocado na mesma vala comum de seus clientes, vítima de agressões em razão do mero ofício, o advogado foi dos poucos que, ao longo da História, saíram em defesa dos oprimidos e perseguidos, não importando a classe social a que pertencessem.

Quando a opinião pública se voltou contra os judeus na França, foi um advogado — sem falar em Émile Zola com o J’accuse — que saiu em defesa de Alfred Dreyfus para provar que o borderô usado contra ele era falso. Graças à atuação de advogados, muitas vezes sem ganhar nem um tostão, milhares de presos políticos escaparam das masmorras brasileiras durante a ditadura militar, mesmo correndo o risco de serem confundidos com a militância política de seus clientes.

 

Quando as ideologias tomavam conta do mundo, Rui Barbosa respondeu a uma consulta formulada pelo amigo Evaristo de Moraes. Numa carta intitulada O dever do advogado aconselhou o famoso rábula, seu correligionário, a aceitar a defesa criminal de Mendes Tavares, então antagonista do civilismo liderado por Rui, por considerar que o múnus do advogado criminal está acima das disputas políticas.

Nessa famosa missiva, o mestre Rui Barbosa assim dizia ao amigo Evaristo de Moraes: “Recuar ante a objeção de que o acusado é ‘indigno de defesa’ era o que não poderia fazer o meu douto colega, sem ignorar as leis do seu ofício, ou traí-las. Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas”.

Partidário da mesma opinião, após o levante comunista de 1935, Sobral Pinto, conhecido por suas convicções católicas e anticomunistas, aceitou defender Luiz Carlos Prestes, inimigo número um de Getúlio Vargas.

Bem pagos ou não, os advogados nunca arredaram pé de seu mister de sair na defesa intransigente dos direitos do réu. Basta, porém, a acusação contra determinado réu acender uma pequena fagulha de ódio na opinião pública para que imediatamente os inimigos das liberdades voltem a incendiar a imagem do advogado criminal.

A isso se prestou, na semana passada, Manoel Pestana, procurador da República em Porto Alegre, que, num ato de populismo que lembra o caudilhismo dos pampas, buscou torpedear seus adversários de tribuna, os advogados, e especificamente o advogado de Cachoeira, Márcio Thomaz Bastos, demonstrando todo o rancor e o ressentimento que ainda persiste na alma de alguns figadais inimigos do Estado Democrático de Direito. A proposta concreta do procurador Pestana é a seguinte: quando o advogado cobra honorários de alguém acusado de enriquecer ilicitamente, os valores recebidos são ilícitos e, portanto, configuram receptação culposa. Receptação culposa é a conduta, prevista no artigo 180 do Código Penal, de “adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso”.

Equiparar os honorários do advogado ao crime de receptação culposa é o mesmo que igualar espelho de tomada de luz a focinho de porco. Somente a olhos tacanhos, míopes e estrábicos, ambos poderão ser colocados na mesma vala. Como técnico do Direito, Pestana sabe ou deveria saber disso; mas como instrumento de sedição, a estratégia funciona bem.

A proposta é tão demagógica e sediciosa que, se o procurador quisesse mesmo levá-la a ferro e fogo, deveria mandar incinerar todo o dinheiro que o grupo de Cachoeira transferiu para os cofres públicos nos últimos anos, por meio do pagamento de taxas, impostos, etc., valores usados para pagar quiçá o próprio salário do procurador ou de seus colegas de Ministério Público.

Bazófia! A proposta esconde objetivo claro: acovardar e desmoralizar a advocacia e fulminar, assim, o sacrossanto direito de defesa dos acusados! Se Cachoeira, pivô do motim que o procurador insufla contra os advogados, de fato cometeu os crimes pelos quais responde na Justiça, uma coisa é certa: a culpa disso não é do advogado dele! Por trás da panfletária ode à criminalização da advocacia escondem-se o vetusto desrespeito à ordem jurídica estabelecida, a antipatia pelo direito de defesa, o espírito punitivista totalitário e avesso aos direitos e garantias individuais do homem.

Se quisermos falar de honorários, teremos de voltar nossos olhos para outras mazelas da Justiça, como as condições degradantes da esmagadora maioria dos advogados humildes deste país, que se acotovelam nas apinhadas salas da OAB instaladas nos próprios Fóruns, causídicos que recebem salários de fome para defender seus clientes. Pior que isso, por uma razão que até hoje ninguém explica, os salários pagos a acusadores públicos são substancialmente maiores do que os pagos aos defensores públicos, um sintoma bastante evidente do desprezo pelo direito de defesa neste país.

Advogados e membros do Ministério Público não são inimigos, são apenas adversários processuais num caso concreto. Irmanam-se, no entanto, num mister mais nobre: o engrandecimento da Justiça. Ainda mais por esse motivo, a iniciativa de um procurador da República de atacar o advogado em razão apenas da causa que ele defende cria antagonismos indesejáveis entre as duas carreiras — a advocacia e o Ministério Público —, além de não servir a nenhum propósito útil de aperfeiçoamento das instituições democráticas.

A nefasta criminalização da advocacia

A história da advocacia criminal é a história da perseguição aos advogados e das tentativas de acovardar a profissão. Sacerdócio árduo e sofrido, como dizia Henri Robert, a coragem se tornou o atributo mais importante do advogado criminal.

Durante o chamado período do terror da revolução francesa, os advogados compareciam aos julgamentos da convenção mesmo sob a ameaça expressa de serem guilhotinados com seus clientes. É célebre a frase com a qual Nicolas Berryer costumava iniciar suas defesas no tribunal revolucionário: “Trago à convenção a verdade e a minha cabeça; poderão dispor da segunda, mas só depois de ouvirem a primeira”.

Mal falado, achincalhado e colocado na mesma vala comum de seus clientes, vítima de agressões em razão do mero ofício, o advogado foi um dos poucos que, ao longo da história, saiu em defesa dos oprimidos e perseguidos. Mal vistos aos olhos de cortesãos por defenderem apaixonadamente homens do povo, seriam no instante histórico seguinte os únicos a saírem em socorro de reis e rainhas, cujas cabeças eram postas à beira do cadafalso do terror revolucionário.

Quando a opinião pública se voltou contra os judeus na França, foi um advogado – sem falar em Émile Zola com o J’accuse – que saiu em defesa de Dreyfus para provar que o borderô usado contra ele era falso. Graças à atuação de advogados, muitas vezes sem ganhar qualquer tostão, milhares de presos políticos escaparam das masmorras brasileiras durante a ditadura militar, mesmo correndo o risco de serem confundidos com a militância política de seus clientes.

Quando as ideologias tomavam conta do mundo, Rui Barbosa responde a uma consulta, formulada pelo amigo Evaristo de Moraes, e em uma carta intitulada “O dever do advogado”, aconselha o famoso rábula, seu correligionário, a aceitar a defesa criminal de Mendes Tavares, então antogonista do civilismo liderado por Rui, por considerar que o munus do advogado criminal está acima das disputas políticas.

Nesta famosa missiva, o mestre Rui Barbosa assim dizia ao amigo Evaristo: “Recuar ante a objeção de que o acusado é ‘indigno de defesa’, era o que não poderia fazer o meu douto colega, sem ignorar as leis do seu ofício, ou traí-las. Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas…”

Partidário da mesma opinião, após o levante comunista de 1935, Sobral Pinto, conhecido por suas convicções católicas e anti-comunistas, aceita defender Luiz Carlos Prestes, inimigo número 1 de Vargas. Não importa se bem pagos ou não, os advogados nunca arredaram pé de seu mister de sair na defesa intransigente dos direitos do réu.

Adormecido por alguns anos – a sociedade logo se esquece das contribuições de suas Genis – o ódio contra o advogado ressuscita agora com nova roupagem, desta vez sob o pretexto de se combater os crimes econômicos, em especial, a lavagem de dinheiro. O objetivo é mal disfarçado: agrilhoar o regular exercício da defesa criminal, trocando-se a gilhotina pela gatunagem, metendo-se a mão no bolso do advogado.

Já aprovado na Câmara dos Deputados, o PL 3.443/08 (clique aqui) pretende obrigar os advogados a comunicarem operações de natureza suspeita por envolverem dinheiro supostamente oriundo de crime. Tal proposta implica duas coisas: uma é proibir o advogado de receber honorários dos clientes acusados de enriquecerem ilicitamente, e a outra é aniquilar, no exercício da advocacia empesarial, pressuposto deontológico da profissão, que é o dever de guardar sigilo sobre o que lhe é confidenciado a quatro paredes.

Como toda proposta totalitária esta também se apóia em generalizações grotescas. Sim, pois é claro que o advogado que auxilia o cliente a ocultar ou dissimular a origem de bens ou valores provenientes de crime poderá responder pelo crime de lavagem e, para isto, a lei não precisa ser mudada, dado não existir qualquer imunidade para os advogados neste sentido.

Assim, pode responder por lavagem o advogado que simula contrato de honorários apenas para permitir a colocação do produto do crime em local seguro, devolvendo-o depois pouco a pouco de acordo com as pequenas necessidades do cliente. Se receber os honorários e não declarar o valor ao fisco, estará sonegando e também poderá responder por prática de crime.

Agora, existem vozes pedindo mais. Querem acoimar de ilícitos também os honorários pagos por um serviço prestado, com o devido recolhimento de impostos. Ora, receber pelo serviço é direito do advogado, independentemente de quem seja o réu!

Ou então o Estado teria que pedir de volta o dinheiro ilícito pago ao médico, ao arquiteto, ao alfaiate, ao restaurante, ao próprio Estado, quando do pagamento de impostos, das taxas municipais, às concessionários de automóveis, afinal ou o dinheiro é sujo para todo mundo ou não é para ninguém.

Afinal, o que se pretende com tal projeto é impedir o advogado de trabalhar, tornar a advocacia uma profissão de risco, almejando com isto uma única coisa: restringir a atividade do advogado e cercear o direito de defesa dos acusados.

O maior equívoco de todos é na verdade não conhecer a natureza da advocacia; o pior de tudo é acharem que pondo peias à nossa profissão, deixaremos de exercer o nosso sacerdócio.

Se a ideia é acovardar a advocacia, é importante que saibam estes ingênuos formuladores de panaceias legislativas: se nos tirarem os honorários, defenderemos de graça; se nos cortarem as mãos, escreveremos com o sangue; se nos calarem a boca, defenderemos com a alma; e se quiserem cortar fora nossas cabeças, terão primeiro que ouvir a nossa verdade.

Crime da moda cujos protagonistas não são deliquentes

Volta e meia a sociedade brasileira vive um modismo penal. Já foi moda falar em penas mais duras para falsificação de remédios, redundando num crime que prevê uma das penas mais altas do Código Penal; houve épocas em que se popularizaram propostas de endurecimento de penas para melhor punir algumas modalidades de roubo, como o sequestro relâmpago, em outros momentos houve clamor popular por penas mais duras ora para o tráfico, ora para a corrupção, ora para os crimes financeiros e, assim como estes, diversos outros exemplos poderiam ser citados.

O crime da moda agora é a embriaguez ao volante. Não que referida conduta não precise ser combatida e ter a atenção do Direito Penal, mas é como se num passe de mágica, com uma mudança milagrosa da lei penal, fosse possível extirpar dos trópicos este mal que ameaça a sociedade brasileira. Ledo engano.

É muito desalentador perceber como a sociedade brasileira gera os problemas e depois não consegue se livrar deles senão com a canetada legislativa, prevendo penas duras para situações que ajudou a criar. As trágicas mortes recentes no trânsito das grandes cidades não é moda; moda é falar destes acontecimentos como se fossem crimes hediondos. Os protagonistas desses eventos, pelo menos os que viraram notícia, são na maioria jovens de bem, saídos das classes média e alta, mas não delinquentes que saem de suas casas vestidos para matar, ou como querem alguns, colocando-se propositadamente em situações que põem em risco a vida dos outros. Encontrar um protótipo de jovem e identificá-lo como a raiz de todos os nossos males parece uma via bem simples e fácil, mas certamente não é a que melhor serve à solução do problema.

Paremos para pensar um pouco sobre a sociedade que construímos nos últimos anos, sobretudo nas grandes cidades brasileiras. A vida nesses grandes centros resume-se à conjugação de alguns fatores, como expansão demográfica, boom imobiliário selvagem sem qualquer tipo de planejamento urbanístico, distanciando cada vez mais as residências dos centros de serviço, como bares e restaurantes, varridos do mapa em segundos para darem lugar a novos empreendimentos; um tráfego extremamente agressivo, suficiente para matar de enfarte ou adoecer por estresse qualquer motorista contumaz; incentivo total à indústria automobilística em detrimento dos investimentos necessários nos meios de transporte público; espaço dedicado ao pedestre cada vez mais precário, tudo para que mais automóveis possam ser colocados em circulação (a tragédia da Rua Natingui é um ótimo exemplo); aumento dos serviços de segurança privada em oposição a uma política de segurança pública cada vez mais desacreditada e, por fim, uma cultura do alcoolismo, incentivada todos os dias pela grande mídia, algo que tem feito da nossa sociedade uma das mais alcoolizadas do mundo.

O atropelamento ou a colisão é o estopim, é a gota d`água, o desfecho natural determinado por fatores sociológicos e não apenas individuais, embora crucificar este ou aquele motorista específico ajude a esconder debaixo do tapete questões muito mais sérias e intrincadas, impossíveis de se resolver do dia para a noite como exige o apelo popular.

Disto se depreende uma característica muito marcante do sistema neo-liberal brasileiro, que gosta de se ufanar de conseguir desenvolvimento econômico à custa de uma mínima intervenção estatal, mas que não hesita em pedir socorro à forma mais invasiva de intervenção do Estado na vida do indivíduo — a prisão — quando a sociedade por si só dá mostras de não ter conseguido organizar-se de modo a garantir uma qualidade de vida digna para os seus cidadãos. Esse paradoxo está impresso em quase todas as sociedades neo-liberais: quanto menor a intervenção do Estado na vida das pessoas e na economia de um modo geral, maior é a utilização do Direito Penal como aparador de arestas deixadas pela dita sociedade livre.

Podemos aumentar a pena da embriaguez ao volante, mas dificilmente os jovens deixarão de beber antes de pegar o carro. O pior é que a maioria, jovens ou não, fará isto sem colocar em risco a vida dos outros, mas provavelmente será penalizada pelos erros dos que realmente expõem a perigo a integridade física de terceiros. Quanto aos problemas crônicos que afligem nossa cidade todos os dias, com ou sem o álcool, quanto a isto, tudo permanecerá do jeito que está, seguindo a máxima lampedusiana, de que as coisas precisam mudar para que tudo permaneça do mesmo jeito.

O Planalto, a PF e as prisões escandalosas

Quando nos deparamos com as notícias das últimas operações da Polícia Federal (PF) envolvendo o alto escalão do governo, convém indagar se o mais preocupante é o interesse do governo em saber da operação com antecedência ou a alegação da PF de que não precisa prestar contas de nada a ninguém.

Sim, porque ninguém duvida de que num Estado republicano é promíscua a interferência indevida do poder no desenvolvimento de atividades de polícia judiciária, mas todo mundo concorda que a PF está subordinada ao Executivo e não está, digamos, desobrigada de prestar contas de sua atuação aos escalões superiores, que, em última instância, são o ministro de Estado da Justiça e a presidente da República.

Causa certo espanto a afirmação do presidente do Sindicato dos Delegados da Polícia Federal no Estado de São Paulo, Amaury Portugal, de que os delegados não precisam dar satisfações de nada a ninguém, senão ao juiz do caso. É verdade que uma das funções institucionais da PF é dar cumprimento às decisões judiciais proferidas durante as investigações, tal como mandados de busca e apreensão e de prisão temporária ou preventiva. O fato de estar obrigado a cumprir a decisão judicial, sob pena de incorrer em crime de desobediência, porém, não exime de modo algum o delegado de se submeter às regras de hierarquia do Poder ao qual está subordinada, o Executivo.

A questão que se coloca, então, é se é lícito o Planalto saber da operação com antecedência, ou seja, antes de ela ser deflagrada. Sobre isso não existe regra clara no nosso ordenamento, mas também não existe nenhuma norma que proíba a prévia comunicação.

À primeira vista parece estranho o interesse da presidente Dilma em conhecer os detalhes da operação antes da sua realização. Por outro lado, é preciso reconhecer que comunicar a existência da investigação e os detalhes da operação que se avizinha não é obrigatoriamente ilegal.

O motivo para a questão ter atraído os olhos atentos da opinião pública não é, obviamente, o fato de a presidente Dilma querer saber da operação, mas o receio de que, ao tomar ciência prévia dela, o Planalto possa desvirtuar o objeto da investigação e influenciar a normal obtenção da prova.

Aqui parece situar-se o ponto fulcral da questão. Nosso ordenamento jurídico dispõe de mecanismos de proteção da legalidade, como a cominação de pena criminal para os agentes públicos que pratiquem ou deixem de praticar ato de ofício para satisfazer interesse pessoal, dando ordem, por exemplo, para que a operação seja abortada sem nenhum fundamento jurídico válido. Ou, pior até, prevê penas para quem fraude provas ou outros elementos da investigação com a operação já deflagrada, comunicando previamente os sujeitos alvos da operação, a fim de que previnam a descoberta de provas comprometedoras.

Veja-se, pois, que a questão toda gira em torno de uma presunção, qual seja, a de que a presidente poderia usar o poder que tem para frear a atuação policial; logo, quando a PF busca evitar que a presidente saiba da operação, não está fazendo outra coisa senão questionar a credibilidade e as boas intenções da chefe do Executivo. Novamente não se sabe o que é mais grave, se o elo político estreito que liga o Planalto aos investigados ou a suspeita da PF de que o sucesso da operação correria risco se ela fosse antecipadamente comunicada à presidente da República.

O interesse prévio da presidente pelas investigações pode, no máximo, ser objeto de crítica política. E, nesse aspecto, não faltam bons argumentos para questionar sua atuação. O fato, porém, é que, do ponto de vista jurídico, causa mais espanto a aparente insubordinação do órgão policial do que a curiosidade demonstrada pelo Planalto tocante aos atos investigativos.

É sabido que o poder torna as pessoas mais suscetíveis à prática de atos ilegais. Essa, a propósito, é a força motriz dos casos de corrupção que assolam o País e desencadearam as recentes operações da PF. É certo também que, quanto maior o poder que a pessoa detém, maior a capacidade de ser subvertida a legalidade para a satisfação de interesses pessoais e políticos. É preciso, todavia, enfrentar os desafios do Estado de Direito dentro da legalidade, por mais difícil que isso possa ser. Não é porque a presidente tem, em tese, o poder – ou a mera possibilidade, na acepção vulgar da palavra – de atrapalhar as investigações que deveremos concordar, então, que seja anulada a subordinação da PF ao chefe do Poder Executivo.

Com todo o respeito às opiniões contrárias, deveríamos propor-nos a fazer o exercício pedagógico de boa convivência republicana e eleger a lógica inversa à que está colocada. Deveríamos partir do pressuposto de que a presidente da República, tendo em vista a importância do cargo que ocupa e a legitimidade com que governa, eleita pela maioria da população para comandar o destino do País, não se arriscaria a sujar suas mãos com a lama que assola alguns setores do governo, sabedora de que sua permanência no cargo não resistiria um dia sequer caso viesse à tona alguma tentativa do Planalto, mínima que fosse, de acovardar os agentes policiais ou boicotar as investigações da PF.

Por mais difícil que seja confiar tamanho poder à presidente da República, isso ainda parece mais condizente com o espírito republicano do que permitir o afrouxamento dos laços que ligam a PF ao Poder Executivo, dando margem a que, em vez de prestar contas na linha hierárquica legalmente constituída – e prestar contas não implica perder a autonomia técnica -, o órgão de repressão estatal atue nos subterrâneos do poder anônimo, muito mais pernicioso à saúde do Estado de Direito, já tão combalida pelas mazelas estampadas todos os dias nas páginas dos jornais.

Reforma no processo do juri

Entre as várias reformas aprovadas na Câmara na última semana, que aguardam sanção presidencial, está a nova formulação de quesitos no Tribunal do Júri. Infelizmente, ao invés de permitir um julgamento claro e transparente, o projeto prevê a formulação de quesito genérico sobre a existência de circunstância qualificadora (motivo torpe, motivo fútil, a utilização da surpresa…) e circunstância que diminui a pena (como a violenta emoção). Sim, pois uma das maiores causas de nulidade de julgamentos populares é a má redação de quesitos, o que, por dar margem a uma incompreensão da real vontade do jurado, inviabiliza a própria impugnação do veredicto.

Assim, por exemplo, não se pergunta a um juiz leigo se o crime é qualificado ou não, ou se há nos autos alguma circunstância que diminui ou aumenta a pena, porque tal pergunta pressupõe um conhecimento técnico que, a rigor, o jurado não é obrigado a ter. A pergunta que deve ser endereçada ao jurado há de ser relativa a fatos da vida real, cuja significação jurídica só será avaliada depois pelo juiz no momento de aplicar a pena.

Vale destacar que, embora todas as decisões do Poder Judiciário devam ser fundamentadas (art. 93, IX da Constituição Federal – clique aqui), os jurados são exceção, não precisam dar os motivos do seu veredicto. Absolvem ou condenam de acordo com sua própria e íntima convicção.

Por mais este motivo, o questionário que respondem para dar o veredicto final deve ser formulado mediante quesitos redigidos da forma mais clara e precisa possível, a fim de que acusação e defesa possam compreender minimamente o entendimento que os juízes leigos tiveram do julgamento.

É claro que um bom juiz sabe aplicar a lei conforme o texto constitucional, fazendo constar no quesito qual é o fato específico que será julgado, até porque esta é a única forma de compatibilizar a nova lei com a garantia da plenitude de defesa, prevista para os julgamentos realizados no Tribunal do Júri (artigo 5º, inciso XXXVIII, a)

Entretanto, como nem sempre se pode contar com o bom senso do juiz, a lei processual deveria vir justamente para evitar que temas tão relevantes sobre o julgamento fiquem à mercê do arbítrio, dando margem inclusive a julgamentos nulos.

Muito mais do que aumento de penas, nosso país é carecedor de leis que garantam um processo penal mais claro e transparente, caso contrário, os julgamentos mal conduzidos estarão sempre sujeito a anulação pelas instâncias superiores, retardando ainda mais a tão desejada, mas ainda demorada realização da Justiça.