Ilegitimidade recursal do Ministério Público estadual em HC nas cortes superiores

O Ministério Público estadual não tem legitimidade ativa para interpor recurso contra decisão que concede ordem de Habeas Corpus nos tribunais superiores.

Esse foi o entendimento firmado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal ao deixar de conhecer agravo regimental interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte contra decisão monocrática do ministro Dias Toffoli que concedeu a ordem de Habeas Corpus nos autos do HC nº 202.522/RN [1].

A 2ª Turma reconheceu que, “na ação constitucional do Habeas Corpus, a legitimidade ativa é formada pelo impetrante e pelo paciente e a legitimidade passiva pela autoridade coatora”. E concluiu, em seguida, que “o Ministério Público não é parte, cabendo ao órgão ministerial atuar como custos legis perante a autoridade judiciária competente”.

No acórdão, além de afastar a legitimidade recursal do Ministério Público, a Turma ainda consignou que a atribuição ministerial para atuar junto à Suprema Corte, seja na condição de parte ou de custos legis, cabe à Procuradoria-Geral da República.

E terminou aduzindo que “não há, portanto, legitimidade ativa do Ministério Público estadual para recorrer, a fim de atender às pretensões do interesse da acusação, em sede de Habeas Corpus, sob pena de invasão das atribuições exclusivas da Procuradoria-Geral da República, para atuar na Corte Suprema”.

HC como ação autônoma de impugnação

O Habeas Corpus é uma ação autônoma de impugnação, de natureza mandamental e status constitucional (artigo 5º, inc. LXVIII, CB), que se destina prioritariamente à tutela da liberdade individual [2].

Enquanto meio de defesa contra abusos de poder e arbítrios estatais que restrinjam indevidamente a liberdade de locomoção, aqui entendida de forma ampla [3], o Habeas Corpus deve ser concedido sempre que se verificar a iminência ou efetiva ocorrência de ilegalidade que coloque o direito de ir e vir do indivíduo em perigo.

Tratando-se, portanto, de instrumento voltado à tutela da liberdade, “o interesse de agir no writ se consubstancia unicamente na necessidade da tutela jurisdicional para fazer cessar constrangimento ilegal imposto a alguém que sofra ou se ache ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção” [4]. Ou seja, não há interesse da acusação em jogo.

Pelo contrário, a única relação jurídica estabelecida na ação de Habeas Corpus se dá entre a parte que exerce o direito de impugnação e a autoridade estatal que pratica a ilegalidade contestada, respectivamente, impetrante e autoridade coatora. Todo interesse, inclusive acusatório, que refuja a essa relação bipartite configura objeto alheio ao HC.

É justamente por essa razão, que, há muito, a Suprema Corte consolidou entendimento no sentido de que o Habeas Corpus não pode ser admitido como aparato punitivo utilizado pelo Estado em desfavor do jurisdicionado [5]. Afinal, autorizar que pretensões acusatórias fossem levadas à apreciação do Poder Judiciário por intermédio do writ representaria inequívoco desvio de finalidade desta ação impugnativa.

Não por outro motivo, o Ministério Público, órgão com legitimidade para o exercício do poder acusatório, não figura sequer como parte processual no Habeas Corpus.

Ministério Público como custos legis

Não se desconhece que a atuação do Ministério Público no processo penal vai muito além da função de acusador. Enquanto órgão com atribuição para fiscalizar a aplicação da lei, a instituição tem o dever de agir na defesa da ordem legal e constitucional, inclusive em autos de Habeas Corpus.

Hoje, os regimentos internos do Supremo Tribunal Federal (artigo 192, § 1º, RISTF) e do Superior Tribunal de Justiça (artigo 202, RISTJ), dentre outros Tribunais, expressamente preveem que, uma vez impetrado o writ, o Ministério Público será intimado para, no prazo de dois dias, emitir parecer sobre a matéria em discussão. Porém, não foi sempre assim.

Moldado sob a lógica da celeridade na proteção da liberdade individual [6], o procedimento do Habeas Corpus originalmente previsto na legislação processual penal expressamente negava ao Ministério Público vista dos autos (artigo 611, CPP). Como o processo já contava com a prestação de informações pela autoridade coatora (polo passivo no writ), a manifestação adicional do órgão ministerial consistia em diligência desnecessária à prestação jurisdicional.

Foi apenas com a edição do Decreto-Lei nº 552/1969 que a manifestação ministerial passou a ser admitida, mas ainda sob caráter facultativo (artigo 1º, § 1º) – motivo pelo qual é dispensada a sua intimação em casos de jurisprudência consolidada.

Contudo, mesmo na condição de fiscal da lei, a atuação do Ministério Público nessa ação impugnativa deve ser vista com ressalvas.

Isso porque, ao que parece, a prerrogativa conferida ao Ministério Público para exercer o papel de custos legis no Habeas Corpus não lhe dá legitimidade para interpor recurso contra decisão concessiva da ordem, sob pena de descaracterizar a função que lhe foi expressamente atribuída.

O papel do órgão ministerial se encerra na elaboração de parecer. Nada além disso.

Competência privativa da PGR nos tribunais superiores

Ainda que se defendesse a legitimidade recursal do Ministério Público com o propósito de atuar na defesa de interesses institucionais, essa legitimidade, nos tribunais superiores, só é conferida à Procuradoria-Geral da República.

Foi esse o entendimento externado pela 2ª Turma do STF: “Ainda que se alegue resguardar interesses institucionais, com a reforma da decisão monocrática em sede de Habeas Corpus, o recurso somente poderia ser manejado pelo Procurador-Geral da República, órgão ministerial competente para atuar perante a Corte Suprema”.

E não poderia ser diferente. Afinal, a atuação exclusiva da PGR na Suprema Corte está expressamente prevista no artigo 103, § 1º, da Constituição brasileira.

A previsão também foi reproduzida na Lei Complementar nº 75/1993, segundo a qual “incumbe ao Procurador-Geral da República exercer as funções do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal” (artigo 46).

E a lógica é a mesma quando se trata de processos em trâmite no Superior Tribunal de Justiça, já que o RISTJ é expresso em dispor que “perante o Tribunal, funciona o Procurador-Geral da República, ou o Subprocurador-Geral, mediante delegação do Procurador-Geral” (artifgo 61).

Ao cabo, essas disposições se alinham aos limites funcionais estabelecidos aos órgãos de execução do Ministério Público tanto na sua Lei Orgânica (artigo 29 da Lei nº 8.625/1993) quanto na Lei Complementar nº 40/1981 (artigo 14), que restringem a atuação da Procuradoria-Geral da Justiça dos Estados aos tribunais ordinários.

Ou seja, reforçam a competência privativa da PGR para atuar perante os tribunais superiores.

Ofensa à paridade de armas

Bem se sabe, por outro lado, que a atuação do Ministério Público estadual nos tribunais superiores vem sendo plenamente admitida há tempo.

No julgamento paradigmático da QO no RE nº 593.727/MG, o Pleno da Suprema Corte já firmou entendimento, em sede de repercussão geral, no sentido de assegurar ao Ministério Público estadual “ampla possibilidade de postular, autonomamente, perante o Supremo Tribunal Federal, em recursos e processos nos quais o próprio Ministério Público estadual seja um dos sujeitos da relação processual” [7].

No entanto, essa atuação não pode se dar em afronta às prerrogativas privativas da Procuradoria-Geral da República e com o objetivo de defender, no Habeas Corpus, os interesses exclusivos da acusação.

Além de não figurar o Ministério Público como parte no writ, é certo que autorizar a atuação simultânea de dois de seus órgãos de execução na mesma ação engendraria um tumulto processual nos autos e representaria verdadeira ofensa à paridade de armas no processo penal.

A autorização conferiria ao Ministério Público estadual a possibilidade — utilizada com bastante recorrência, diga-se — de interpor recursos quando há ciência expressa da PGR à decisão concessiva ou, pior, fazê-lo quando a própria PGR já impugnou a decisão. Situação esta, não é demais destacar, em que a defesa seria obrigada contrarrazoar dois recursos ministeriais diferentes. Ou, como melhor colocaram os advogados Naira Seixas e Theuan Carvalho Gomes: lutar contra verdadeira Hidra ministerial, que se vale de duas cabeças para inserir, a todo custo, os interesses acusatórios na ação de Habeas Corpus [8].

Foi justamente por isso que a 2ª Turma reconheceu “a necessidade de resguardar a paridade de armas no processo penal, no caso concreto, pois, ao viabilizar-se a participação a um só tempo de mais de um Órgão do Ministério Público com atuação em esferas distintas, contribui-se para o desequilíbrio da relação processual, considerando o aparato punitivo já posto à disposição do Estado em desfavor do jurisdicionado”.

Com efeito, valendo-se das palavras do ministro Rogerio Schietti Cruz, a situação ensejaria “uma manifesta desigualdade de tratamento entre as partes, contrariando o axioma de que ‘não se deve permitir ao autor o que não seja permitido ao réu’” [9].

Conclusão

O precedente firmado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal nos autos do HC nº 202.522/RN representou um importante passo rumo ao controle da atuação do órgão ministerial em ações de Habeas Corpus.

A mudança de entendimento vem em bom tempo, sinalizando a uma necessária superação de uma das muitas facetas do defensivismo jurisprudencial dos tribunais superiores que permeia o Habeas Corpus no Brasil [10] e admite, em prejuízo à adequada tutela da liberdade individual, a contaminação dessa ação impugnativa com os interesses da acusação.

É necessário, porém, ir além. Cabe, agora, aos demais tribunais, inclusive ao Superior Tribunal de Justiça, apropriar-se desse relevante precedente, para fazer valer, na prática, os limites impostos por lei à intervenção do Ministério Público no Habeas Corpus.

 


[1] STF, AgR no AgR no HC nº 202.522/RN, rel. min. Dias Toffoli, 2ª Turma, DJe: 4/12/2023.

[2] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 1193.

[3] A esse respeito, o min. Gilmar Mendes, em sede doutrinária, explica que “a liberdade de locomoção há de ser entendida de forma ampla, não se limitando a sua proteção à liberdade de ir e vir diretamente ameaçada, como também a toda e qualquer medida de autoridade que possa afetá-la, mesmo que indiretamente”. Ver MENDES, Gilmar Ferreira. O habeas corpus e a proteção de direitos fundamentais no processo penal brasileiro. In: REIS, Anna Maria (et. al.) (orgs.). Habeas Corpus: teoria e prática: estudos em homenagem ao ministro Nilson Naves. 1ª ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2023.  p. 201.

[4] MENTOR, Diogo; PÃO, Renata. Teria o Ministério Público legitimidade para interposição de recurso em face da concessão de ordem de habeas corpus? In: REIS, Anna Maria (et. al.) (orgs.). Op. Cit. p. 128.

[5] STF, HC nº 69.889/ES, rel. min. Celso de Mello, 1ª Turma, DJ: 10/06/1994.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Habeas Corpus. Rio de Janeiro: Forense, 2014. pp. 36-37.

[7] STF, RE nº 593.727/MG, rel. min. Cezar Peluso, rel. p/ Acórdão min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe: 8/9/2015.

[8] SEIXAS, Naiara; GOMES, Theuan Carvalho. A Hidra ministerial: pode o Parquet ter duas cabeças nos tribunais superiores? Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-25/a-hidra-ministerial-pode-o-parquet-ter-duas-cabecas-nos-tribunais-superiores/. Acesso em: 21 jul. 2024.

[9] CRUZ, Rogério Schietti Machado Cruz. Garantias processuais nos recursos criminais. São Paulo: Atlas. 2002. p. 121.

[10] TORON, Alberto Zacharias. Habeas corpus: controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. 1ª ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. pp. 30-34.

É preciso reagir

A apresentação de projeto de lei que penaliza a gestante vítima de estupro em caso de aborto, tratando-a como homicida, foi importante para evidenciar algumas realidades.

Não há como negar que o eleitor brasileiro, aumentando significativamente as bancadas da bala e dos religiosos, fez a opção por um Congresso conservador. Não por acaso, os candidatos, afinal eleitos, apresentaram-se com seus títulos antes de seus nomes — Delegado, Capitão, Pastor, Bispo etc.

É também inegável que, ao não reeleger Bolsonaro, o eleitor deixou claro que há certos limites. Assim, importante pontuar que, apesar do crescimento do que se convencionou chamar de “ultradireita”, há espaço para debate em qualquer tema.

Diante deste quadro, é absolutamente inexplicável que as forças políticas progressistas, que impediram a reeleição de Bolsonaro, permaneçam silentes e permitam que certos temas sejam apropriados pelo conservadorismo — pior que isso, pelo reacionarismo — sem qualquer contraponto.

As pautas da segurança pública e dos costumes estão sendo dominadas sem contestação pelo que há de mais reacionário no país, o que, evidentemente, traz consequências quase irreversíveis.

Assim é que, apesar da manifestação tímida e quase burocrata do Ministério da Justiça, o governo e sua base no Poder Legislativo aceitaram, sem maior debate, o fim das licenças periódicas de presos em regime semiaberto, chamadas ironicamente de “saidinhas”, além do retorno da obrigatoriedade do exame de cessação de periculosidade para progressão de regime.

Recentemente, em grupo de WhatsApp recebi mensagem alarmante dando conta que no dia de Santo Antônio, última “saidinha”, perigosos criminosos seriam postos em liberdade, pelo que as forças policiais recomendavam que as pessoas permanecessem em suas casas durante aquela semana.

Pensei em responder, negando a veracidade da notícia e esclarecendo que, ainda que fosse mesmo a última “saidinha, não haveria motivo para pânico porque os presos em regime semiaberto, como deveria parecer óbvio, já ficam em liberdade durante o dia.

Não contestei e me arrependo.

É o nosso silêncio que está fazendo que enormes equívocos sejam aceitos como preocupações razoáveis.

A toda evidência, o fim das licenças temporárias não redundará em diminuição na criminalidade. É certo que, de quando em quando, há a notícia de crimes graves praticados por pessoas beneficiadas com saída temporária (a propósito, não há nenhuma estatística a respeito). Ainda assim, ninguém sério pode imaginar que a mudança legislativa terá impacto significativo com uma diminuição dos crimes violentos.

Também na área da segurança, absurdo ainda maior está prestes a ser implementado.

Aproveitando a crise entre o Supremo Tribunal Federal e o Poder Legislativo, tramita pelo Congresso Nacional, PEC que, a exemplo da legislação em vigor, permite o mesmo tratamento penal para traficante e usuário de drogas.

A aprovação de emenda constitucional, como é óbvio, impede qualquer modificação relevante na Lei de Tóxico e perpetuará a injustiça hoje vigente que permite a punição rigorosa e desproporcional de pequenos traficantes.

Mais uma vez, os políticos que se elegeram com discurso progressista, a começar pelo Presidente da República, permanecem em silêncio, temendo perder espaço em setores que já os repudiam.

Essa omissão é injustificável e deve ser cobrada por aqueles que nas urnas votaram justamente para evitar o retrocesso.

Há aqui, no meu sentir, um claro erro de avaliação política.

A omissão não traz qualquer ganho. Ao contrário. Os conservadores, ou reacionários, já fizeram sua opção e os progressistas não estão sendo representados.

O avança das medidas exclusivamente repressivas, como o fim das saídas temporárias e a não distinção clara entre traficante e usuário tem como consequência inevitável o aumento de encarceramento.

Ora, o aumento injustificado da população carcerária implica em aumento de despesas para enfrentar a já calamitosa falta de vagas. Não bastasse isso, a prisão de pessoas não perigosas, como os pequenos traficantes, conhecidos como “mulas”, de fácil reposição, só faz aumentar o poder das organizações criminosas no sistema carcerário.

A aprovação de medidas duras na área de segurança pública animou o reacionarismo a tentar avançar também na pauta de costumes.

Houve espaço para a apresentação (com a inacreditável aprovação do regime de urgência) do projeto de lei que equiparou o aborto ao homicídio.

Mais uma vez, os políticos compromissados com os direitos humanos e com o tratamento igualitário entre os gêneros ficaram covardemente (não há outro termo) quietos.

Foi preciso uma reação da sociedade civil para que o presidente Lula, não sem antes se declarar contra o aborto, certamente temendo a reação dos líderes religiosos, passasse a se declarar contra o projeto, afirmando que se tratava de uma insanidade. Evidente que tais declarações só foram feitas quando ficou claro que o projeto de lei não vingaria.

Em verdade, houve aqui um erro de cálculo.

Empolgados com as vitórias legislativas e com o silêncio da base do governo na área da segurança, os fundamentalistas e reacionários imaginaram que poderiam impor seus conceitos também na pauta de costumes.

Felizmente, houve pronta reação que, insisto, não partiu da classe política.

Fica, portanto, um alerta: é preciso reagir. Sem reação, sem debate, corremos o risco de retrocessos inimagináveis, tais como a aprovação de leis só vigentes em regimes semelhantes aos administrados pelo Taliban.


Termos circunstanciados, fonte de divergência entre as polícias

A imprensa noticiou que, por decisão do governador Tarcísio de Freitas e do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, a Polícia Militar do Estado de São Paulo passaria a ter atribuição para redigir o chamado termo circunstanciado, peça principal dos processos destinados a apurar os crimes de menor potencial ofensivo.

A medida, de acordo com o governador e seu secretário, teria por objetivo otimizar o serviço e evitar que os policiais militares permaneçam paralisados por longo tempo nos distritos policiais, prejudicando o policiamento ostensivo.

Não é a primeira vez que a cúpula da Polícia Militar reivindica a atribuição, hoje restrita à Polícia Civil.

A Polícia Civil, por sua vez, insiste em afirmar que a elaboração do termo circunstanciado é sua tarefa privativa por se tratar de atividade típica de polícia judiciária.

Como já havia ocorrido anteriormente, a pronta reação da cúpula da Polícia Civil e de suas entidades de classe surtiu efeito e, até o momento, a medida anunciada não foi implementada. A questão que, em um primeiro momento, não desperta grande interesse, traz à baila, mais uma vez, a não disfarçada rivalidade entre as duas polícias.

A rivalidade e a disputa de espaço entre as duas corporações já havia aparecido em nota emitida por entidade de classe da Polícia Civil protestando contra a ausência de policiais civis em operação coordenada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Estado de São Paulo que apurou a participação do PCC em lavagem de dinheiro em licitações envolvendo o transporte público. Como foi amplamente noticiado, a Operação Fim da Linha visava a apurar e a reprimir a atuação do crime organizado em atividade essencial em São Paulo. Como se recorda, os mandados expedidos naquela operação foram cumpridos exclusivamente pela Polícia Militar.

Os dois episódios — disputa sobre o protagonismo na elaboração dos termos circunstanciados e participação em operação em parceria com o Ministério Público — mostram uma evidência: o que está em discussão é a exata atribuição de cada uma das polícias.

A matéria foi disciplinada na Constituição Federal e o artigo 144, em seus §§ 4º e 5º estabelece a distinção entre as duas funções. Em síntese, cabe à Polícia Civil a função de polícia judiciária e de apuração das infrações penais, enquanto à Polícia Militar cabe o exercício da polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Ou, em outras palavras, cabe à Polícia Militar o trabalho preventivo e ostensivo e à Polícia Civil o trabalho de investigação após a prática da infração penal (uma leitura simples da Constituição parece dar razão à Polícia Civil no que se refere à elaboração do termo circunstanciado — tarefa da polícia judiciária e de investigação).

Sucede, no entanto, que a linha que separa o trabalho de prevenção e repressão nem sempre é clara, pelo que, com frequência, surgem discussões sobre quem deveria agir em algum caso concreto.

Em verdade, a existência de duas polícias com funções que, muitas vezes, não se distinguem, obviamente não produz bons resultados. A polêmica sobre o termo circunstanciado, constitui apenas mais um episódio da luta pela conquista de espaço e é apenas mais um capítulo da constante troca de farpas entre as duas instituições.

Em São Paulo, em particular, esta luta por espaço (ou por poder) tem uma característica especial. O atual secretário da Segurança foi eleito deputado federal com um discurso em que apresentava como mérito sua atuação como policial militar, pelo que, a Polícia Civil se sente desprestigiada.

Acrescente-se que também as guardas municipais lutam por mais espaço e frequentemente realizam operações em que invadem as funções que constitucionalmente são privativas da Polícia Militar e da Polícia Civil.

Toda esta situação demonstra que está mais do que na hora de se pensar na unificação das polícias.

A ideia não é nova e enfrenta grande resistência. As cúpulas das duas policiais, sempre que se fala em unificação, defendem a desnecessidade da medida, afirmando que as duas polícias trabalham de “maneira conjunta e harmônica”. A não unificação talvez seja o único tema que, de fato, una as duas polícias.

Mesmo que se aceite a ideia de trabalho harmônico, é mais que óbvio que a duplicidade de comando não se justifica. É o caso de se indagar. Se, de fato, o trabalho é harmônico, qual a razão da divisão de comandos?

Para se ter uma ideia da falta de lógica, basta dizer que, se houver excesso por parte de policiais em uma ação conjunta, poderá haver tratamento diferenciado, eis que há corregedorias diferentes com procedimentos disciplinares distintos e que poderão ser julgados de maneira diversa pela Justiça Comum ou Justiça Militar.

Ninguém nega a validade da existência de uma polícia fardada que realize o patrulhamento ostensivo e, eventualmente, repressivo. O que não se justifica é a divisão de trabalhos e, sobretudo, de comando em funções que se complementam.

Se alguém indagar aos munícipes, destinatários finais do serviço policial, o que diferencia o trabalho de cada uma das polícias, poucos serão capazes de responder. Tanto isto é verdade que as pesquisas de opinião indagam sobre a qualidade do serviço policial como um todo, sem qualquer distinção.

A duplicidade de comando importa, obviamente, em aumento de custo. Como é sabido, a burocracia se alimenta e muitos policiais se dedicam a atividades burocráticas que se repetem (uma mesma ocorrência pode ter registro diferentes conforme a visão de cada uma das instituições). Assim, até mesmo para a contenção de custos, a unificação das polícias é desejável.

Evidente que a unificação proposta demandaria um período de adaptação com o estudo de situações pessoais já consolidadas. Mas, por mais difícil que seja a adaptação, a unificação das polícias representaria em avanço e o fim de discussões bizarras, tais como quem pode elaborar um termo circunstanciado.


Muito se fala, mas pouco se escuta entre os atores do Judiciário

Em praticamente todas as sessões de julgamento do Superior Tribunal da Justiça tornou-se praxe ouvir os ministros se queixarem do excesso de Habeas Corpus que são ajuizados pelos advogados. Segundo dados do próprio tribunal, o número não para de crescer e pode acabar inviabilizando o próprio funcionamento do STJ.

A queixa é legítima e, em boa parte, procedente. Há, no entanto, um problema crônico de comunicação na Justiça brasileira. Os atores da Justiça dialogam mal, muito mal. As faculdades não formam pessoas capazes de articular bem seus argumentos num processo. Nem mestrado e doutorado são capazes de suprir essa carência — senão até a pioram, pelo excesso de juridiquês.

Advogados, promotores e juízes escondem-se atrás de precedentes, decisões e artigos de lei porque isto todos aprendem na faculdade. Mas é comum ver acusações que não descrevem com precisão os fatos, decisões que não enfrentam os argumentos da parte e, claro também, habeas corpus que não conseguem deduzir de forma cristalina a pretensão.

Na área criminal, os advogados se deparam diariamente com decisões padrão, que repetem jargões como “a liminar é medida excepcional, e não se mostra cabível, na espécie” — ou seja, uma frase que encaixa em qualquer caso e não precisa do exame da ilegalidade apontada no caso concreto.

Comunicação forense

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, tem encabeçado uma campanha importantíssima voltada à simplificação da comunicação forense.

É preciso eliminar os data vênias, os egrégios e preclaros, o latinório; mas, mais do que isso, é preciso melhorar a comunicação. As petições precisam ser mais sintéticas, as denúncias não podem ser um calhamaço interminável, e as decisões e acórdãos não devem também passar de algumas páginas.

Basta também assistir a algumas sessões de julgamento para se perguntar se é necessário um voto levar às vezes horas para ser lido.

No criminal, é comum ver sentenças de 100, 200 páginas, transcrevendo depoimentos, manifestações do Ministério Público, e precedentes. Argumentos próprios mesmo, pensados para o caso concreto, pouco se veem. O mesmo ocorre com as petições. Muitos advogados ainda escrevem muito, lotam a petição de doutrina e jurisprudência, mas dedicam poucos argumentos à análise do caso efetivamente.

Os bons juízes são aqueles que decidem em poucas páginas, mal citam doutrina ou jurisprudência, mas exaurem o debate da causa.

Alguns dizem que o computador piorou muito a situação, em virtude do famoso “recorta e cola”, mas não é só isso. O computador também tornou o direito mais acessível. Em um clique, qualquer advogado, juiz ou promotor encontra na internet um precedente bom para usar no seu caso, até porque o Brasil ainda tem jurisprudência para todos os gostos.

Monólogo

O resultado disso é que muito se fala, mas pouco se escuta. A impressão às vezes é de que o diálogo processual é um monólogo.

Gritos roucos para ouvidos moucos

Em praticamente todas as sessões de julgamento do Superior Tribunal da Justiça tornou-se praxe ouvir os ministros se queixarem do excesso de habeas corpus que são ajuizados pelos advogados. Segundo dados do próprio tribunal, o número não para de crescer e pode acabar inviabilizando o próprio funcionamento do STJ.

A queixa é legítima e, em boa parte, procedente. Há, no entanto, um problema crônico de comunicação na Justiça brasileira. Os atores da Justiça dialogam mal, muito mal. As faculdades não formam pessoas capazes de articular bem seus argumentos num processo. Nem mestrado e doutorado são capazes de suprir essa carência —senão até a pioram, pelo excesso de juridiquês.

Advogados, promotores e juízes escondem-se atrás de precedentes, decisões e artigos de lei porque isto todos aprendem na faculdade. Mas é comum ver acusações que não descrevem com precisão os fatos, decisões que não enfrentam os argumentos da parte e, claro também, habeas corpus que não conseguem deduzir de forma cristalina a pretensão.

Na área criminal, os advogados se deparam diariamente com decisões padrão, que repetem jargões como “a liminar é medida excepcional, e não se mostra cabível, na espécie” —ou seja, uma frase que encaixa em qualquer caso e não precisa do exame da ilegalidade apontada no caso concreto.

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, tem encabeçado uma campanha importantíssima voltada à simplificação da comunicação forense. É preciso eliminar os data vênias, os egrégios e preclaros, o latinório; mas, mais do que isso, é preciso melhorar a comunicação. As petições precisam ser mais sintéticas, as denúncias não podem ser um calhamaço interminável, e as decisões e acórdãos não devem também passar de algumas páginas.

Basta também assistir a algumas sessões de julgamento para se perguntar se é necessário um voto levar às vezes horas para ser lido.

No criminal, é comum ver sentenças de 100, 200 páginas, transcrevendo depoimentos, manifestações do Ministério Público, e precedentes. Argumentos próprios mesmo, pensados para o caso concreto, pouco se veem. O mesmo ocorre com as petições. Muitos advogados ainda escrevem muito, lotam a petição de doutrina e jurisprudência, mas dedicam poucos argumentos à análise do caso efetivamente.

Os bons juízes são aqueles que decidem em poucas páginas, mal citam doutrina ou jurisprudência, mas exaurem o debate da causa.

Alguns dizem que o computador piorou muito a situação, em virtude do famoso “recorta e cola”, mas não é só isso. O computador também tornou o direito mais acessível. Em um clique, qualquer advogado, juiz ou promotor encontra na internet um precedente bom para usar no seu caso, até porque o Brasil ainda tem jurisprudência para todos os gostos.

O resultado disso é que muito se fala, mas pouco se escuta. A impressão às vezes é de que o diálogo processual é um monólogo.

Para piorar, os criminalistas cuidam de casos antipáticos perante a opinião pública; logo, antipáticos também perante o Judiciário. Muitas vezes o juiz ou o tribunal nega-lhe o direito, ou lhe dá tratamento diferente “porque o caso é ruim”.

Não é algo que se admite com facilidade, mas a natureza humana está aí para comprová-lo. Ou seja, o Judiciário brasileiro universalizou o acesso à Justiça nos últimos 20 anos, mas não universalizou a efetiva entrega do direito igual a todos. Resultado: os advogados estão a todo tempo buscando garantir essa isonomia aos seus clientes.

Existem muitas questões para serem repensadas, que vão desde o ensino jurídico, a comunicação e a linguagem forense até o efetivo funcionamento da máquina judiciária.

O que não se pode é eleger um culpado: no caso, o habeas corpus, protetor maior da liberdade humana, pelas mazelas que acometem os tribunais e a efetiva realização da justiça no país.

Como combater o uso de drogas?

Está em curso julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre a questão do porte de drogas. A tendência é a descriminalização do porte de maconha. Como era de se esperar, reações surgiram.

De um lado, vozes conservadoras consideram que a decisão a ser proferida significa um caminho para a liberação total do tráfico de drogas. De acordo com esse pensamento a liberação do uso de maconha seria apenas o início para a liberação do uso indiscriminado de drogas. Mais que isso, a não punição ao usuário tornaria impossível a repressão ao tráfico, principal causa, segundo sustentam, do aumento da violência.

De outro lado, discute-se se a matéria comporta julgamento pelo Poder Judiciário.

O presidente do Senado, por exemplo, sustenta que a matéria é da alçada exclusiva do Poder Legislativo, único que pode definir a tipicidade da conduta de quem usa ou comercializa substância entorpecente que, por definição, causa dependência física e psíquica.

A matéria – descriminalização do uso de drogas – suscita debates.

Os defensores da posição que, tudo indica, o Supremo Tribunal Federal vai adotar para a maconha, afirmam que a questão é de saúde pública e não criminal, o que vale dizer que admitem que o uso de drogas não deve ser incentivado ou ignorado pelo Estado, mas não justifica seja considerado como conduta típicas.

Não me parece sustentável o primeiro argumento. Não vejo como se possa sustentar a não punição ao usuário de drogas importaria, necessariamente, em fragilizar a repressão ao tráfico. A toda evidência, a ideia repressiva da legislação tem sido, para dizer o mínimo, insuficiente, seja para a devida e necessária punição aos traficantes, seja para inibir o aumento de viciados. A proliferação das chamadas Cracolândias é o exemplo mais claro deste fracasso.

As forças policiais – Polícia Civil, Polícia Militar e Polícia Federal – em diversas operações informam de aumento exponencial nas apreensões. A todo instante há notícia de prisões de traficantes apontados como os principais distribuidores de drogas em determinadas regiões.

Não cabe aqui discutir sobre a qualidade das diligências policiais. Mas, é certo que, apesar da expressiva quantidade de droga apreendida e do expressivo número de prisões, não há qualquer indício de que as quadrilhas que se dedicam ao tráfico de substância entorpecente tenham diminuído sua atividade.

Isso posto, parece evidente que a atual sistemática, que prioriza a punição, não vem obtendo êxito.

O segundo argumento – a decisão do Supremo invade matéria da alçada do Poder Legislativo – , sem dúvida, é mais consistente.
Bem por isso, cabe aqui uma discussão sobre a legislação a respeito do tema.

O Brasil, a exemplo de vários países, não tem uma política clara para o tema. Ainda assim, é possível, como já afirmado acima, se dizer que a opção tem sido por uma posição mais repressiva.

O Código Penal de 1940 tratou do tema no artigo 281, tipificando condutas relativas ao tráfico e à posse ilícita.

Durante a ditadura militar, treze dias após a edição do AI 5, o Decreto-lei 385, de 26 de dezembro de 1968, revogou o artigo 281 do Código Penal e, em retrocesso evidente, equiparou a conduta do usuário e do traficante.

Essa inaceitável situação perdurou até a edição da Lei 6.368, de 1976, a primeira conhecida como a Lei de Entorpecentes, que distinguiu a conduta do usuário- punida com detenção-, do traficante- punida com reclusão.

Curioso que a Lei 6.368/76, duramente criticada por punir o usuário, representou, em verdade, uma evolução pois acabou com o absurdo de se punir igualmente usuário e traficante.

Hoje a matéria é regulada pela Lei 11.343/06, que distingue o usuário do traficante, mas é criticada por não estabelecer critérios seguros para diferenciar o tráfico do mero uso de substância entorpecente.

A crítica parece procedente.

Diante da falta de critério objetivo na lei, a quantidade de drogas apreendidas e as circunstâncias da prisão- local supostamente conhecido como ponto de venda, atitude do preso diante da aproximação da polícia, entre outras- passaram a ser decisivas para definir se o autuado em flagrante delito deve ser indiciado como traficante ou tratado como usuário.

A esmagadora maioria dos processos instaurados tem como nascedouro a prisão em flagrante delito.

Infelizmente, não há trabalho de investigação e, assim, só se tem o auto de prisão em flagrante delito para a definição do tipo penal, o que, a toda evidência, conduz a conclusões, para dizer o mínimo, duvidosas.

A palavra do policial que deu a voz de prisão em flagrante, no mais das vezes, constitui a prova mais importante para se definir se o investigado é ou não traficante.

Uma vez definido que se trata de tráfico, outra questão se coloca e mais uma vez com precariedade de informações.

O preso deve ser indiciado como incurso no artigo 33, caput, da Lei 11.343/06 ou é admissível reconhecer a causa de diminuição prevista no § 4º?

A causa de diminuição de pena, impropriamente chamada de tráfico privilegiado, aplica-se a réu primário que não pertença a organização criminosa.

A intenção do legislador, certamente, foi diferenciar a conduta do gerente do tráfico do pequeno traficante, permitindo a este último pena mais leve.

Como é sabido, recentemente o Supremo Tribunal Federal editou súmula concedendo ao condenado por tráfico privilegiado o direito à pena restritiva de direito, o que, sem dúvida, representou uma evolução, eis que, antes da edição da súmula, não poucos magistrados de primeira e segunda instância aplicavam penas privativas de liberdade, mesmo reconhecendo a incidência do redutor

Sucede, no entanto, que a exigência da primariedade permite que os chamados “mulas” recebam penas desproporcionais.

Isto porque há entendimento jurisprudencial forte no sentido de que o redutor só pode ser aplicado a traficante eventual. Ora, o “mula”, embora peça sem grande importância no mundo do tráfico, por ser peça de fácil reposição, não é traficante eventual, pelo que acaba sendo punido com regime fechado, o que, claramente, não se justifica.

Pior: como a lei não estabelece critérios para se diferenciar o traficante do usuário, há vários julgados em que se reconhece a viabilidade do usuário, até para manter o vício, também se dedicar ao comércio ilícito. Ora, quem está nesta condição (traficante e usuário), dificilmente será primário eis que frequentemente será surpreendido trazendo consigo substância entorpecente.

Em verdade, o legislador, até agora, com pequenas modificações, optou pela repressão.

Se, de um lado, a opção pela punição não redundou em eficiência, de outra, não será a liberação do uso de maconha que vai aumentar o problema.

Para aqueles que sustentam que só a punição pode diminuir o consumo de drogas, não custa lembrar o que ocorreu com a indústria do fumo (droga lícita, é verdade, mas com poderoso lobby).

Faço parte de uma geração em que todos fumavam em lugares públicos (quem não se lembra como sofriam os não fumantes em aviões, restaurantes e até mesmo salas de aula?). Sem repressão, mas com políticas públicas sérias dando conta do grave risco à saúde que o fumo representa, a diminuição no hábito de fumar foi impressionante a ponto do fumante hoje se sentir constrangido.

Não se imagina que a liberação geral de todo tipo de droga seja defensável.

Ainda que se possa sustentar, como no caso da nicotina, que o uso de drogas deve ser combatido com políticas mais ligadas à área de saúde, inegável que a comercialização de drogas pesadas deve ser repelida pela legislação criminal, tarefa que deve ser exercida pelo Poder Legislativo e não pelo Supremo Tribunal Federal.

Diante deste quadro, já passou da hora de uma profunda modificação legislativa sem nenhum receio de vozes conservadoras. A omissão do Poder Legislativo incentiva o protagonismo do Supremo Tribunal Federal.

Cabe ao Poder Legislativo modificar a legislação e distinguir, com clareza o traficante (pernicioso e merecedor da reprimenda penal) do usuário. Em seguida, urge distinguir diversas condutas hoje tratadas de maneira uniforme, não sendo mais razoável que pequenos traficantes sejam tratados com rigor que deve ser reservado ao gerente do tráfico.

Em suma: ainda que se possa entender que o Supremo Tribunal Federal, ao descriminalizar o uso de maconha, invada área da alçada do Poder Legislativo, tal decisão em nada vai fomentar a violência.

Cabe ao Poder Legislativo, reconhecendo as imperfeições da legislação a respeito do tema, enfrentar a matéria de maneira realista e responsável.

O protagonismo do Supremo Tribunal Federal

Quando se discute o papel do Supremo Tribunal Federal, é muito comum se criticar o protagonismo de seus membros que, em suas decisões, de acordo com os críticos, invadem áreas de competência dos demais poderes da República.

Décadas atrás os nomes dos ministros do Supremo Tribunal Federal sequer eram conhecidos.

Nos dias de hoje, a cada aposentadoria de um ministro, inicia-se uma grande articulação, mais política do que jurídica, para a substituição.

Nas três últimas nomeações o presidente da República fez uma opção pessoal. Bolsonaro, sem nenhum pudor, deixou claro que, entre outros critérios, escolheria alguém com quem pudesse “tomar tubaína” e que fosse “terrivelmente evangélico”. Já Lula nomeou seu advogado pessoal.

Isso porque, diante da importância de cada um dos membros do Supremo Tribunal Federal, o chefe do Poder Executivo opta por alguém com quem tenha diálogo e, mais que isso, seja previsível nos votos dos casos de interesse do governo.

Em verdade, desde a promulgação da Constituição de 1988, o STF foi ocupando espaço ascendente na vida política do Brasil.

Felipe Recondo e Luiz Weber, em magnífico estudo (Os Onze, Companhia das Letras) procuram apontar as razões para essa ascensão e ponderam:

“Não há explicação simples para essa ascensão. A Carta de 1988 regulou inúmeros temas da vida brasileira, canalizando conflitos sociais para o STF, o tribunal com competência para interpretar, quando motivado, a letra da lei. A Constituição ainda abriu as portas do tribunal para que partidos políticos e organizações da sociedade civil questionassem, por meio das ‘ações diretas de inconstitucionalidade’, a constitucionalidade das leis, antes prerrogativas do procurador-geral da República – demissível pelo presidente. Ou seja, a Constituição alçou o Supremo à última arena das disputas políticas do país, uma Corte muito diferente do tribunal que os anos de ditadura militar apequenaram. As transformações não ocorreram de forma linear, nem decorreram apenas da nova Constituição. O Congresso aprovou leis que, ao reformarem o controle de constitucionalidade, aumentaram o poder de fogo do tribunal”.

Importante notar que os nomeados são vitalícios e nada garante que, ao longo dos anos, manterão suas tendências que impulsionaram a nomeação.
Basta lembrar que no julgamento do mensalão, o relator, ministro Joaquim Barbosa, decisivo para a condenação de vários dirigentes do PT, entre os quais o então todo poderoso José Dirceu, foi nomeado pelo presidente Lula.

A propósito, o ministro Alexandre de Moraes assumiu o cargo após a morte de Teori Zavascki, nomeado no breve mandato de Michel Temer. Na ocasião sua nomeação foi duramente contestada por partidários do PT, críticos de sua atuação como Secretário de Segurança do governo Geraldo Alckmin.

A atuação da polícia de São Paulo, no período em que Alexandre era o responsável pela pasta da segurança, no dizer de muitos petistas, criminalizava os movimentos sociais e muitas vezes não respeitava o direito de livre manifestação da classe trabalhadora. A expressão “polícia do Alckmin” era usada de maneira pejorativa por setores da esquerda ligados ao atual Presidente da República.

Ainda que hoje pareça incrível, a nomeação de Alexandre de Moraes por Michel Temer foi bem recebida pelos setores mais conservadores da sociedade, ao contrário do que ocorreu com os chamados progressistas. Em outras palavras, o exercício do cargo fez com que a visão sobre Alexandre de Moraes mudasse radicalmente.

Em verdade, o longo tempo de mandato de cada ministro faz com que, com o passar dos anos, cada ministro se distancie de quem o nomeou (alguém se lembra que o decano Gilmar Mendes foi nomeado por FHC?).

Como é sabido, os primeiros votos do ministro Zanin desagradaram vários segmentos da sociedade ligados ao Presidente que o nomeou. Certamente, daqui a uma década, assim como ocorre com Gilmar Mendes e FHC, será difícil se lembrar que Zanin foi nomeado por Lula.

Embora a classe política reclame do que se convencionou chamar de ativismo judicial, o Supremo foi crescendo porque não poucas vezes parlamentares, vencidos no Legislativo, começaram a levar ao Supremo demandas pendentes no Congresso, o que vale dizer que passaram a se utilizar da mais alta corte do país no campo da disputa política.

De outro lado, a competência originária do Supremo Tribunal Federal fez com que casos que causaram impacto- mensalão e petrolão são os melhores exemplos- fossem julgados em sessões televisadas com grande audiência. Importantes quadros políticos foram julgados e condenados pela cúpula do Poder Judiciário, o que ocasionou crítica descabida segundo a qual o Judiciário estava criminalizando a atividade política.

Importante destacar que até 2001 o STF só podia processar e julgar deputados e senadores se a Câmara e o Senado, respectivamente, tivessem autorizado e isso, raramente, ocorria. A propósito, o famigerado deputado Hildebrando Pascoal, acusado de liderar grupo de extermínio no Acre não foi julgado pelo Supremo. A Câmara, ao invés de autorizar o processo, preferiu cassar-lhe o mandato, pelo que, com a perda da prerrogativa de função, foi processado e condenado em primeira instância. Com a aprovação da emenda constitucional 35 houve importante inversão: o Supremo passou a ter competência para julgar sem autorização prévia. É certo que a Câmara e o Senado podem suspender o processo a posteriori, o que traz, sem dúvida, enorme custo político.

Feitas essas observações, fica claro que o protagonismo do Supremo tem como causa o texto da Constituição, o uso da própria classe política quando submete ao tribunal casos em que sua posição não prevaleceu e, finalmente, as inúmeras causas de competência originária da mais alta corte do país.

Ainda assim, mesmo não podendo se afirmar que o Supremo tenha dado causa ao seu excesso de visibilidade algumas ponderações devem ser feitas.

É preciso, em primeiro lugar, priorizar a ideia de que o Supremo Tribunal Federal, a exemplo do que ocorre na maioria das democracias, deve ser rápido e eficiente com competência prioritariamente constitucional.

Neste passo, caberia ao Supremo limitar o conhecimento dos casos que lhe são submetidos a apreciação.

Como é sabido, a nossa Constituição é criticada por ser muito extensa e por ser mais uma “carta de intenções” do que uma “carta de princípios”. Princípios extremamente amplos, como o da razoabilidade, por exemplo, no limite, permitem que a corte reveja decisões dos outros poderes.

Uma interpretação mais restrita dos casos de competência do Supremo Tribunal Federal traria, no meu sentir, mais segurança jurídica. Sucede, no entanto, que ninguém renuncia a poder pelo que, cada vez mais, o Supremo Tribunal Federal chama para si questões de duvidoso interesse constitucional.

Não bastasse a falta de clareza no estabelecimento dos limites ao “guardião da Constituição”, falta clareza nos poderes de cada um dos ministros. Há quem diga que temos onze supremos.

As liminares com efeito de decisão definitiva, os pedidos de vista muitas vezes protelatórios e a falta de um critério técnico para a definição da pauta de julgamento dão a cada membro da corte enorme dose de poder.

Não poucas vezes, os julgamentos são adiados com pedidos de vista com maioria já formada.

Para ficar apenas em um exemplo, o juízo de garantias, previsto no pacote anticrime, não foi introduzido até hoje muito em razão de liminar concedida pelo então presidente do Supremo e a não colocação do assunto em julgamento durante todo seu mandato.

Questionável também o tempo de mandato de cada um dos ministros. Com a aprovação da chamada PEC da Bengala, os ministros permanecem décadas no cargo, o que, sem dúvida, traz sérios inconvenientes quando o nomeado eventualmente não se mostrar preparado para o cargo.

Não se nega que, por quatro anos, vivemos momentos difíceis em que o Supremo Tribunal Federal teve atuação decisiva para a manutenção da ordem democrática e do Estado de direito.

A dívida existe.

Ainda assim, cabe ao Supremo Tribunal Federal uma reflexão sobre as críticas, cada vez mais frequentes e não necessariamente de inimigos da democracia, a respeito do excesso de protagonismo e excesso de poder.

A discussão é válida.

Juiz de garantias: o que está em discussão

Em fins de 2019, o Congresso Nacional aprovou com modificações um projeto de lei chamado pomposamente pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, de pacote anticrime, com importantes modificações em matéria penal, processual penal e de execuções criminais.

O objetivo do pacote, no dizer do governo, era implementar medidas mais duras para enfrentar o aumento da violência e corrupção no país.

Passados mais de dois anos, parece evidente que não houve diminuição significativa, seja da violência, seja da corrupção.

E nem poderia ser diferente.

Qualquer pessoa minimamente informada sabe que a simples mudança legislativa, ainda que bem redigida com a intenção de aumentar penas e criar mais tipos penais, não tem impacto significativo para a diminuição da criminalidade.

Apesar de todo o protagonismo do ministro Sergio Moro, duas opções do Congresso Nacional demonstraram sua perda de força e prestígio: a não permissão de prisão de réu condenado em segunda instância e a criação do juiz de garantias, reivindicação de boa parte da advocacia criminal com considerável rejeição das entidades de classe ligadas ao Poder Judiciário e Ministério Público.

A primeira questão, como ficou assentado, depende de emenda constitucional e, ao que parece, saiu de pauta, o que não deixa de ser estranho diante da nova composição do Congresso Nacional com aumento expressivo da chamada “bancada da bala”, apoiadores de Jair Bolsonaro.

Já a segunda questão, após um inexplicável silêncio do Supremo Tribunal Federal, voltou à baila.

Como é sabido, está em curso julgamento, adiado pelo pedido de vista do ministro Dias Toffoli, em que se julgará a constitucionalidade do juízo de garantias – o julgamento ocorrerá a partir de agosto, já com a presença do novo ministro Cristiano Zanin.

Em verdade, este único tema – constitucionalidade ou não – deveria ser o objeto do julgamento, não cabendo qualquer discussão sobre a sua conveniência, questão já decidida por quem de direito: o legislador.

Cabe aqui um rápido histórico: o ministro Sergio Moro sempre foi contra a criação do juiz de garantias por entender que retardaria o andamento do processo criminal e, consequentemente, traria indesejada impunidade.

Não por acaso, Moro solicitou o veto presidencial dos artigos que alteraram o Código de Processo Penal para a criação do juiz de garantias.

O pedido de Moro, já enfraquecido por suas desavenças com Bolsonaro e seus filhos, não foi atendido.

Com a ausência de veto, o processo legislativo foi integralmente cumprido: o Executivo encaminhou projeto que sofreu mudanças nas casas legislativas, sendo, afinal, sancionado pelo Presidente da República sem nenhum veto relevante ao que foi decretado pelo Congresso Nacional.

Em suma: o juízo de garantias – goste-se ou não – foi criado por quem tem legitimidade para tanto: o Poder Legislativo.

Poderia ter sido vetado e não foi.

Com o devido respeito, não vejo fundamento para o debate que ocorre hoje na mais alta corte do país. Insisto: não está em discussão se a criação do juiz da garantias é ou não medida acertada, eis que a questão já foi apreciada pelo legislador que deliberou pela sua criação. O que está em discussão é a constitucionalidade da lei na forma em que foi promulgada.

Como é sabido, o que Sergio Moro não conseguiu no Poder Executivo, obteve no Judiciário.

Medida liminar concedida monocraticamente pelo ministro Luiz Fux impediu a efetivação do juiz da garantias.

A decisão monocrática perdurou por anos e só agora, quase três anos depois, vai ser apreciada pelo plenário.

Em 28 de junho, o ministro Fux apresentou seu voto e, como não poderia deixar de ser, foi contrário ao juízo da garantias.

De acordo com o voto, o “juiz de garantias não passa de um nome sedutor para uma cláusula que atentará contra a concretização da garantia constitucional da duração razoável dos processos”.

O argumento, com a devida vênia, não convence.

A uma porque, ao chamar de “um nome sedutor” questão apreciada pelo Poder Legislativo, o ministro invade seara alheia e faz indevida crítica a matéria debatida por quem tem competência para tanto.

A duas porque parece contraditório se invocar o princípio da duração razoável do processo, após a manutenção da liminar por quase três anos – notícias dão conta que o julgamento em plenário só ocorre em razão da pressão de outros ministros.

Finalmente, a observação ignora experiência bem-sucedida em São Paulo com a existência do DIPO que, basicamente, exerce as funções que seriam da competência do juiz de garantias sem que se possa dizer que acarrete retardamento no andamento dos processos.

Não se nega que alguns tribunais em alguns Estados terão dificuldades materiais e até orçamentárias para a introdução do juiz de garantias. Bem por isso, já se fala em estabelecer em implementação gradual da medida.

O que não parece razoável é a não adoção da lei, não por sua suposta inconstitucionalidade, mas por falta de estrutura.

O mesmo argumento pode ser utilizado para qualquer lei que acarrete criação de novas estruturas. Cabe, aqui, lembrar a previsão constitucional audaciosa do Sistema Único de Saúdes que, obviamente, em um primeiro momento, foi considerada impraticável.

Aceitar a ideia de falta de estrutura para justificar a não implementação de norma legitimamente criada transforma o Poder Judiciário em juiz da conveniência da legislação aprovada.

O que está em julgamento é se a norma é ou não constitucional.

Qualquer análise sobre sua viabilidade ou conveniência importa em indevida invasão na atividade legislativa.

Com a palavra, o plenário do Supremo Tribunal Federal.

Liberdade de expressão versus regulação?

A tendência que predominou nas últimas décadas no ambiente cibernético foi a de isentar as plataformas digitais de responsabilidades jurídicas por serem, teoricamente, meras intermediárias de conteúdo gerados por terceiros.

No entanto, agora, diante da relevância do papel das chamadas big techs para a sustentabilidade do ambiente digital, passou a haver forte demanda social pela adoção de medidas capazes de mitigar os efeitos nocivos de alguns conteúdos, como campanhas dolosas de desinformação, crimes de ódio e instigação a homicídios, entre outros graves ilícitos, cibernéticos ou não.

liberdade de expressão nunca foi absoluta em democracia alguma no mundo. No Brasil, desde o Império, passando por todos os códigos penais que se sucederam até o ora vigente, a lei sempre criminalizou a injúria, a calúnia, difamação, a ameaça, a instigação e a apologia ao crime, entre outras formas de expressão verbal que afetam bem ou direito de outrem.

Também o discurso de ódio merece a atenção do Supremo Tribunal Federal pelo menos desde o início do século, com o julgamento do caso Ellwanger, condenado por racismo por divulgar ideias antissemitas e negar a existência do Holocausto judeu.

Mais recentemente, diversos países passaram a obrigar as plataformas a adotarem o que se convencionou chamar de devido processo informacional na moderação de conteúdo, cabendo citar como exemplo o Digital Millennium Copyright Act (EUA), Direito ao Esquecimento (União Europeia), NetzDG (Alemanha) e Digital Service Act (União Europeia).

O que se busca com essa nova forma de regulação é o estabelecimento de regras claras e medidas efetivas para moderação de conteúdo e comportamento dos seus usuários. Até porque a ausência de regra acaba criando aquilo que menos se deseja: um ambiente jurídico onde campeia o arbítrio, ou seja, onde o permitido e o proibido acabam ficando ao alvedrio e ao sabor dos humores da autoridade de plantão.

Não se trata, portanto, de criminalizar discursos que antes eram tolerados, restringindo a liberdade de expressão, mas sim de obrigar o estabelecimento de um regime de conformidade para o gerenciamento de conteúdo nocivo. Neste regime deve haver medidas como:

1 – Imediata eliminação de conteúdos explicitamente tipificados criminalmente, como racismo, terrorismo, instigação a suicídio, violência contra mulheres e ilícitos contra crianças e adolescentes, os quais devem ser tratados e removidos em até 24 horas pelas plataformas;

2 – Adoção de medidas visando melhor compreender conteúdo cuja nocividade seja duvidosa, preferencialmente franqueando a oportunidade de ampla defesa aos usuários;

3 – Existência de consultores e entidades externos a serem acionados para avaliação de casos mais complexos, dentro do instituto da autorregulação regulada —modelo já existente na Alemanha, por exemplo;

4 – Limitação de alcance do conteúdo e calibragem de algoritmos; vedação de utilização de contas inautênticas para práticas nocivas; avisos sobre a sensibilidade de determinados conteúdos; desestímulo financeiro, impedindo a monetização, suspendendo ou cancelando contas que servem para atividades ilícitas, entre outras providências.

Todas essas medidas devem ser periodicamente tornadas públicas pelas plataformas de forma precisa, transparente e detalhada para o devido escrutínio da sociedade, possibilitando que sobre elas possam se realizar pesquisas acadêmicas, auditoria e fiscalização do desempenho do devido processo informacional, tanto para se medir o eficiente combate ao discurso de ódio e à desinformação como para a própria proteção da liberdade de expressão.

A regulação não é inimiga dos direitos; a lei é o melhor remédio que já inventaram contra a desordem social e o arbítrio estatal. O desafio é como aprimorá-la para dela extrair a maior eficiência com o menor custo às nossas liberdades.

‘Mito’

Apesar de Jair Bolsonaro ser filho da velha política, o fenômeno bolsonarista não é. O fenômeno nasce a partir da ideia de “mito”, que em nada condiz com a do medíocre deputado federal que fora até 2018. É a ideia de “mito” que o catapulta ao posto mais importante da República.

Sucede que “mito é uma narrativa”, escreve o professor Everardo Rocha na sua contribuição para a coleção “Primeiros Passos”, da Editora Brasiliense, na década de 1980. Prossegue ele: “O mito não fala diretamente, ele esconde alguma coisa (…) O mito é uma coisa inacreditável, algo sem realidade, é uma mentira; sua verdade, consequentemente, deve ser procurada num outro nível, talvez outra lógica”.

Bolsonaro mais de uma vez se disse escolhido por Deus para presidir o Brasil. Os movimentos de cunho fascista costumam se ancorar nessa premissa. Usam termos que remetem a uma escolha divina, a um poder ancestral. Por isso seus líderes recebem designações como mito, “führer”, “duce”.

Em uma obra pouco conhecida (“Aspectos do Drama Contemporâneo”), que analisa aspectos psicológicos do fenômeno do nazismo na Alemanha, Carl Jung considera que a sociedade foi acometida por uma epidemia psíquica a partir do momento em que o inconsciente coletivo do povo alemão foi capturado por Hitler e seus asseclas.

Jung traça um perfil psicológico de Hitler, considerando-o uma manifestação simbólica do antigo deus germânico Wotan.

De fato, ninguém melhor do que um representante de Deus para conseguir dialogar com os demônios que a razão não consegue dominar. As formas racionais e pacíficas de solução de conflitos são encaradas como covardia e permissividade, típicas de um homem fraco, rendido às peias do comunismo cultural.

Daí a repulsa desses movimentos a tudo que vem da ciência e da razão. Tudo que tenta racionalizar e de alguma forma aplacar as manifestações puras que brotam da alma são tentativas de manipular a mente do povo.

Os movimentos fascistoides são contra o que Bolsonaro e seus seguidores gostam de chamar de “intelectualismo”. Preferem a superfície dos sentimentos primitivos às construções do pensamento filosófico que, ao longo dos séculos, sedimentaram os valores da civilização.

Em “Minha Luta”, Hitler atacava o bolchevismo judaico, ao mesmo tempo em que acusava os judeus capitalistas americanos de quererem dominar o mundo (uma cópia fajuta de “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, talvez a primeira fake news do mundo moderno). Ou seja, teses absolutamente contraditórias, que não operavam com a razão, nem com a lógica, e muito menos com a verdade, mas com o ódio ancestral do povo alemão pela imagem de um judeu medieval que só existia em seu inconsciente atávico. O judeu alemão era uma minoria insignificante, já em grande parte assimilada à sociedade alemã.

Bolsonaro toca no mesmo diapasão. Acusa empresários de globalistas por financiarem causas sociais e progressistas mundo afora —como é o caso de George Soros, mais de uma vez alvo de ataques de filhos do presidente em redes sociais.

Assim como a Alemanha e o mundo eram vítimas de um plano judaico para dominar o planeta, agora é a vez de progressistas —banqueiros ou sindicalistas, jornalistas ou políticos, não importa— serem acusados de usar métodos sub-reptícios para capturar todos os âmbitos da vida nacional. Vão se infiltrando na imprensa, nas universidades e nas escolas porque querem conquistar tudo com sua ideologia pagã. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

As pessoas tendem a achar que o que define o nazismo é Auschwitz. Auschwitz foi o nazismo levado às últimas consequências. O nazismo, como fenômeno político, pode se reproduzir em maior ou menor grau em outros momentos e outros lugares, ainda que sem a violência do nazismo alemão.

Se é verdade que a história se repete como farsa, Bolsonaro é o produto mais bem acabado dessa história —ou dessa farsa, se preferirem.