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Ilegitimidade recursal do Ministério Público estadual em HC nas cortes superiores
O Ministério Público estadual não tem legitimidade ativa para interpor recurso contra decisão que concede ordem de Habeas Corpus nos tribunais superiores.
Esse foi o entendimento firmado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal ao deixar de conhecer agravo regimental interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte contra decisão monocrática do ministro Dias Toffoli que concedeu a ordem de Habeas Corpus nos autos do HC nº 202.522/RN [1].
A 2ª Turma reconheceu que, “na ação constitucional do Habeas Corpus, a legitimidade ativa é formada pelo impetrante e pelo paciente e a legitimidade passiva pela autoridade coatora”. E concluiu, em seguida, que “o Ministério Público não é parte, cabendo ao órgão ministerial atuar como custos legis perante a autoridade judiciária competente”.
No acórdão, além de afastar a legitimidade recursal do Ministério Público, a Turma ainda consignou que a atribuição ministerial para atuar junto à Suprema Corte, seja na condição de parte ou de custos legis, cabe à Procuradoria-Geral da República.
E terminou aduzindo que “não há, portanto, legitimidade ativa do Ministério Público estadual para recorrer, a fim de atender às pretensões do interesse da acusação, em sede de Habeas Corpus, sob pena de invasão das atribuições exclusivas da Procuradoria-Geral da República, para atuar na Corte Suprema”.
HC como ação autônoma de impugnação
O Habeas Corpus é uma ação autônoma de impugnação, de natureza mandamental e status constitucional (artigo 5º, inc. LXVIII, CB), que se destina prioritariamente à tutela da liberdade individual [2].
Enquanto meio de defesa contra abusos de poder e arbítrios estatais que restrinjam indevidamente a liberdade de locomoção, aqui entendida de forma ampla [3], o Habeas Corpus deve ser concedido sempre que se verificar a iminência ou efetiva ocorrência de ilegalidade que coloque o direito de ir e vir do indivíduo em perigo.
Tratando-se, portanto, de instrumento voltado à tutela da liberdade, “o interesse de agir no writ se consubstancia unicamente na necessidade da tutela jurisdicional para fazer cessar constrangimento ilegal imposto a alguém que sofra ou se ache ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção” [4]. Ou seja, não há interesse da acusação em jogo.
Pelo contrário, a única relação jurídica estabelecida na ação de Habeas Corpus se dá entre a parte que exerce o direito de impugnação e a autoridade estatal que pratica a ilegalidade contestada, respectivamente, impetrante e autoridade coatora. Todo interesse, inclusive acusatório, que refuja a essa relação bipartite configura objeto alheio ao HC.
É justamente por essa razão, que, há muito, a Suprema Corte consolidou entendimento no sentido de que o Habeas Corpus não pode ser admitido como aparato punitivo utilizado pelo Estado em desfavor do jurisdicionado [5]. Afinal, autorizar que pretensões acusatórias fossem levadas à apreciação do Poder Judiciário por intermédio do writ representaria inequívoco desvio de finalidade desta ação impugnativa.
Não por outro motivo, o Ministério Público, órgão com legitimidade para o exercício do poder acusatório, não figura sequer como parte processual no Habeas Corpus.
Ministério Público como custos legis
Não se desconhece que a atuação do Ministério Público no processo penal vai muito além da função de acusador. Enquanto órgão com atribuição para fiscalizar a aplicação da lei, a instituição tem o dever de agir na defesa da ordem legal e constitucional, inclusive em autos de Habeas Corpus.
Hoje, os regimentos internos do Supremo Tribunal Federal (artigo 192, § 1º, RISTF) e do Superior Tribunal de Justiça (artigo 202, RISTJ), dentre outros Tribunais, expressamente preveem que, uma vez impetrado o writ, o Ministério Público será intimado para, no prazo de dois dias, emitir parecer sobre a matéria em discussão. Porém, não foi sempre assim.
Moldado sob a lógica da celeridade na proteção da liberdade individual [6], o procedimento do Habeas Corpus originalmente previsto na legislação processual penal expressamente negava ao Ministério Público vista dos autos (artigo 611, CPP). Como o processo já contava com a prestação de informações pela autoridade coatora (polo passivo no writ), a manifestação adicional do órgão ministerial consistia em diligência desnecessária à prestação jurisdicional.
Foi apenas com a edição do Decreto-Lei nº 552/1969 que a manifestação ministerial passou a ser admitida, mas ainda sob caráter facultativo (artigo 1º, § 1º) – motivo pelo qual é dispensada a sua intimação em casos de jurisprudência consolidada.
Contudo, mesmo na condição de fiscal da lei, a atuação do Ministério Público nessa ação impugnativa deve ser vista com ressalvas.
Isso porque, ao que parece, a prerrogativa conferida ao Ministério Público para exercer o papel de custos legis no Habeas Corpus não lhe dá legitimidade para interpor recurso contra decisão concessiva da ordem, sob pena de descaracterizar a função que lhe foi expressamente atribuída.
O papel do órgão ministerial se encerra na elaboração de parecer. Nada além disso.
Competência privativa da PGR nos tribunais superiores
Ainda que se defendesse a legitimidade recursal do Ministério Público com o propósito de atuar na defesa de interesses institucionais, essa legitimidade, nos tribunais superiores, só é conferida à Procuradoria-Geral da República.
Foi esse o entendimento externado pela 2ª Turma do STF: “Ainda que se alegue resguardar interesses institucionais, com a reforma da decisão monocrática em sede de Habeas Corpus, o recurso somente poderia ser manejado pelo Procurador-Geral da República, órgão ministerial competente para atuar perante a Corte Suprema”.
E não poderia ser diferente. Afinal, a atuação exclusiva da PGR na Suprema Corte está expressamente prevista no artigo 103, § 1º, da Constituição brasileira.
A previsão também foi reproduzida na Lei Complementar nº 75/1993, segundo a qual “incumbe ao Procurador-Geral da República exercer as funções do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal” (artigo 46).
E a lógica é a mesma quando se trata de processos em trâmite no Superior Tribunal de Justiça, já que o RISTJ é expresso em dispor que “perante o Tribunal, funciona o Procurador-Geral da República, ou o Subprocurador-Geral, mediante delegação do Procurador-Geral” (artifgo 61).
Ao cabo, essas disposições se alinham aos limites funcionais estabelecidos aos órgãos de execução do Ministério Público tanto na sua Lei Orgânica (artigo 29 da Lei nº 8.625/1993) quanto na Lei Complementar nº 40/1981 (artigo 14), que restringem a atuação da Procuradoria-Geral da Justiça dos Estados aos tribunais ordinários.
Ou seja, reforçam a competência privativa da PGR para atuar perante os tribunais superiores.
Ofensa à paridade de armas
Bem se sabe, por outro lado, que a atuação do Ministério Público estadual nos tribunais superiores vem sendo plenamente admitida há tempo.
No julgamento paradigmático da QO no RE nº 593.727/MG, o Pleno da Suprema Corte já firmou entendimento, em sede de repercussão geral, no sentido de assegurar ao Ministério Público estadual “ampla possibilidade de postular, autonomamente, perante o Supremo Tribunal Federal, em recursos e processos nos quais o próprio Ministério Público estadual seja um dos sujeitos da relação processual” [7].
No entanto, essa atuação não pode se dar em afronta às prerrogativas privativas da Procuradoria-Geral da República e com o objetivo de defender, no Habeas Corpus, os interesses exclusivos da acusação.
Além de não figurar o Ministério Público como parte no writ, é certo que autorizar a atuação simultânea de dois de seus órgãos de execução na mesma ação engendraria um tumulto processual nos autos e representaria verdadeira ofensa à paridade de armas no processo penal.
A autorização conferiria ao Ministério Público estadual a possibilidade — utilizada com bastante recorrência, diga-se — de interpor recursos quando há ciência expressa da PGR à decisão concessiva ou, pior, fazê-lo quando a própria PGR já impugnou a decisão. Situação esta, não é demais destacar, em que a defesa seria obrigada contrarrazoar dois recursos ministeriais diferentes. Ou, como melhor colocaram os advogados Naira Seixas e Theuan Carvalho Gomes: lutar contra verdadeira Hidra ministerial, que se vale de duas cabeças para inserir, a todo custo, os interesses acusatórios na ação de Habeas Corpus [8].
Foi justamente por isso que a 2ª Turma reconheceu “a necessidade de resguardar a paridade de armas no processo penal, no caso concreto, pois, ao viabilizar-se a participação a um só tempo de mais de um Órgão do Ministério Público com atuação em esferas distintas, contribui-se para o desequilíbrio da relação processual, considerando o aparato punitivo já posto à disposição do Estado em desfavor do jurisdicionado”.
Com efeito, valendo-se das palavras do ministro Rogerio Schietti Cruz, a situação ensejaria “uma manifesta desigualdade de tratamento entre as partes, contrariando o axioma de que ‘não se deve permitir ao autor o que não seja permitido ao réu’” [9].
Conclusão
O precedente firmado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal nos autos do HC nº 202.522/RN representou um importante passo rumo ao controle da atuação do órgão ministerial em ações de Habeas Corpus.
A mudança de entendimento vem em bom tempo, sinalizando a uma necessária superação de uma das muitas facetas do defensivismo jurisprudencial dos tribunais superiores que permeia o Habeas Corpus no Brasil [10] e admite, em prejuízo à adequada tutela da liberdade individual, a contaminação dessa ação impugnativa com os interesses da acusação.
É necessário, porém, ir além. Cabe, agora, aos demais tribunais, inclusive ao Superior Tribunal de Justiça, apropriar-se desse relevante precedente, para fazer valer, na prática, os limites impostos por lei à intervenção do Ministério Público no Habeas Corpus.
[1] STF, AgR no AgR no HC nº 202.522/RN, rel. min. Dias Toffoli, 2ª Turma, DJe: 4/12/2023.
[2] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 1193.
[3] A esse respeito, o min. Gilmar Mendes, em sede doutrinária, explica que “a liberdade de locomoção há de ser entendida de forma ampla, não se limitando a sua proteção à liberdade de ir e vir diretamente ameaçada, como também a toda e qualquer medida de autoridade que possa afetá-la, mesmo que indiretamente”. Ver MENDES, Gilmar Ferreira. O habeas corpus e a proteção de direitos fundamentais no processo penal brasileiro. In: REIS, Anna Maria (et. al.) (orgs.). Habeas Corpus: teoria e prática: estudos em homenagem ao ministro Nilson Naves. 1ª ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2023. p. 201.
[4] MENTOR, Diogo; PÃO, Renata. Teria o Ministério Público legitimidade para interposição de recurso em face da concessão de ordem de habeas corpus? In: REIS, Anna Maria (et. al.) (orgs.). Op. Cit. p. 128.
[5] STF, HC nº 69.889/ES, rel. min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ: 10/06/1994.
[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Habeas Corpus. Rio de Janeiro: Forense, 2014. pp. 36-37.
[7] STF, RE nº 593.727/MG, rel. min. Cezar Peluso, rel. p/ Acórdão min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe: 8/9/2015.
[8] SEIXAS, Naiara; GOMES, Theuan Carvalho. A Hidra ministerial: pode o Parquet ter duas cabeças nos tribunais superiores? Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-25/a-hidra-ministerial-pode-o-parquet-ter-duas-cabecas-nos-tribunais-superiores/. Acesso em: 21 jul. 2024.
[9] CRUZ, Rogério Schietti Machado Cruz. Garantias processuais nos recursos criminais. São Paulo: Atlas. 2002. p. 121.
[10] TORON, Alberto Zacharias. Habeas corpus: controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. 1ª ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. pp. 30-34.