Em defesa do Supremo

A notícia de que o general Walter Braga Netto conspirou para assassinar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, mais do que causar espanto e indignação, é uma fotografia do mal que o bolsonarismo causou ao Brasil.

Não, não foi uma mera tentativa de golpe que o país sofreu. O Brasil sofreu um golpe propriamente dito. As instituições sofreram um golpe. Por quatro anos, Jair Bolsonaro e seus seguidores golpearam as instituições, o Judiciário, o Ministério Público, a advocacia, as urnas. Não é que o país quase sofreu um golpe. O golpe existiu. Só não foi consumado.

As sequelas do assalto são evidentes. O mal que causou ao Judiciário é inegável. O STF não escolheu ser o protagonista de tantos inquéritos e processos criminais. Não falta trabalho aos ministros da Suprema Corte. Pelo contrário, estão atolados até o pescoço com uma enxurrada de casos que chegam todos os anos ao tribunal.

Não foi uma escolha, ou um capricho. Está cada vez mais claro que se a corte não tivesse assumido o protagonismo dessas investigações, provavelmente não teríamos mais Supremo Tribunal Federal. O bolsonarismo obrigou o STF a se dobrar. Não lhe foi dada opção. Está aí um golpe que os bolsonaristas podem se orgulhar de terem conseguido dar. Enfraqueceram o Judiciário.

Sim, pois é evidente que, para se defender e fazer a defesa das instituições, o Supremo precisou testar o limite da sua atuação —e obviamente à custa de um enorme desgaste perante a sociedade. Essa vitória pode ser computada no saldo bolsonarista.

Esse movimento que nasceu saudosista da ditadura militar, nostálgico do AI-5 e avesso às liberdades incorporadas pela Constituição Federal de 1988, que considera excessivas, defendeu sempre todo poder às polícias e menos direitos aos réus no processo penal. Agora, como num passe de mágica, passou a invocar respeito estrito à legalidade penal, penas baixas, direito penal mínimo, ampla defesa, devido processo legal e até respeito aos direitos humanos, em uma inversão de agenda que só tem uma explicação: “pimenta no olho dos outros é refresco”.

Mas não só. Ao mesmo tempo em que defende seus próprios interesses, procura minar a credibilidade da Suprema Corte. Ou seja, a queda de braço com o STF após as condenações do 8 de janeiro é uma forma de protrair o seu crime no tempo, persistindo no desiderato de corroer as instituições. Quiseram colocar o Supremo entre a cruz e a espada. E conseguiram. Só não contaram que o Supremo poderia escolher a espada, e com a espada os crimes desta horda golpista estão sendo desmascarados dia após dia.

Se tivesse escolhido a cruz, o STF estaria hoje pregado nela em praça pública, para regozijo da turba ensandecida. A competência inusual da corte para julgar os atos golpistas foi uma criação jurisprudencial, como diversas outras questões no direito brasileiro. O fato é que a competência se revelou necessária. Se o Congresso Nacional quiser dar uma contribuição à democracia, em vez de anistia, deveria transformar a competência em regra legal.

Afinal, o julgamento de atos tão graves que atentam contra a existência das instituições não pode ficar à mercê da primeira instância ou de tribunais regionais. Se a competência nasceu de uma anomalia política que tornou inevitável a atuação da Suprema Corte, a experiência mostrou, por outro lado, que errado estava o ordenamento jurídico brasileiro de não atribuir desde logo esse poder ao STF.

Entre erros e acertos, uma coisa ninguém pode negar: o STF vem cumprindo à risca a missão de proteger a Constituição Federal.

 

Segurança pública: quem é responsável?

segurança pública ou a ausência dela sempre foi explorada pela classe política para a obtenção de votos. Basta lembrar que Paulo Maluf, em suas diversas campanhas, sempre prometia tratamento duro aos criminosos com a repetida promessa de “colocar a Rota na rua”.

Na esteira desse discurso, vários radialistas protagonistas de programas sensacionalistas e policiais que se notabilizaram pelo confronto com supostos marginais foram eleitos deputados estaduais e federais. Até mesmo o comandante do chamado massacre do Carandiru (ironicamente vítima de homicídio) foi conduzido à Assembleia Legislativa.

A propósito, não se tem notícia de nenhum projeto relevante apresentado por eles para a melhoria da segurança pública. Bem por isso — falta de proposta efetiva — há um revezamento em cada eleição, com o surgimento de novos candidatos com a promessa de combate duro ao crime.

A sofisticação do crime com a chegada do crime organizado aumentou a preocupação da população e permitiu também o aumento de políticos com promessas genéricas e vazias ligadas à área da segurança pública — aumento de penas, criminalização de diversas condutas, valorização da polícia etc.

Não por acaso, a segurança pública foi tema importante nas recentes eleições municipais. Todos os prefeitos eleitos fizeram promessas de investimento pesado nas guardas municipais. Mais que isso, prometeram que, com as guardas municipais devidamente equipadas, combateriam com mais eficiência o crime comum — furto de celular, por exemplo — e até mesmo o crime organizado.

O eleitor, ao que tudo indica, foi sensibilizado pelas promessas feitas e, certamente, em pouco tempo cobrará dos prefeitos eleitos uma presença mais constante das guardas municipais com a consequente e prometida diminuição na violência urbana.

Como salientei em meu último artigo neste espaço, para que as promessas feitas (e agora expectativas dos eleitores) sejam factíveis é necessária profunda mudança legislativa a começar pela Constituição Federal. Para se ouvir a chamada “voz das urnas”, cabe ao legislador fazer as mudanças legislativas deixando claro o poder de polícia das guardas municipais.

De outro lado, cabe aos prefeitos eleitos definirem com clareza o que pretendem com as guardas municipais. Regulamentos claros para a seleção do efetivo, normas correcionais, definições sobre o uso de câmeras, entre outras questões básicas, devem ser enfrentadas.

Importante lembrar que mesmo municípios de médio porte também criaram guardas municipais, havendo o risco que atuem como verdadeiras “guardas pretorianas”, agindo no interesse apenas de um grupo político do município.

Bem por isso, considerando que o fortalecimento das guardas municipais é irreversível — o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu o poder de polícia das guardas municipais — é imprescindível que se criem mecanismos de controle externo também das polícias municipais, a exemplo do que ocorrem com as polícias federal e estadual.

As polícias estaduais, civil e militar se submetem a controle interno de suas corregedorias e ao controle externo de ouvidorias e do Ministério Público. O mesmo deve ocorrer com as guardas municipais.

De outro lado, parece inevitável que surjam atritos na definição de atuação na segurança pública. É preciso que se definam as áreas de atuação dos órgãos de segurança pública, sem o que, fatalmente, haverá duplicidade de atuação, quando não invasão de atribuições.

Em verdade, está mais do que na hora que as autoridades municipais, estaduais e federais reconheçam que, sem uma atuação conjunta e ordenada, nenhuma promessa de combate ao crime será factível. Infelizmente, não é o que vem acontecendo.

Recentemente, o Governador do Rio de Janeiro, após uma desastrada (mais uma) intervenção da polícia estadual com troca de tiros em plena Avenida Brasil e a morte de pessoas que se dirigiam ao trabalho, pediu a intervenção federal, assumindo a sua incapacidade para o combate ao crime organizado.

No caso concreto, de acordo com as declarações do governador e dos comandantes das polícias estaduais, tratava-se de uma ação corriqueira da polícia do Estado do Rio de Janeiro, pelo que a referência ao crime organizado não transfere a responsabilidade ao Governo Federal.

O governo federal, por sua vez, assumindo pela primeira vez o protagonismo na segurança pública, convocou reunião para apresentar proposta de uma PEC para a área de segurança pública. A reação contrária dos governadores foi imediata. Alguns sequer compareceram à reunião.

O governador de Goiás, por exemplo, justificou sua ausência e sua oposição à proposta de emenda constitucional com a afirmação que em seu Estado o crime está controlado. Já o ministro da Justiça, ao defender a PEC, afirmou que não fosse a intervenção da polícia federal, a autoria do assassinato de Marielle Franco e seu motorista ainda não teria sido esclarecida.

Esta troca de farpas não conduz a nada.

A execução de uma pessoa que havia feito delação premiada e que, em tese, deveria ser protegida pelo Poder Público em pleno Aeroporto Internacional de Guarulhos revela a falência do sistema de segurança pública como um todo.

Especialistas sugerem investimento na área de inteligência com troca de informações entre os diversos órgãos se repressão. São propostas importantes e há um certo consenso nas medidas a serem implementadas. Para isso, no entanto, é preciso que as três esferas de governo se unam, abandonem suas vaidades e apresentem um plano de atuação com começo, meio e fim.

Se é verdade que a violência permitiu que vários políticos sem nenhum conteúdo fossem eleitos com meras promessas vagas, é possível que esses mesmos políticos, a começar pelos prefeitos, sejam punidos nas próximas eleições por falta de resultados.

A conferir.

O artigo 385 do Código de Processo Penal e a Constituição de 1988

Está em discussão a constitucionalidade do artigo 385 do Código de Processo Penal.

O artigo de lei em questão permite que o juiz, nos crimes de ação pública, profira sentença condenatória e reconheça agravantes não alegadas, ainda que o titular da ação penal- o Ministério Público- tenha pleiteado a absolvição do réu.

A Associação Nacional da Advocacia Criminal e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil endereçaram ao Supremo Tribunal Federal ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMEDNTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF) em face do artigo 385 do Código de Processo Penal.

Em síntese, a ANACRIM e a OAB sustentam que o dispositivo legal não se compatibiliza com o sistema processual acusatório, preceito fundamental do ordenamento constitucional, consagrado no artigo 129, I, da Constituição Federal, além de violar a cláusula do devido processo legal e o princípio de inércia da jurisdição previsto no artigo 5º, XXXV e LIV da Constituição Federal.

São consistentes os argumentos apresentados.

O tema é particularmente sensível ao signatário, membro do Ministério Público de São Paulo de janeiro de 1975 a março de 2023 e que, após a aposentadoria, resolveu se aventurar na advocacia criminal.

Importante contextualizar.

O Código de Processo Penal em vigor, apesar de várias modificações, foi editado em 1941, sob a vigência da Constituição de 1937, com a declarada intenção de endurecimento.

Basta a leitura da Exposição de Motivos, de autoria do Ministro Francisco Campos, para se verificar que o que se almejava com a edição do novo Código de Processo Penal, era o fortalecimento do aparelho repressivo do Estado.

Confira-se, a propósito, o seguinte trecho da Exposição de Motivos, trazido à colação no pedido feito pela ANACRIM:

“As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante delito ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolido a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre a da tutela social”.

Ora, em Código elaborado neste contexto não surpreende que o juiz pudesse condenar ainda que não fosse a intenção do titular da ação.

De outro lado, ainda para contextualizar, é de se ressaltar que o Ministério Público, à época da edição do Código de Processo Penal, repita-se, sob a vigência da Constituição de 1937, não tinha o perfil que lhe foi dado pela Constituição de 1988.

A partir da Constituição de 1988, o Ministério Público passou a ser o titular exclusivo da ação penal pública, o que motivou uma série de modificações legislativas.

Ao conferir ao Ministério Público a titularidade exclusiva da ação penal pública, o constituinte, no dizer de Hugo Nigro Mazzilli, principal estudioso do regime jurídico do Ministério Público, eliminou a “teratologia” do procedimento penal de ofício, que redundava no procedimento denominado judicialiforme em que a atuação do Ministério Público era meramente acessória- o juiz acumulava as funções de acusador, ao instaurar a ação penal por portaria e de julgador, ao proferir a sentença.

Com o fim do procedimento de ofício e a adoção do sistema acusatório, o Ministério Público, ao menos em primeira instância, assumiu a condição de parte e como tal deve ser visto pelos demais atores do processo.

É certo que, em regra, há limites da atuação do Ministério Público como parte.

Como é sabido, vige o princípio da legalidade, ou obrigatoriedade, ou, ainda, da indisponibilidade, pelo que não cabe ao Promotor de Justiça, havendo elementos para o início da ação penal, deixar de oferecer denúncia por razões de conveniência.

No entanto, a exclusividade da iniciativa penal fez com que, gradativamente, fossem introduzidas mudanças legislativas que mitigaram o princípio da obrigatoriedade, sempre citado pelos que defendem a constitucionalidade do artigo 385 do Código de Processo Penal.

Inicialmente nas infrações de menor potencial ofensivo, a legislação passou a prever a hipótese de conciliação e o Ministério Público, mesmo em caso de oferecimento da denúncia, passou a poder oferecer proposta de acordo de não persecução penal, o que agilizou, em muito, as soluções de pendências que se arrastavam, desnecessariamente, por anos.

Acrescente-se que outras modificações, agora para crimes mais graves, mitigaram o princípio da obrigatoriedade da ação penal.

Especial destaque merece a introdução da possibilidade de delação premiada- por mais polêmico que seja o tema, inegável a sua importância, seja para o exercício pleno da defesa, seja para a solução de casos que envolvem sofisticadas organizações criminosas.

A possibilidade de delação premiada mostra que o legislador infraconstitucional prestigiou a norma constitucional que conferiu ao Ministério Público a exclusividade da iniciativa em crimes de ação pública.

Ora, se o Ministério Público- autor da ação penal- pode oferecer proposta de não persecução penal (ANPP) e de delação premiada, parece intuitivo que, ao final da ação penal, possa dela desistir, pedindo a absolvição do réu.

De outro lado se, em bom momento, revogou-se a possibilidade de procedimento de ofício, não parece lógico que ao magistrado seja permitido decidir de maneira contrária ao postulado pelo autor da ação penal.

Neste passo, destaco trecho constante do pedido da Ordem dos Advogados do Brasil:

“Em suma, num modelo em que o Ministério Público é o representante que exerce com privatividade a pretensão processual penal, ele pode deixar de exercê-la ou a tendo exercido, dela desistir. O juiz não é um tutor, um curador do livre exercício da pretensão processual”.

A redação do artigo 385 do Código de Processo Penal deve ser vista como consequência do tempo em que o Código foi editado em que não havia óbice ao juiz exercer parcela da pretensão de punir, o que passou a ser impossível a partir da posição do constituinte de 1988 que, como já salientado, várias vezes, deu ao Ministério Público a exclusividade para a propositura da ação penal pública.

É, portanto, correto se sustentar, como fazem os autores da ADPL, que o artigo 385, na parte em que permite ao juiz condenar sem o pedido do autor da ação penal, não foi recepcionado pela Constituição de 1988.

A procedência da ADPL, além de ser juridicamente adequada, certamente agradará a todos os envolvidos: Ministério Público e advocacia criminal.

Durante anos, principalmente em debates no Tribunal do Júri, afirmei, quase como argumento de autoridade, que o Promotor de Justiça não era um acusador sistemático e que agia sempre de acordo com a sua consciência, podendo, livremente, postular a absolvição do réu quando assim lhe parecesse justo.

O reconhecimento da procedência da arguição feita por representantes da advocacia criminal dará substância ao argumento.

Com a palavra, o Supremo Tribunal Federal.

Solução para a causa palestina não é a eliminação de Israel

Saída é processo de paz que produza acordo político bilateralmente aceitável.

Algumas vozes têm ocupado espaço nesta Folha e discutido o conflito israelo-palestino, procurando deslegitimar a própria existência em si do Estado de Israel. Essas manifestações fazem lembrar o conto “Emma Zunz”, de Jorge Luis Borges.
Publicado no livro “O Aleph”, relata a história de uma moça discreta e reservada, a mesma Emma do título, que ao saber da morte do pai resolve fazer justiça com as próprias mãos. O tom e a preocupação são verdadeiros, assim como o é o ódio. Só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios.
Ao mencionar Israel, afirmam: “Estado racista colonial!”. Este é o refrão. Soa forte, não é? Termos que comunicam através do ódio e constroem muros bem altos parecem estar em voga. Israel pretende ser um lar nacional para o povo judeu (Estado sionista), assim como os vários outros Estados nacionais que se organizaram a partir de um pleito nacional. Afinal, qual Estado-nação não é uma construção, algo que não é dado a priori, mas sim conquistado através de pleitos, políticas, lutas e reivindicações —e principalmente por comunidades que se veem como nação com direito a um território?
A escolha por começar a contar essa história a partir de 1948, e não 10 a.C. ou qualquer outra data, é o que legitima falsamente a ideia de Israel como país “colonial”, como gritam os jargões. Se escolhermos contar essa história por outras narrativas, chegaríamos também aos judeus como povos originários.
Um português ao vir para o Brasil em 1500 não encontra em nossas terras destroços de sua cultura ou civilização. Já os judeus (alguns nunca saíram do território que hoje se configura como Israel e Palestina), ao chegarem, encontraram lá referências próprias de sua memória, cultura e ancestralidade, como um muro que remonta ao próprio templo ou pergaminhos inscritos em sua língua pátria, o hebraico. Podemos comparar tal situação ao que se chama de “colonial”?
Portanto, é preciso saber que as narrativas de tempo neste conflito também são produções de verdades, mas que ignoram e apagam muitas vezes a história judaica, por um lado, e a história dos árabes-palestinos, por outro —e, ao mesmo tempo, desresponsabiliza Inglaterra e França, estas sim agentes coloniais deste território até 1948.
Em síntese, o Estado de Israel representa o reconhecimento internacional da autodeterminação judaica, após séculos de dispersão e perseguição.
Esse direito não justifica defender abusos e arbitrariedades praticadas pelo Estado de Israel, os quais remontam à sua fundação, em 1948.
Desde então, palestinos estão vivendo longe de suas terras, em exílio permanente nos países vizinhos ou confinados em Gaza e trechos cada vez menores da Cisjordânia, uma situação que se acirra a partir de 1967 e que os assentamentos israelenses aprofundam de forma trágica e inaceitável.
As demandas palestinas e da comunidade internacional pelo fim das ocupações, assim como o desejo, também dos israelenses, de viver em liberdade e com segurança, e a perda de todas as vidas envolvidas neste ciclo de violência, tornam urgente a resolução do conflito.
Mas quem é contra a existência do Estado de Israel, como se tem ouvido aqui e acolá, e que se alinha ao brado do Hamas de “Palestina do rio ao mar”, precisa explicar então o que sugere fazer com os milhões de judeus que habitam a região. Pois, por lógica dedutiva, só haveria duas opções: expulsão ou eliminação.
Precisamos iniciar um novo processo de paz que produza um acordo político bilateralmente aceitável e garanta aos palestinos autodeterminação e cidadania plena, com liberdade, independência e viabilidade econômica. Isso não se dará, entretanto, às custas da destruição do Estado de Israel e de um genocídio contra o povo judeu, como propõe o Hamas, mas sim a partir de duas entidades políticas convivendo lado a lado. A partir daí, podemos olhar para o passado e discutir a natureza desejada para esses Estados e as reparações justas e necessárias às partes.

O Planalto, a PF e as prisões escandalosas

Quando nos deparamos com as notícias das últimas operações da Polícia Federal (PF) envolvendo o alto escalão do governo, convém indagar se o mais preocupante é o interesse do governo em saber da operação com antecedência ou a alegação da PF de que não precisa prestar contas de nada a ninguém.
Sim, porque ninguém duvida de que num Estado republicano é promíscua a interferência indevida do poder no desenvolvimento de atividades de polícia judiciária, mas todo mundo concorda que a PF está subordinada ao Executivo e não está, digamos, desobrigada de prestar contas de sua atuação aos escalões superiores, que, em última instância, são o ministro de Estado da Justiça e a presidente da República.
Causa certo espanto a afirmação do presidente do Sindicato dos Delegados da Polícia Federal no Estado de São Paulo, Amaury Portugal, de que os delegados não precisam dar satisfações de nada a ninguém, senão ao juiz do caso. É verdade que uma das funções institucionais da PF é dar cumprimento às decisões judiciais proferidas durante as investigações, tal como mandados de busca e apreensão e de prisão temporária ou preventiva. O fato de estar obrigado a cumprir a decisão judicial, sob pena de incorrer em crime de desobediência, porém, não exime de modo algum o delegado de se submeter às regras de hierarquia do Poder ao qual está subordinada, o Executivo.
A questão que se coloca, então, é se é lícito o Planalto saber da operação com antecedência, ou seja, antes de ela ser deflagrada. Sobre isso não existe regra clara no nosso ordenamento, mas também não existe nenhuma norma que proíba a prévia comunicação.
À primeira vista parece estranho o interesse da presidente Dilma em conhecer os detalhes da operação antes da sua realização. Por outro lado, é preciso reconhecer que comunicar a existência da investigação e os detalhes da operação que se avizinha não é obrigatoriamente ilegal.
O motivo para a questão ter atraído os olhos atentos da opinião pública não é, obviamente, o fato de a presidente Dilma querer saber da operação, mas o receio de que, ao tomar ciência prévia dela, o Planalto possa desvirtuar o objeto da investigação e influenciar a normal obtenção da prova.
Aqui parece situar-se o ponto fulcral da questão. Nosso ordenamento jurídico dispõe de mecanismos de proteção da legalidade, como a cominação de pena criminal para os agentes públicos que pratiquem ou deixem de praticar ato de ofício para satisfazer interesse pessoal, dando ordem, por exemplo, para que a operação seja abortada sem nenhum fundamento jurídico válido. Ou, pior até, prevê penas para quem fraude provas ou outros elementos da investigação com a operação já deflagrada, comunicando previamente os sujeitos alvos da operação, a fim de que previnam a descoberta de provas comprometedoras.
Veja-se, pois, que a questão toda gira em torno de uma presunção, qual seja, a de que a presidente poderia usar o poder que tem para frear a atuação policial; logo, quando a PF busca evitar que a presidente saiba da operação, não está fazendo outra coisa senão questionar a credibilidade e as boas intenções da chefe do Executivo. Novamente não se sabe o que é mais grave, se o elo político estreito que liga o Planalto aos investigados ou a suspeita da PF de que o sucesso da operação correria risco se ela fosse antecipadamente comunicada à presidente da República.
O interesse prévio da presidente pelas investigações pode, no máximo, ser objeto de crítica política. E, nesse aspecto, não faltam bons argumentos para questionar sua atuação. O fato, porém, é que, do ponto de vista jurídico, causa mais espanto a aparente insubordinação do órgão policial do que a curiosidade demonstrada pelo Planalto tocante aos atos investigativos.
É sabido que o poder torna as pessoas mais suscetíveis à prática de atos ilegais. Essa, a propósito, é a força motriz dos casos de corrupção que assolam o País e desencadearam as recentes operações da PF. É certo também que, quanto maior o poder que a pessoa detém, maior a capacidade de ser subvertida a legalidade para a satisfação de interesses pessoais e políticos. É preciso, todavia, enfrentar os desafios do Estado de Direito dentro da legalidade, por mais difícil que isso possa ser. Não é porque a presidente tem, em tese, o poder – ou a mera possibilidade, na acepção vulgar da palavra – de atrapalhar as investigações que deveremos concordar, então, que seja anulada a subordinação da PF ao chefe do Poder Executivo.
Com todo o respeito às opiniões contrárias, deveríamos propor-nos a fazer o exercício pedagógico de boa convivência republicana e eleger a lógica inversa à que está colocada. Deveríamos partir do pressuposto de que a presidente da República, tendo em vista a importância do cargo que ocupa e a legitimidade com que governa, eleita pela maioria da população para comandar o destino do País, não se arriscaria a sujar suas mãos com a lama que assola alguns setores do governo, sabedora de que sua permanência no cargo não resistiria um dia sequer caso viesse à tona alguma tentativa do Planalto, mínima que fosse, de acovardar os agentes policiais ou boicotar as investigações da PF.
Por mais difícil que seja confiar tamanho poder à presidente da República, isso ainda parece mais condizente com o espírito republicano do que permitir o afrouxamento dos laços que ligam a PF ao Poder Executivo, dando margem a que, em vez de prestar contas na linha hierárquica legalmente constituída – e prestar contas não implica perder a autonomia técnica -, o órgão de repressão estatal atue nos subterrâneos do poder anônimo, muito mais pernicioso à saúde do Estado de Direito, já tão combalida pelas mazelas estampadas todos os dias nas páginas dos jornais.

Termos circunstanciados, fonte de divergência entre as polícias

A imprensa noticiou que, por decisão do governador Tarcísio de Freitas e do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, a Polícia Militar do Estado de São Paulo passaria a ter atribuição para redigir o chamado termo circunstanciado, peça principal dos processos destinados a apurar os crimes de menor potencial ofensivo.
A medida, de acordo com o governador e seu secretário, teria por objetivo otimizar o serviço e evitar que os policiais militares permaneçam paralisados por longo tempo nos distritos policiais, prejudicando o policiamento ostensivo.
Não é a primeira vez que a cúpula da Polícia Militar reivindica a atribuição, hoje restrita à Polícia Civil.
A Polícia Civil, por sua vez, insiste em afirmar que a elaboração do termo circunstanciado é sua tarefa privativa por se tratar de atividade típica de polícia judiciária.
Como já havia ocorrido anteriormente, a pronta reação da cúpula da Polícia Civil e de suas entidades de classe surtiu efeito e, até o momento, a medida anunciada não foi implementada. A questão que, em um primeiro momento, não desperta grande interesse, traz à baila, mais uma vez, a não disfarçada rivalidade entre as duas polícias.
A rivalidade e a disputa de espaço entre as duas corporações já havia aparecido em nota emitida por entidade de classe da Polícia Civil protestando contra a ausência de policiais civis em operação coordenada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Estado de São Paulo que apurou a participação do PCC em lavagem de dinheiro em licitações envolvendo o transporte público. Como foi amplamente noticiado, a Operação Fim da Linha visava a apurar e a reprimir a atuação do crime organizado em atividade essencial em São Paulo. Como se recorda, os mandados expedidos naquela operação foram cumpridos exclusivamente pela Polícia Militar.
Os dois episódios — disputa sobre o protagonismo na elaboração dos termos circunstanciados e participação em operação em parceria com o Ministério Público — mostram uma evidência: o que está em discussão é a exata atribuição de cada uma das polícias.
A matéria foi disciplinada na Constituição Federal e o artigo 144, em seus §§ 4º e 5º estabelece a distinção entre as duas funções. Em síntese, cabe à Polícia Civil a função de polícia judiciária e de apuração das infrações penais, enquanto à Polícia Militar cabe o exercício da polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Ou, em outras palavras, cabe à Polícia Militar o trabalho preventivo e ostensivo e à Polícia Civil o trabalho de investigação após a prática da infração penal (uma leitura simples da Constituição parece dar razão à Polícia Civil no que se refere à elaboração do termo circunstanciado — tarefa da polícia judiciária e de investigação).
Sucede, no entanto, que a linha que separa o trabalho de prevenção e repressão nem sempre é clara, pelo que, com frequência, surgem discussões sobre quem deveria agir em algum caso concreto.
Em verdade, a existência de duas polícias com funções que, muitas vezes, não se distinguem, obviamente não produz bons resultados. A polêmica sobre o termo circunstanciado, constitui apenas mais um episódio da luta pela conquista de espaço e é apenas mais um capítulo da constante troca de farpas entre as duas instituições.
Em São Paulo, em particular, esta luta por espaço (ou por poder) tem uma característica especial. O atual secretário da Segurança foi eleito deputado federal com um discurso em que apresentava como mérito sua atuação como policial militar, pelo que, a Polícia Civil se sente desprestigiada.
Acrescente-se que também as guardas municipais lutam por mais espaço e frequentemente realizam operações em que invadem as funções que constitucionalmente são privativas da Polícia Militar e da Polícia Civil.
Toda esta situação demonstra que está mais do que na hora de se pensar na unificação das polícias.
A ideia não é nova e enfrenta grande resistência. As cúpulas das duas policiais, sempre que se fala em unificação, defendem a desnecessidade da medida, afirmando que as duas polícias trabalham de “maneira conjunta e harmônica”. A não unificação talvez seja o único tema que, de fato, una as duas polícias.
Mesmo que se aceite a ideia de trabalho harmônico, é mais que óbvio que a duplicidade de comando não se justifica. É o caso de se indagar. Se, de fato, o trabalho é harmônico, qual a razão da divisão de comandos?
Para se ter uma ideia da falta de lógica, basta dizer que, se houver excesso por parte de policiais em uma ação conjunta, poderá haver tratamento diferenciado, eis que há corregedorias diferentes com procedimentos disciplinares distintos e que poderão ser julgados de maneira diversa pela Justiça Comum ou Justiça Militar.
Ninguém nega a validade da existência de uma polícia fardada que realize o patrulhamento ostensivo e, eventualmente, repressivo. O que não se justifica é a divisão de trabalhos e, sobretudo, de comando em funções que se complementam.
Se alguém indagar aos munícipes, destinatários finais do serviço policial, o que diferencia o trabalho de cada uma das polícias, poucos serão capazes de responder. Tanto isto é verdade que as pesquisas de opinião indagam sobre a qualidade do serviço policial como um todo, sem qualquer distinção.
A duplicidade de comando importa, obviamente, em aumento de custo. Como é sabido, a burocracia se alimenta e muitos policiais se dedicam a atividades burocráticas que se repetem (uma mesma ocorrência pode ter registro diferentes conforme a visão de cada uma das instituições). Assim, até mesmo para a contenção de custos, a unificação das polícias é desejável.
Evidente que a unificação proposta demandaria um período de adaptação com o estudo de situações pessoais já consolidadas. Mas, por mais difícil que seja a adaptação, a unificação das polícias representaria em avanço e o fim de discussões bizarras, tais como quem pode elaborar um termo circunstanciado.

Ilegitimidade recursal do Ministério Público estadual em HC nas cortes superiores

O Ministério Público estadual não tem legitimidade ativa para interpor recurso contra decisão que concede ordem de Habeas Corpus nos tribunais superiores.

Esse foi o entendimento firmado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal ao deixar de conhecer agravo regimental interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte contra decisão monocrática do ministro Dias Toffoli que concedeu a ordem de Habeas Corpus nos autos do HC nº 202.522/RN [1].

A 2ª Turma reconheceu que, “na ação constitucional do Habeas Corpus, a legitimidade ativa é formada pelo impetrante e pelo paciente e a legitimidade passiva pela autoridade coatora”. E concluiu, em seguida, que “o Ministério Público não é parte, cabendo ao órgão ministerial atuar como custos legis perante a autoridade judiciária competente”.

No acórdão, além de afastar a legitimidade recursal do Ministério Público, a Turma ainda consignou que a atribuição ministerial para atuar junto à Suprema Corte, seja na condição de parte ou de custos legis, cabe à Procuradoria-Geral da República.

E terminou aduzindo que “não há, portanto, legitimidade ativa do Ministério Público estadual para recorrer, a fim de atender às pretensões do interesse da acusação, em sede de Habeas Corpus, sob pena de invasão das atribuições exclusivas da Procuradoria-Geral da República, para atuar na Corte Suprema”.

HC como ação autônoma de impugnação

O Habeas Corpus é uma ação autônoma de impugnação, de natureza mandamental e status constitucional (artigo 5º, inc. LXVIII, CB), que se destina prioritariamente à tutela da liberdade individual [2].

Enquanto meio de defesa contra abusos de poder e arbítrios estatais que restrinjam indevidamente a liberdade de locomoção, aqui entendida de forma ampla [3], o Habeas Corpus deve ser concedido sempre que se verificar a iminência ou efetiva ocorrência de ilegalidade que coloque o direito de ir e vir do indivíduo em perigo.

Tratando-se, portanto, de instrumento voltado à tutela da liberdade, “o interesse de agir no writ se consubstancia unicamente na necessidade da tutela jurisdicional para fazer cessar constrangimento ilegal imposto a alguém que sofra ou se ache ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção” [4]. Ou seja, não há interesse da acusação em jogo.

Pelo contrário, a única relação jurídica estabelecida na ação de Habeas Corpus se dá entre a parte que exerce o direito de impugnação e a autoridade estatal que pratica a ilegalidade contestada, respectivamente, impetrante e autoridade coatora. Todo interesse, inclusive acusatório, que refuja a essa relação bipartite configura objeto alheio ao HC.

É justamente por essa razão, que, há muito, a Suprema Corte consolidou entendimento no sentido de que o Habeas Corpus não pode ser admitido como aparato punitivo utilizado pelo Estado em desfavor do jurisdicionado [5]. Afinal, autorizar que pretensões acusatórias fossem levadas à apreciação do Poder Judiciário por intermédio do writ representaria inequívoco desvio de finalidade desta ação impugnativa.

Não por outro motivo, o Ministério Público, órgão com legitimidade para o exercício do poder acusatório, não figura sequer como parte processual no Habeas Corpus.

Ministério Público como custos legis

Não se desconhece que a atuação do Ministério Público no processo penal vai muito além da função de acusador. Enquanto órgão com atribuição para fiscalizar a aplicação da lei, a instituição tem o dever de agir na defesa da ordem legal e constitucional, inclusive em autos de Habeas Corpus.

Hoje, os regimentos internos do Supremo Tribunal Federal (artigo 192, § 1º, RISTF) e do Superior Tribunal de Justiça (artigo 202, RISTJ), dentre outros Tribunais, expressamente preveem que, uma vez impetrado o writ, o Ministério Público será intimado para, no prazo de dois dias, emitir parecer sobre a matéria em discussão. Porém, não foi sempre assim.

Moldado sob a lógica da celeridade na proteção da liberdade individual [6], o procedimento do Habeas Corpus originalmente previsto na legislação processual penal expressamente negava ao Ministério Público vista dos autos (artigo 611, CPP). Como o processo já contava com a prestação de informações pela autoridade coatora (polo passivo no writ), a manifestação adicional do órgão ministerial consistia em diligência desnecessária à prestação jurisdicional.

Foi apenas com a edição do Decreto-Lei nº 552/1969 que a manifestação ministerial passou a ser admitida, mas ainda sob caráter facultativo (artigo 1º, § 1º) – motivo pelo qual é dispensada a sua intimação em casos de jurisprudência consolidada.

Contudo, mesmo na condição de fiscal da lei, a atuação do Ministério Público nessa ação impugnativa deve ser vista com ressalvas.

Isso porque, ao que parece, a prerrogativa conferida ao Ministério Público para exercer o papel de custos legis no Habeas Corpus não lhe dá legitimidade para interpor recurso contra decisão concessiva da ordem, sob pena de descaracterizar a função que lhe foi expressamente atribuída.

O papel do órgão ministerial se encerra na elaboração de parecer. Nada além disso.

Competência privativa da PGR nos tribunais superiores

Ainda que se defendesse a legitimidade recursal do Ministério Público com o propósito de atuar na defesa de interesses institucionais, essa legitimidade, nos tribunais superiores, só é conferida à Procuradoria-Geral da República.

Foi esse o entendimento externado pela 2ª Turma do STF: “Ainda que se alegue resguardar interesses institucionais, com a reforma da decisão monocrática em sede de Habeas Corpus, o recurso somente poderia ser manejado pelo Procurador-Geral da República, órgão ministerial competente para atuar perante a Corte Suprema”.

E não poderia ser diferente. Afinal, a atuação exclusiva da PGR na Suprema Corte está expressamente prevista no artigo 103, § 1º, da Constituição brasileira.

A previsão também foi reproduzida na Lei Complementar nº 75/1993, segundo a qual “incumbe ao Procurador-Geral da República exercer as funções do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal” (artigo 46).

E a lógica é a mesma quando se trata de processos em trâmite no Superior Tribunal de Justiça, já que o RISTJ é expresso em dispor que “perante o Tribunal, funciona o Procurador-Geral da República, ou o Subprocurador-Geral, mediante delegação do Procurador-Geral” (artifgo 61).

Ao cabo, essas disposições se alinham aos limites funcionais estabelecidos aos órgãos de execução do Ministério Público tanto na sua Lei Orgânica (artigo 29 da Lei nº 8.625/1993) quanto na Lei Complementar nº 40/1981 (artigo 14), que restringem a atuação da Procuradoria-Geral da Justiça dos Estados aos tribunais ordinários.

Ou seja, reforçam a competência privativa da PGR para atuar perante os tribunais superiores.

Ofensa à paridade de armas

Bem se sabe, por outro lado, que a atuação do Ministério Público estadual nos tribunais superiores vem sendo plenamente admitida há tempo.

No julgamento paradigmático da QO no RE nº 593.727/MG, o Pleno da Suprema Corte já firmou entendimento, em sede de repercussão geral, no sentido de assegurar ao Ministério Público estadual “ampla possibilidade de postular, autonomamente, perante o Supremo Tribunal Federal, em recursos e processos nos quais o próprio Ministério Público estadual seja um dos sujeitos da relação processual” [7].

No entanto, essa atuação não pode se dar em afronta às prerrogativas privativas da Procuradoria-Geral da República e com o objetivo de defender, no Habeas Corpus, os interesses exclusivos da acusação.

Além de não figurar o Ministério Público como parte no writ, é certo que autorizar a atuação simultânea de dois de seus órgãos de execução na mesma ação engendraria um tumulto processual nos autos e representaria verdadeira ofensa à paridade de armas no processo penal.

A autorização conferiria ao Ministério Público estadual a possibilidade — utilizada com bastante recorrência, diga-se — de interpor recursos quando há ciência expressa da PGR à decisão concessiva ou, pior, fazê-lo quando a própria PGR já impugnou a decisão. Situação esta, não é demais destacar, em que a defesa seria obrigada contrarrazoar dois recursos ministeriais diferentes. Ou, como melhor colocaram os advogados Naira Seixas e Theuan Carvalho Gomes: lutar contra verdadeira Hidra ministerial, que se vale de duas cabeças para inserir, a todo custo, os interesses acusatórios na ação de Habeas Corpus [8].

Foi justamente por isso que a 2ª Turma reconheceu “a necessidade de resguardar a paridade de armas no processo penal, no caso concreto, pois, ao viabilizar-se a participação a um só tempo de mais de um Órgão do Ministério Público com atuação em esferas distintas, contribui-se para o desequilíbrio da relação processual, considerando o aparato punitivo já posto à disposição do Estado em desfavor do jurisdicionado”.

Com efeito, valendo-se das palavras do ministro Rogerio Schietti Cruz, a situação ensejaria “uma manifesta desigualdade de tratamento entre as partes, contrariando o axioma de que ‘não se deve permitir ao autor o que não seja permitido ao réu’” [9].

Conclusão

O precedente firmado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal nos autos do HC nº 202.522/RN representou um importante passo rumo ao controle da atuação do órgão ministerial em ações de Habeas Corpus.

A mudança de entendimento vem em bom tempo, sinalizando a uma necessária superação de uma das muitas facetas do defensivismo jurisprudencial dos tribunais superiores que permeia o Habeas Corpus no Brasil [10] e admite, em prejuízo à adequada tutela da liberdade individual, a contaminação dessa ação impugnativa com os interesses da acusação.

É necessário, porém, ir além. Cabe, agora, aos demais tribunais, inclusive ao Superior Tribunal de Justiça, apropriar-se desse relevante precedente, para fazer valer, na prática, os limites impostos por lei à intervenção do Ministério Público no Habeas Corpus.

 


[1] STF, AgR no AgR no HC nº 202.522/RN, rel. min. Dias Toffoli, 2ª Turma, DJe: 4/12/2023.

[2] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 1193.

[3] A esse respeito, o min. Gilmar Mendes, em sede doutrinária, explica que “a liberdade de locomoção há de ser entendida de forma ampla, não se limitando a sua proteção à liberdade de ir e vir diretamente ameaçada, como também a toda e qualquer medida de autoridade que possa afetá-la, mesmo que indiretamente”. Ver MENDES, Gilmar Ferreira. O habeas corpus e a proteção de direitos fundamentais no processo penal brasileiro. In: REIS, Anna Maria (et. al.) (orgs.). Habeas Corpus: teoria e prática: estudos em homenagem ao ministro Nilson Naves. 1ª ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2023.  p. 201.

[4] MENTOR, Diogo; PÃO, Renata. Teria o Ministério Público legitimidade para interposição de recurso em face da concessão de ordem de habeas corpus? In: REIS, Anna Maria (et. al.) (orgs.). Op. Cit. p. 128.

[5] STF, HC nº 69.889/ES, rel. min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ: 10/06/1994.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Habeas Corpus. Rio de Janeiro: Forense, 2014. pp. 36-37.

[7] STF, RE nº 593.727/MG, rel. min. Cezar Peluso, rel. p/ Acórdão min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe: 8/9/2015.

[8] SEIXAS, Naiara; GOMES, Theuan Carvalho. A Hidra ministerial: pode o Parquet ter duas cabeças nos tribunais superiores? Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-25/a-hidra-ministerial-pode-o-parquet-ter-duas-cabecas-nos-tribunais-superiores/. Acesso em: 21 jul. 2024.

[9] CRUZ, Rogério Schietti Machado Cruz. Garantias processuais nos recursos criminais. São Paulo: Atlas. 2002. p. 121.

[10] TORON, Alberto Zacharias. Habeas corpus: controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. 1ª ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. pp. 30-34.

É preciso reagir

A apresentação de projeto de lei que penaliza a gestante vítima de estupro em caso de aborto, tratando-a como homicida, foi importante para evidenciar algumas realidades.

Não há como negar que o eleitor brasileiro, aumentando significativamente as bancadas da bala e dos religiosos, fez a opção por um Congresso conservador. Não por acaso, os candidatos, afinal eleitos, apresentaram-se com seus títulos antes de seus nomes — Delegado, Capitão, Pastor, Bispo etc.

É também inegável que, ao não reeleger Bolsonaro, o eleitor deixou claro que há certos limites. Assim, importante pontuar que, apesar do crescimento do que se convencionou chamar de “ultradireita”, há espaço para debate em qualquer tema.

Diante deste quadro, é absolutamente inexplicável que as forças políticas progressistas, que impediram a reeleição de Bolsonaro, permaneçam silentes e permitam que certos temas sejam apropriados pelo conservadorismo — pior que isso, pelo reacionarismo — sem qualquer contraponto.

As pautas da segurança pública e dos costumes estão sendo dominadas sem contestação pelo que há de mais reacionário no país, o que, evidentemente, traz consequências quase irreversíveis.

Assim é que, apesar da manifestação tímida e quase burocrata do Ministério da Justiça, o governo e sua base no Poder Legislativo aceitaram, sem maior debate, o fim das licenças periódicas de presos em regime semiaberto, chamadas ironicamente de “saidinhas”, além do retorno da obrigatoriedade do exame de cessação de periculosidade para progressão de regime.

Recentemente, em grupo de WhatsApp recebi mensagem alarmante dando conta que no dia de Santo Antônio, última “saidinha”, perigosos criminosos seriam postos em liberdade, pelo que as forças policiais recomendavam que as pessoas permanecessem em suas casas durante aquela semana.

Pensei em responder, negando a veracidade da notícia e esclarecendo que, ainda que fosse mesmo a última “saidinha, não haveria motivo para pânico porque os presos em regime semiaberto, como deveria parecer óbvio, já ficam em liberdade durante o dia.

Não contestei e me arrependo.

É o nosso silêncio que está fazendo que enormes equívocos sejam aceitos como preocupações razoáveis.

A toda evidência, o fim das licenças temporárias não redundará em diminuição na criminalidade. É certo que, de quando em quando, há a notícia de crimes graves praticados por pessoas beneficiadas com saída temporária (a propósito, não há nenhuma estatística a respeito). Ainda assim, ninguém sério pode imaginar que a mudança legislativa terá impacto significativo com uma diminuição dos crimes violentos.

Também na área da segurança, absurdo ainda maior está prestes a ser implementado.

Aproveitando a crise entre o Supremo Tribunal Federal e o Poder Legislativo, tramita pelo Congresso Nacional, PEC que, a exemplo da legislação em vigor, permite o mesmo tratamento penal para traficante e usuário de drogas.

A aprovação de emenda constitucional, como é óbvio, impede qualquer modificação relevante na Lei de Tóxico e perpetuará a injustiça hoje vigente que permite a punição rigorosa e desproporcional de pequenos traficantes.

Mais uma vez, os políticos que se elegeram com discurso progressista, a começar pelo Presidente da República, permanecem em silêncio, temendo perder espaço em setores que já os repudiam.

Essa omissão é injustificável e deve ser cobrada por aqueles que nas urnas votaram justamente para evitar o retrocesso.

Há aqui, no meu sentir, um claro erro de avaliação política.

A omissão não traz qualquer ganho. Ao contrário. Os conservadores, ou reacionários, já fizeram sua opção e os progressistas não estão sendo representados.

O avança das medidas exclusivamente repressivas, como o fim das saídas temporárias e a não distinção clara entre traficante e usuário tem como consequência inevitável o aumento de encarceramento.

Ora, o aumento injustificado da população carcerária implica em aumento de despesas para enfrentar a já calamitosa falta de vagas. Não bastasse isso, a prisão de pessoas não perigosas, como os pequenos traficantes, conhecidos como “mulas”, de fácil reposição, só faz aumentar o poder das organizações criminosas no sistema carcerário.

A aprovação de medidas duras na área de segurança pública animou o reacionarismo a tentar avançar também na pauta de costumes.

Houve espaço para a apresentação (com a inacreditável aprovação do regime de urgência) do projeto de lei que equiparou o aborto ao homicídio.

Mais uma vez, os políticos compromissados com os direitos humanos e com o tratamento igualitário entre os gêneros ficaram covardemente (não há outro termo) quietos.

Foi preciso uma reação da sociedade civil para que o presidente Lula, não sem antes se declarar contra o aborto, certamente temendo a reação dos líderes religiosos, passasse a se declarar contra o projeto, afirmando que se tratava de uma insanidade. Evidente que tais declarações só foram feitas quando ficou claro que o projeto de lei não vingaria.

Em verdade, houve aqui um erro de cálculo.

Empolgados com as vitórias legislativas e com o silêncio da base do governo na área da segurança, os fundamentalistas e reacionários imaginaram que poderiam impor seus conceitos também na pauta de costumes.

Felizmente, houve pronta reação que, insisto, não partiu da classe política.

Fica, portanto, um alerta: é preciso reagir. Sem reação, sem debate, corremos o risco de retrocessos inimagináveis, tais como a aprovação de leis só vigentes em regimes semelhantes aos administrados pelo Taliban.


Termos circunstanciados, fonte de divergência entre as polícias

A imprensa noticiou que, por decisão do governador Tarcísio de Freitas e do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, a Polícia Militar do Estado de São Paulo passaria a ter atribuição para redigir o chamado termo circunstanciado, peça principal dos processos destinados a apurar os crimes de menor potencial ofensivo.

A medida, de acordo com o governador e seu secretário, teria por objetivo otimizar o serviço e evitar que os policiais militares permaneçam paralisados por longo tempo nos distritos policiais, prejudicando o policiamento ostensivo.

Não é a primeira vez que a cúpula da Polícia Militar reivindica a atribuição, hoje restrita à Polícia Civil.

A Polícia Civil, por sua vez, insiste em afirmar que a elaboração do termo circunstanciado é sua tarefa privativa por se tratar de atividade típica de polícia judiciária.

Como já havia ocorrido anteriormente, a pronta reação da cúpula da Polícia Civil e de suas entidades de classe surtiu efeito e, até o momento, a medida anunciada não foi implementada. A questão que, em um primeiro momento, não desperta grande interesse, traz à baila, mais uma vez, a não disfarçada rivalidade entre as duas polícias.

A rivalidade e a disputa de espaço entre as duas corporações já havia aparecido em nota emitida por entidade de classe da Polícia Civil protestando contra a ausência de policiais civis em operação coordenada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Estado de São Paulo que apurou a participação do PCC em lavagem de dinheiro em licitações envolvendo o transporte público. Como foi amplamente noticiado, a Operação Fim da Linha visava a apurar e a reprimir a atuação do crime organizado em atividade essencial em São Paulo. Como se recorda, os mandados expedidos naquela operação foram cumpridos exclusivamente pela Polícia Militar.

Os dois episódios — disputa sobre o protagonismo na elaboração dos termos circunstanciados e participação em operação em parceria com o Ministério Público — mostram uma evidência: o que está em discussão é a exata atribuição de cada uma das polícias.

A matéria foi disciplinada na Constituição Federal e o artigo 144, em seus §§ 4º e 5º estabelece a distinção entre as duas funções. Em síntese, cabe à Polícia Civil a função de polícia judiciária e de apuração das infrações penais, enquanto à Polícia Militar cabe o exercício da polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Ou, em outras palavras, cabe à Polícia Militar o trabalho preventivo e ostensivo e à Polícia Civil o trabalho de investigação após a prática da infração penal (uma leitura simples da Constituição parece dar razão à Polícia Civil no que se refere à elaboração do termo circunstanciado — tarefa da polícia judiciária e de investigação).

Sucede, no entanto, que a linha que separa o trabalho de prevenção e repressão nem sempre é clara, pelo que, com frequência, surgem discussões sobre quem deveria agir em algum caso concreto.

Em verdade, a existência de duas polícias com funções que, muitas vezes, não se distinguem, obviamente não produz bons resultados. A polêmica sobre o termo circunstanciado, constitui apenas mais um episódio da luta pela conquista de espaço e é apenas mais um capítulo da constante troca de farpas entre as duas instituições.

Em São Paulo, em particular, esta luta por espaço (ou por poder) tem uma característica especial. O atual secretário da Segurança foi eleito deputado federal com um discurso em que apresentava como mérito sua atuação como policial militar, pelo que, a Polícia Civil se sente desprestigiada.

Acrescente-se que também as guardas municipais lutam por mais espaço e frequentemente realizam operações em que invadem as funções que constitucionalmente são privativas da Polícia Militar e da Polícia Civil.

Toda esta situação demonstra que está mais do que na hora de se pensar na unificação das polícias.

A ideia não é nova e enfrenta grande resistência. As cúpulas das duas policiais, sempre que se fala em unificação, defendem a desnecessidade da medida, afirmando que as duas polícias trabalham de “maneira conjunta e harmônica”. A não unificação talvez seja o único tema que, de fato, una as duas polícias.

Mesmo que se aceite a ideia de trabalho harmônico, é mais que óbvio que a duplicidade de comando não se justifica. É o caso de se indagar. Se, de fato, o trabalho é harmônico, qual a razão da divisão de comandos?

Para se ter uma ideia da falta de lógica, basta dizer que, se houver excesso por parte de policiais em uma ação conjunta, poderá haver tratamento diferenciado, eis que há corregedorias diferentes com procedimentos disciplinares distintos e que poderão ser julgados de maneira diversa pela Justiça Comum ou Justiça Militar.

Ninguém nega a validade da existência de uma polícia fardada que realize o patrulhamento ostensivo e, eventualmente, repressivo. O que não se justifica é a divisão de trabalhos e, sobretudo, de comando em funções que se complementam.

Se alguém indagar aos munícipes, destinatários finais do serviço policial, o que diferencia o trabalho de cada uma das polícias, poucos serão capazes de responder. Tanto isto é verdade que as pesquisas de opinião indagam sobre a qualidade do serviço policial como um todo, sem qualquer distinção.

A duplicidade de comando importa, obviamente, em aumento de custo. Como é sabido, a burocracia se alimenta e muitos policiais se dedicam a atividades burocráticas que se repetem (uma mesma ocorrência pode ter registro diferentes conforme a visão de cada uma das instituições). Assim, até mesmo para a contenção de custos, a unificação das polícias é desejável.

Evidente que a unificação proposta demandaria um período de adaptação com o estudo de situações pessoais já consolidadas. Mas, por mais difícil que seja a adaptação, a unificação das polícias representaria em avanço e o fim de discussões bizarras, tais como quem pode elaborar um termo circunstanciado.