Política de encarceramento precisa ser revista com urgência

Urge rever a política de encarceramento. Prendemos muito e prendemos mal. A política criminal é como a economia, nem sempre o que agrada aos ouvidos do cidadão é melhor para o País. É uma ciência contraintuitiva. Estamos colhendo os danos da política demagógica, populista e irresponsável plantada durante décadas, focada apenas em prender, prender e prender.

O Brasil investiga pouco e prende muito. Prende por delitos pequenos, como furto, tráficos menores, receptação e roubo (o mais grave da categoria, porque praticado sempre com violência ou grave ameaça). Precisamos urgentemente rever a política de encarceramento.

Dados recentes do Ministério da Justiça mostram que a população carcerária cresceu assustadores 575% nos últimos 26 anos. Rios de dinheiro foram gastos nas últimas décadas na construção de presídios e nem por isso a criminalidade diminuiu. Ao contrário, a própria prisão virou o incremento maior da criminalidade organizada, a mais perigosa, como mostram os últimos acontecimentos.

A mudança no sistema prisional passa necessariamente pela transformação de uma cultura que propaga ser a prisão a única resposta admissível ao crime. O sinônimo de punição é encarceramento. Ao contrário, o equivalente à impunidade é a ausência do cárcere. O dever estatal e o querer social são os de punir, e não de evitar o crime. Punir prendendo. Até nas hipóteses em que a liberdade do acusado não apresenta riscos, sua prisão provisória é exigida por uma sociedade que se tornou ávida por castigo e vingança.

O querer punitivo da sociedade é capitaneado por parte de uma imprensa que não se limita a informar, mas acusa. Não admite defesa, condena. Não deseja processo, quer punição.

O paradoxo pouco percebido é que os esforços governamentais, que se cingem à construção de mais presídios, são direcionados para finalidades contrárias aos objetivos legais do sistema: não diminuem, mas aumentam a criminalidade.

O artigo 1.º da Lei de Execuções Penais afirma ser escopo do sistema proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado. Com facilidade se observa uma absoluta dissonância entre a lei e a realidade.

A ação governamental no setor penitenciário limita-se à construção de presídios. Não são criados subsistemas que possibilitem transformar a prisão em instrumento de readaptação do preso, restando ao sistema a missão de guardar, e mal, os que são trancafiados.

O Estado prende e não evita que a prisão exerça avassaladora influência sobre o indivíduo, aumentando extraordinariamente sua carga criminógena. Note-se, em abono, que o retorno ao cárcere atinge em torno de 70% da população carcerária.

O Brasil ostenta hoje o patamar de quarta maior população carcerária do mundo, atrás de EUA, China e Rússia. Mas entre eles é o campeão de prisões de acusados sem condenação. Nesse critério só perde para Peru, Marrocos, Paquistão, Índia e Filipinas. Na questão de superlotação, somos também um dos vencedores: temos metade das vagas para atender o número de presos.

A taxa do crescimento da população prisional é estarrecedora, como consequência da taxa de aprisionamento, que é a segunda maior do mundo, só perdendo para a Indonésia. Repita-se: não obstante tal fato, a criminalidade cresceu, como reflexo de uma política que só investiu em presídios, e não em formas inteligentes de reprimir o crime. Prendemos muito e prendemos mal.

Muitas dessas prisões são ilegais, mas há grande demora de parte da Justiça para revogá-las, quando e se isso vier a ocorrer. Ademais, como mostrou uma pesquisa da FGV, centenas de presos acabam cumprindo grande parte da pena em regime ilegal porque não conseguem a tempo corrigir nos tribunais de Brasília o erro cometido nas Cortes estaduais, que ainda relutam em incorporar a jurisprudência dos tribunais superiores.

Só que, em vez de facilitar o acesso dos presos aos tribunais superiores, o STF fez o inverso. Decidiu que, mesmo antes de uma condenação ser revista em Brasília, o réu já pode começar a cumprir a pena. Tudo indica que mais prisões ilegais serão efetivadas.

Medida que está ajudando a reduzir um pouco o ingresso de presos no sistema é a tão festejada audiência de custódia. A apresentação do preso a um juiz nas primeiras horas do flagrante é uma antiga exigência internacional, que o Brasil relutava em cumprir. Resultado do esforço pessoal do então presidente do CNJ, Ricardo Lewandowski, a audiência de custódia virou realidade em todos os Estados da Federação. Prevista no Pacto de São José da Costa Rica (artigo 7.º, 5), a audiência de custódia sofreu todo tipo de ataque, principalmente de setores da magistratura e do Ministério Público, instituições que deveriam zelar em primeiro plano pelos direitos e garantias individuais.

A apresentação do preso em juízo logo após a detenção é medida fundamental não apenas para coibir a tortura e os maus-tratos, mas também para funcionar como um filtro de racionalidade na porta de entrada do combalido sistema penitenciário. Fosse o Brasil um país dado ao cumprimento dos preceitos constitucionais e dos acordos internacionais que subscreve, vigoraria a liberdade como regra, como corolário do princípio da presunção de inocência.

Retirar da prisão quem lá não deveria estar significa reduzir a reincidência e evitar que as facções criminosas tenham mão de obra farta, ao ocuparem a lacuna deixada pelo Estado. Reduzir a mentalidade da prisão provisória significa punir melhor quem merece ser punido e evitar sofrimento para quem jamais deveria ter experimentado o cárcere.

Propiciar o mínimo de dignidade a uma população que carece e sempre careceu dos direitos sociais mais básicos, com o aproveitamento do cárcere para tentar supri-los, é dever impostergável da sociedade e do Estado. Se não assumirem consciente e permanentemente esse objetivo, só nos restará aguardar a próxima tragédia.

Política Nacional de Participação Social representa o dinamismo da sociedade

Segue provocando enorme polêmica o decreto 8.243, editado pela presidente Dilma, criando o “Sistema Nacional de Participação Social”. Podemos nos perguntar os motivos para medida deste jaez a poucos meses da eleição, ou até se a iniciativa estaria revestida de caráter autoritário. Antes disto, no entanto, é preciso debater a própria natureza da questão, afinal seria legítimo criar instâncias de diálogos dentro do governo, ampliando a participação da sociedade no executivo?

A sociedade técnico-industrial dos tempos contemporâneos, sociedade de massas, extremamente complexa social e tecnologicamente, tornou anacrônico o modelo de Estado fundado no liberalismo típico do século XIX, fundado no contrato social individualista, e com separação rígida entre Estado e sociedade. Esta transformação vem colocando desafios dramáticos a juristas e políticos, empenhados em manter a estabilidade institucional do Estado Democrático de Direito, sem refrear, no entanto, os elementos dinâmicos deste novo corpo social.

O entrechoque de interesses conflitantes destituiu o Estado da capacidade de atender, de forma satisfatória, as demandas de uma sociedade cada vez mais pluralista, e por esta razão, permeada de contradições e paradoxos inexpugnáveis.

O velho antagonismo de classe da década de 1930 cedeu lugar aos movimentos de defesa do meio ambiente, dos gays, da reforma prisional, do consumidor, dos aposentados, dos trabalhadores, os sindicatos, movimento das mulheres, empresários, cientistas, jornalistas, cada qual soerguendo sua bandeira de reivindicações e ideologias.

É inegável o déficit de representatividade que acompanha esta rápida transformação da sociedade e a enorme dificuldade de manter o Estado contemporâneo conectado a esta pluralidade de demandas sociais.

É verdade que alguns parlamentares são eleitos com plataformas razoavelmente bem definidas, mas são casos raros, o número de demandas e de movimentos ainda é infinitamente maior que o de tendências efetivamente representadas no legislativo, isto porque não é toda causa ou movimento que consegue se alavancar politicamente. Resultado: sobra uma gama enorme de movimentos sem representação política, e abundam políticas públicas com alto índice de reprovação da sociedade.

Assim, o papel do Estado hoje também deve ser o de mediador destes choques de interesses às vezes antagônicos. Mais do que isso. Ao adotar políticas públicas, o governo democrático não pode ignorar os impactos sociais delas resultantes, os quais dificilmente estão ao alcance do mandatário do poder.

Em outras palavras, quer nos parecer que, dada a incapacidade de onisciência dos governantes, e em razão da gama enorme de problemas a resolver, os votos da maioria dos eleitores já não bastam para garantir a legitimidade de toda e qualquer ação comandada pelo poder executivo; é necessário algo mais, é imprescindível também o respaldo social – técnico ou não – de quem convive com o problema, conhece suas sutilezas e armadilhas, sabe identificar causas e endereçar as melhores soluções, e isto só se consegue com a abertura dos poros do Estado, deixando entrar o oxigênio trazido pelo dinamismo da sociedade em movimento.

A crítica que se poderia fazer a esta forma de condução das políticas públicas seria quanto a delegar tão relevantes papéis a pessoas ou grupos escolhidos sem qualquer critério democrático de eleição, substituindo-se os personagens constitucionalmente incumbidos de representar o corpo social numa democracia.

Nada disto, contudo, permite concordar com a tese de que a participação de movimentos sociais na gestão do Estado ofende a democracia e a Constituição.

É verdade que Estados totalitários como a União Soviética e sua cópia tupiniquim, o Estado Novo de Vargas, criaram, através do poder central, plataformas de articulação, que permitiam a participação pelega da sociedade no governo, como forma de manter principalmente os sindicatos, no caso brasileiro, sob o jugo do ditador. No entanto, é preciso lembrar que lá não havia parlamento, e nem eleições, de modo que esta participação direta era a forma alternativa que os regimes encontravam de conferir alguma legitimidade ao governo.

Veja, não é porque o ditador invoca a bíblia, que nós seremos contra deus. Afinal, o Executivo não precisa deste ou de qualquer outro artifício para tomar a decisão que quiser, sobretudo em questões de sua competência que independem de promulgação de lei, ou melhor, de concordância do legislativo. Quanto às políticas públicas que dependem de alteração legislativa, o executivo tampouco precisaria de consulta prévia a movimentos sociais para encaminhar ao Congresso o projeto de lei que bem entendesse.

Aliás, num presidencialismo de coalisão como o nosso, dificilmente o executivo deixa de angariar apoio quando quer aprovar um projeto de lei importante para o governo. Não é criando instâncias de diálogos dentro do próprio governo que irá conseguir maior chance de aprovação.

Forçoso reconhecer também que o que o decreto ganha em legitimidade perde em agilidade, e neste ponto peca o decreto, porque subordina, quase como uma camisa de força, as decisões do executivo ao aval da sociedade civil.

Seja como for, é preciso abandonar o preconceito que existe em torno da expressão “movimentos sociais”, ainda hoje vistos como grupelhos subversivos, preocupados em impor a desordem e incitar a revolução. Os movimentos sociais são hoje dos mais variados matizes e, se escolhidos de forma isenta e imparcial, poderão contribuir muito para o progresso civilizatório do país.

Empresa não deve ser responsabilizada por crimes individuais

Qualquer empresário atento às mudanças legislativas convive atualmente com dois fantasmas a rondarem a vida da empresa. Um é a nova lei de lavagem de dinheiro (Lei 12.683/12), o outro a Lei Anticorrupção, entrada em vigor mais recentemente (Lei 12.846/13).

A lavagem se esconde amiúde em operações cotidianas aparentemente lícitas, de modo que detectar sua desfaçatez é tarefa complexa para o funcionário subalterno normalmente defrontado com este tipo de situação. Aliada aos rigores da nova lei de lavagem, esta dificuldade tem levado empresas a criarem regras internas, certas de evitarem, assim, o risco de cumplicidade de seus funcionários.

Ainda persiste, no entanto, a dúvida. Afinal, é justo condenar o empresário, ou um funcionário da empresa, não por ter desejado e premeditado o crime, mas apenas porque não foi capaz de impedi-lo, como é o caso da incriminação por lavagem no ambiente empresarial?

Existe um dispositivo no Código Penal, o artigo 13, que trata da questão, equiparando o autor do crime àquele que, embora tivesse o dever legal de evitar o resultado, assim não o procede. É a responsabilização por omissão. Este dispositivo torna possível acusar por homicídio a mãe que deixa o filho morrer de inanição, ou o médico que deixa morrer o doente sem prestar socorro.

Dá para imaginar, entretanto, a perplexidade do empresário que se depara com uma lei que, apesar de acenar com sanções pesadas, não aponta caminhos claros de como evitar a prática da lavagem de dinheiro. Sim, porque em situações normais da vida, as chamadas posições de garante ou de responsável legal decorrem de regras claras. A mãe não precisa conhecer a lei para saber que deve alimentar o filho, assim como o “salva vidas” não precisa saber direito penal para incumbir-se do dever de auxiliar o afogado.

Mas uma empresa obrigada por lei a evitar que seus serviços sejam usados para camuflar dinheiro sujo encontra grandes dificuldades de natureza operacional para cumprir com esta obrigação, afinal o empresário briga contra si mesmo quando precisa ir atrás do lucro, sua atividade fim, e ao mesmo tempo ser polícia do seu cliente, o que, além de não ser sua vocação, implica necessariamente perder negócios.

Somado a isto ainda há o fato de que, na área penal, onde ao Estado é dado o poder de aplicar as penas mais graves, inclusive de natureza corporal, como a prisão, as condutas proibidas precisam estar muito bem definidas, e a razão para isto está na comprovação histórica de que quanto mais imprecisa é a lei, maior a margem de arbitrariedade do Estado.

Como é possível, porém, responsabilizar, criminalmente, alguém por não fazer alguma coisa que a lei obriga se, primeiro, este alguém não está precisamente identificado na lei, e, segundo, se o comportamento exigido dele não decorre de uma regra definida de forma estrita no ordenamento, mas de programas de governança, ou “compliance”, que, cada qual a seu modo, deverá estabelecer na sua empresa, com grande dose de fé em que tais programas um dia sejam aprovados pelas autoridades competentes. Uma loteria, ou quem sabe mais uma roleta, pois enorme o risco de apostar no que acha correto e, no entanto, acabar perdendo tudo.

Por falar em perder tudo, este é o risco real de quem estiver incurso na nova Lei Anticorrupção. Adotando lógica até mais perversa, embora não haja sanção de natureza criminal, a nova lei prevê penalidades severas para a empresa que não evitar a prática de corrupção no âmbito de suas atividades, podendo até ser extinta, dependendo do caso, com prejuízo para muita gente inocente, conspurcando, é forçoso lembrar, a garantia constitucional de que nenhuma pena passará da pessoa do condenado.

O que o legislador claramente visou com a promulgação desta nova lei não foi punir o empresário que individualmente pratica a corrupção, mas sim penalizar a empresa como um todo, caso o funcionário, não importa o escalão, seja descoberto corrompendo um agente público.

Eis aí o grande erro do legislador. Se a empresa tem dificuldades para ser a polícia de seus clientes, tal como o Estado a quer no combate à lavagem, pior ainda a tarefa de xerife de seus funcionários. A responsabilidade pelo cometimento de um crime deve ser sempre individual, e cabe ao Estado investigar o fato para poder punir os responsáveis, até o mais alto escalão, se necessário, inclusive com medidas de afastamento dos culpados da direção da empresa e mesmo com sanções à própria empresa, dependendo de como o ato de corrupção estiver atrelado à sua forma de condução dos negócios.

O que o Estado não pode é abreviar esta missão investigativa, mediante a responsabilização de todo um regimento por mero decreto, sem critério algum, apenas porque a empresa não foi capaz de estabelecer programas de prevenção das práticas ilícitas. Ora, as pessoas mal conseguem prevenir acidentes, o que dirá crimes intencionais de terceiros, como a corrupção.

O legislador finge ignorar, ademais, que o grande vilão da corrupção não está dentro da empresa, mas no agente estatal que muitas vezes cria dificuldade para vender facilidade, ou o que é mais comum, vai direto para o achaque puro e despudorado. Mas deste velho personagem da história nacional a nova lei não cuidou.

Leis como estas, com indisfarçável viés totalitário, além de criarem um forte clima de desconfiança dentro das empresas, permitem uma alta dose de subjetivismo e arbítrio do agente estatal incumbido de aplicá-las, prova maior da incompreensão do legislador sobre o mal que se propôs a debelar. Dominasse o tema, saberia que o arbítrio estatal é, na verdade, um dos grandes responsáveis pela corrupção que assola o país.

Departamentos especializados perpetuam irregularidades

Um dos traços mais marcantes do anacronismo da nossa Justiça penal é a existência de “departamentos especializados”, como prevê agora a Lei Complementar 1.208/2013, aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado, com juízes excepcionalmente designados pela cúpula do Tribunal de Justiça de São Paulo, em vez de concursados para o cargo.

Por meio do texto aprovado pelos parlamentares paulistas, a Assembleia entrega ao presidente do tribunal e seu órgão especial um Departamento Estadual de Execuções Criminais e outro de Inquéritos Policiais, este último responsável, entre outras coisas, por examinar a legalidade das prisões em flagrante. Estes departamentos serão divididos em dez unidades por todo o estado, com a organização que bem entender lhe dar o órgão especial do tribunal de Justiça, que passa a ser investido do poder inclusive de designar juízes ao seu talante, além dos quase 600 cargos de auxiliares da Justiça que ficam desde já criados por disposição expressa da própria lei.

A entrada em vigor da citada lei representa um enorme atentado à tripartição dos poderes, pois a organização judiciária do Estado compete ao Legislativo, competência esta exclusiva e indelegável, por força de vários dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo e da Constituição Federal.

Mais do que isto, representa também uma grave violação das garantias do juiz natural, e dos princípios da inamovibilidade e independência judicial, criando juízes de exceção, que poderão ser postos e removidos dos cargos ao bel prazer do tribunal, além de implicar um tremendo retrocesso na política de direitos humanos, vez que distancia o juiz do sistema carcerário, aprofundando suas já conhecidas mazelas.

Em nota pública, várias entidades ligadas ao sistema de Justiça penal apontaram ainda outros inconvenientes, como o fato de que a lei obrigará outras carreiras, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, a se reorganizarem para estarem presentes nos locais onde os novos juízes passarão a atuar.

Ignorando, no entanto, os argumentos apresentados, e encerrando o debate de forma pouco democrática, a Assembleia aprovou a “toque de caixa” o texto encaminhado pelo presidente do TJ-SP, fazendo vistas grossas inclusive ao entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal, onde deverá ser decidida a constitucionalidade da lei, na linha da representação já encaminhada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo no último dia 9 de agosto ao Procurador Geral da República.

Merece rememorar que mesmo antes da entrada em vigor da mencionada lei complementar, o tribunal de Justiça já vinha sofrendo severas críticas pela não observância da independência judicial em algumas comarcas.

Preocupado com a situação, ainda em 2011, o Conselho Nacional de Justiça chegou a recomendar que o tribunal remetesse à Assembleia Legislativa do estado anteprojeto de lei de organização judiciária pondo fim a tais irregularidades. E veja só que ironia. A solução encontrada em terras bandeirantes foi oficializar a irregularidade transformando-a em lei, que não só mantém o problema, como estende a situação, antes localizada em pontos isolados, agora para todo o estado, ainda por cima dando carta branca ao tribunal para designar e afastar juízes, cerne da preocupação do CNJ.

Se nossos representantes na Assembleia não querem ouvir a sociedade civil, até vá lá, mas poderiam estar mais atentos ao entendimento do Supremo Tribunal Federal e do CNJ sobre o tema, afinal de contas a malfadada lei cria aproximadamente 600 novos cargos no tribunal, custo demasiado elevado para ser jogado no lixo, caso o Supremo julgue a lei inconstitucional. E as chances disto ocorrer, convenhamos, são bastante elevadas.

Gritos e sussurros agitam as ruas

Pertenço a uma geração forjada na onda de um sonho; o sonho de uma democracia possível. Fomos criados ao som triunfante da ditadura arruinada. Filhos dos planos econômicos, da inflação galopante e das sucessivas crises financeiras, somos também meio filhos, meio irmãos de uma Constituição que nasceu cidadã, mas logo se pôs de joelhos para a burocracia dos tempos do império, e dos ranços de autoritarismo ainda impregnados nas nossas instituições. Somos a geração do impeachment do Collor. E somos uma geração que parou naquele ano de 1992. Mas nem tudo é tão ruim. Somos também a geração do tetra e do penta. O alucinógeno para tantas dores sentidas.

Somos a geração que herdou a liberdade conquistada a fórceps pelos nossos pais, e de repente percebeu que ela não cabia na sala apinhada de quinquilharias eletrônicas. Junto com a vitrola, com a máquina de escrever e o rádio de pilha, enfiamos esta liberdade no fundo do armário, como uma relíquia vintage, um penduricalho qualquer, um adorno imponente.

Somos também a geração do massacre do Carandiru, dos sequestros, planejados e relâmpagos. Somos a geração do PCC e do 11 de setembro. Fomos a primeira geração de adolescentes da história a portar celular, e também os primeiros adolescentes da história a se corresponder por e-mail.

Algumas lembranças, como os ruídos de uma máquina de escrever, do telefone com som de campainha, do orelhão a ficha e da carta enviada pelo correio, ainda soam para nós como um filme nouvelle vague que começou a ser projetado por engano, mas logo foi interrompido, e no lugar dele apareceu um longa-metragem cheio de ação, barulho e muita violência.

É difícil perceber o que esta multidão pretende nas ruas frias da capital paulista e de outras cidades do país. Tantos são os temas envolvidos na revolta pacífica, que nenhum deles chega a caracterizar o lema ou o mote do movimento. Bem capaz até que, embora empunhando a mesma bandeira, os manifestantes estejam a antagonizar-se mutuamente em pontos específicos, numa babel moderna, onde todos gritam, mas ninguém se entende. Por enquanto sabem o que os une; pior será quando se aperceberem das diferenças que os separam. São tantos os temas, que não pode haver concordância em todos eles. Alguém disse que há esquerdas e direitas nas ruas. Quem se arvora defini-los assim ou assado diante de tão complexa plêiade de insatisfações?

Eles protestam contra tudo. Contra a onda de assaltos violentos na cidade, mas também contra a violência da Polícia Militar, e contra prisões ilegais na periferia. Contra uma justiça morosa, que ora permite a impunidade de alguns, mas ora prende por anos a fio para depois declarar a inocência. Contra a PEC 37, mas também contra órgãos do Judiciário que falam outra língua, distantes do cidadão, e cada vez menos sensíveis aos dramas individuais. É contra um Estado letárgico e corrupto, mas ao mesmo tempo inflexível e implacável aplicador da lei, quando se trata de arruinar famílias inteiras com a cobrança de tributos escorchantes.

Somos um país governado por um poder que arruma jeito para tudo, até estádio de primeiro mundo em tempo recorde, mas é incapaz de resolver os mais básicos problemas individuais do cidadão: o transplante de rim do pai do João, a cirurgia cardíaca da tia do Pedro, o alvará do bar do Zé, o parcelamento da dívida fiscal do Seu Mané, a prisão injusta do irmão do Severino… A dificuldade de perceber um discurso único nas passeatas não é por acaso. Nossa miséria é a somatória dos invisíveis sofrimentos individuais de cada um.

Algo nos diz que a revolta não é só contra o Estado. Parece ser um pouco também contra a cultura do automóvel e o consumismo vulgar, contra a publicidade opressiva e as forças invisíveis de um capitalismo brutalizado. São as intermináveis conversas com a empresa de telefonia móvel. Ou a intransigência do plano de saúde que se recusa a cumprir o contrato. O sentimento de ser bem tratado somente na hora de pagar e esquecido na hora de receber. Afora aquelas dívidas que o cidadão paga, mas nunca diminuem; aqueles contratos feitos para consumidor nenhum entender. Agora, para coroar, a inflação.

A sensação é de que vivemos num mundo onde é preciso estar o tempo inteiro à espreita, e sob o menor sinal de desatenção, lá vêm eles, a moça da telefonia vendendo um plano “mais vantajoso”, o rapaz do banco oferecendo um produto “muito interessante para a segurança da família”…. E junto deles vem sempre o seu maior aliado, o medo incutido na veia do cidadão. Não bastasse o medo natural que os problemas no cotidiano já nos provocam, este sentimento ainda é anabolizado pelos oportunistas de plantão. É o apresentador de televisão vendendo pânico a preços populares, com sua melada voz sepulcral em pleno horário nobre.

Nosso Estado tem problemas graves, mas pior do que isto, nossa sociedade está doente, está acometida por aquilo que Jung chamava de epidemia psíquica. Não sabemos aonde as passeatas vão nos levar, se o movimento das ruas é sinal de mudança, ou apenas mais um grito sem resposta da massa descontente. Sabemos, porém, que a sociedade está dando um pequeno passo no sentido de enfrentar questões que estavam escondidas no nosso mais remoto inconsciente coletivo, e daí quem sabe um dia sejamos capazes de curar nossas piores patologias sociais.

Lei seca ou embriagada?

Entrou em vigor no final do ano passado a novíssima lei seca, que traz alterações no Código de Trânsito Brasileiro. Novíssima porque houve uma tentativa fracassada em 2008, acompanhada na época de uma forte campanha nos Estados, com o aumento vertiginoso da fiscalização, das autuações e até de prisões.

Essa, porém, não tardou a se mostrar inviável, porque a configuração do crime dependia da quantidade de álcool no sangue, de modo que bastava recusar-se a fazer o teste do bafômetro para se ver livre da incriminação. Enfim, em poucos meses a tão festejada mudança legislativa se revelou um grande fiasco.

Veio, então, a lei n.º 12.760/2012, por força da qual o artigo 306 do Código de Trânsito, que tipifica o crime, passou a ter a seguinte redação: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”.

Algumas considerações sobre o novo crime de embriaguez ao volante merecem ser feitas.

Um ponto positivo da nova lei é que somente o motorista flagrado com a capacidade psicomotora alterada poderá ser enquadrado no mencionado crime, ao contrário do que ocorria com a malsinada lei de 2008, que presumia a alteração psíquica a partir de determinada quantidade de álcool no sangue, independentemente da efetiva embriaguez. A mudança é bem-vinda porque os efeitos do álcool e de outras substâncias psicoativas variam de uma pessoa para outra, só se podendo afirmar a diminuição da capacidade psicomotora de alguém mediante seu exame médico individualizado.

Entrementes, geraram polêmica na lei atual os meios de prova admitidos para se poder constatar a embriaguez. Além do teste de alcoolemia (por bafômetro ou exame de sangue), de notório fracasso na legislação anterior diante da oponível garantia de ninguém ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, a lei agora prevê o exame clínico, a perícia, o vídeo, a prova testemunhal ou outros meios de prova em Direito admitidos.

Causa estranheza que provas sérias e dotadas de valor científico, como a perícia ou o laudo clínico do médico, tenham recebido o mesmo valor legal do depoimento de uma testemunha qualquer ou até mesmo de um vídeo amador. Sim, porque, excluídos os casos emblemáticos de embriaguez notória, que a televisão costuma flagrar, a maioria dos casos de alteração da capacidade psicomotora é de difícil asserção, de modo que se mostra bastante temerário deixá-la à mercê da prova testemunhal – cuja falibilidade vem sendo discutida há décadas nos meios acadêmicos -, a qual é aceita com ressalvas pelos tribunais pátrios, sobretudo quando desacompanhada de provas materiais do crime.

Da mesma forma, a possibilidade de que a embriaguez seja atestada por imagens captadas em vídeo cria um ambiente fértil para uma indústria de condenações arbitrárias, exatamente o inverso do que deveria prevenir a lei, pois as imagens em vídeo são obviamente muito pobres em informações se comparadas com as análises médicas realizadas no exato momento da abordagem. Ou seja, mesmo quando não for possível o exame ao vivo e em cores, face to face, feito por um médico no momento da abordagem, diz a lei que poderá substituí-lo o exame virtual, melhor dizendo, cinematográfico, em duas dimensões, e não necessariamente submetido à análise médica, posto à mercê, portanto, da interpretação leiga dos agentes da Justiça. Havemos de convir que a lei se contentou com muito pouco!

Mais temerário ainda é permitir que o policial responsável pela abordagem possa figurar como “testemunha” da embriaguez. Herança de sombrios tempos de autoritarismo, o testemunho em juízo do policial responsável pela abordagem ainda é aceito praticamente sem reservas pela jurisprudência dos nossos tribunais como prova para condenar acusados de roubo, pequenos furtos, porte ilegal de arma e de drogas. Logo, ficará a gosto do freguês, cabendo a cada juiz individualmente decidir se ele será válido ou não como prova da embriaguez.

Acontece que infunde justificado desconforto no espírito do cidadão saber que a prova da embriaguez poderá ser decidida, em última análise, pelo policial responsável pela abordagem. Esse incômodo pode ter várias causas, como o histórico de arbítrio do poder no Brasil e as deficiências ainda existentes na nossa polícia. Mas pode ser atribuído também a um natural e, arriscamos dizer, universal receio do indivíduo, não importa o continente onde se encontre, de vir a sofrer abusos e arbitrariedades da parte das forças do Estado.

Não à toa, toda a razão de ser do Direito se resume a estabelecer limites ao exercício do poder, e talvez não haja situação mais propícia à ocorrência do desmando estatal do que a abordagem policial de rua. Em situações assim, em que o Estado detém um poder quase de vida ou morte sobre o indivíduo, a lei deve adotar procedimentos insuspeitos, pelos quais a legalidade da atuação possa ser aferida de forma objetiva, e não por mero ato de fé na palavra do policial.

Não há dúvida que a sociedade brasileira era credora de uma lei capaz de responder adequadamente ao número quase epidêmico de acidentes de trânsito causados pela combinação de álcool e automóvel. Mas é verdade também que toda iniciativa legislativa dessa natureza deve buscar o binômio liberdade-segurança, garantindo de forma equilibrada a prevenção de tragédias, sem ameaçar a segurança jurídica da população que sabe dosar liberdade com responsabilidade e não deve, por conseguinte, ser prejudicada pelos excessos alheios.

Pesa dizer, mas mais uma vez o legislador se deixou embriagar pela comoção provocada por alguns casos pontuais, atuando a reboque dos acontecimentos, aprovando do dia para a noite um texto legal que, sob o pretexto de resolver um relevante drama social, faz reviver velhos anacronismos, resquícios ainda de um Estado com forte viés autoritário.

Lei seca foi embriagada pela comoção de casos pontuais

Entrou em vigor no final do ano passado a novíssima lei seca, que traz alterações no Código de Trânsito Brasileiro. Novíssima porque houve uma tentativa fracassada em 2008, acompanhada na época de uma forte campanha nos estados, com o aumento vertiginoso da fiscalização, das autuações e até de prisões.

Essa, porém, não tardou a se mostrar inviável, porque a configuração do crime dependia da quantidade de álcool no sangue, de modo que bastava recusar-se a fazer o teste do bafômetro para se ver livre da incriminação. Enfim, em poucos meses a tão festejada mudança legislativa se revelou um grande fiasco.

Veio, então, a Lei 12.760/2012, por força da qual o artigo 306 do Código de Trânsito, que tipifica o crime, passou a ter a seguinte redação: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”.

Algumas considerações sobre o novo crime de embriaguez ao volante merecem ser feitas.

Um ponto positivo da nova lei é que somente o motorista flagrado com a capacidade psicomotora alterada poderá ser enquadrado no mencionado crime, ao contrário do que ocorria com a malsinada lei de 2008, que presumia a alteração psíquica a partir de determinada quantidade de álcool no sangue, independentemente da efetiva embriaguez. A mudança é bem-vinda porque os efeitos do álcool e de outras substâncias psicoativas variam de uma pessoa para outra, só se podendo afirmar a diminuição da capacidade psicomotora de alguém mediante seu exame médico individualizado.

Entrementes, geraram polêmica na lei atual os meios de prova admitidos para se poder constatar a embriaguez. Além do teste de alcoolemia (por bafômetro ou exame de sangue), de notório fracasso na legislação anterior diante da oponível garantia de ninguém ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, a lei agora prevê o exame clínico, a perícia, o vídeo, a prova testemunhal ou outros meios de prova em Direito admitidos.

Causa estranheza que provas sérias e dotadas de valor científico, como a perícia ou o laudo clínico do médico, tenham recebido o mesmo valor legal do depoimento de uma testemunha qualquer ou até mesmo de um vídeo amador. Sim, porque, excluídos os casos emblemáticos de embriaguez notória, que a televisão costuma flagrar, a maioria dos casos de alteração da capacidade psicomotora é de difícil asserção, de modo que se mostra bastante temerário deixá-la à mercê da prova testemunhal — cuja falibilidade vem sendo discutida há décadas nos meios acadêmicos —, a qual é aceita com ressalvas pelos tribunais pátrios, sobretudo quando desacompanhada de provas materiais do crime.

Da mesma forma, a possibilidade de que a embriaguez seja atestada por imagens captadas em vídeo cria um ambiente fértil para uma indústria de condenações arbitrárias, exatamente o inverso do que deveria prevenir a lei, pois as imagens em vídeo são obviamente muito pobres em informações se comparadas com as análises médicas realizadas no exato momento da abordagem. Ou seja, mesmo quando não for possível o exame ao vivo e em cores, face to face, feito por um médico no momento da abordagem, diz a lei que poderá substituí-lo o exame virtual, melhor dizendo, cinematográfico, em duas dimensões, e não necessariamente submetido à análise médica, posto à mercê, portanto, da interpretação leiga dos agentes da Justiça. Havemos de convir que a lei se contentou com muito pouco!

Mais temerário ainda é permitir que o policial responsável pela abordagem possa figurar como “testemunha” da embriaguez. Herança de sombrios tempos de autoritarismo, o testemunho em juízo do policial responsável pela abordagem ainda é aceito praticamente sem reservas pela jurisprudência dos nossos tribunais como prova para condenar acusados de roubo, pequenos furtos, porte ilegal de arma e de drogas. Logo, ficará a gosto do freguês, cabendo a cada juiz individualmente decidir se ele será válido ou não como prova da embriaguez.

Acontece que infunde justificado desconforto no espírito do cidadão saber que a prova da embriaguez poderá ser decidida, em última análise, pelo policial responsável pela abordagem. Esse incômodo pode ter várias causas, como o histórico de arbítrio do poder no Brasil e as deficiências ainda existentes na nossa polícia. Mas pode ser atribuído também a um natural e, arriscamos dizer, universal receio do indivíduo, não importa o continente onde se encontre, de vir a sofrer abusos e arbitrariedades da parte das forças do estado.

Não à toa, toda a razão de ser do Direito se resume a estabelecer limites ao exercício do poder, e talvez não haja situação mais propícia à ocorrência do desmando estatal do que a abordagem policial de rua. Em situações assim, em que o estado detém um poder quase de vida ou morte sobre o indivíduo, a lei deve adotar procedimentos insuspeitos, pelos quais a legalidade da atuação possa ser aferida de forma objetiva, e não por mero ato de fé na palavra do policial.

Não há dúvida que a sociedade brasileira era credora de uma lei capaz de responder adequadamente ao número quase epidêmico de acidentes de trânsito causados pela combinação de álcool e automóvel. Mas é verdade também que toda iniciativa legislativa dessa natureza deve buscar o binômio liberdade-segurança, garantindo de forma equilibrada a prevenção de tragédias, sem ameaçar a segurança jurídica da população que sabe dosar liberdade com responsabilidade e não deve, por conseguinte, ser prejudicada pelos excessos alheios.

Pesa dizer, mas mais uma vez o legislador se deixou embriagar pela comoção provocada por alguns casos pontuais, atuando a reboque dos acontecimentos, aprovando do dia para a noite um texto legal que, sob o pretexto de resolver um relevante drama social, faz reviver velhos anacronismos, resquícios ainda de um estado com forte viés autoritário.

Há um peso e duas medidas na política contra drogas

Causou certa polêmica a decisão do Governo do Estado de São Paulo, anunciada na semana passada, de internar compulsoriamente, mesmo contra sua vontade, os usuários de drogas que perambulam pelas ruas do centro da cidade.

Embora haja alguns consensos aparentes nesta questão, como o de que as pessoas com nível de dependência mais grave, mesmo à sua revelia, não só necessitam como fazem jus a tratamento médico custeado pelo poder público, a preocupação dos céticos parece ser mais com os rumos que uma política como esta pode tomar, do que propriamente com a ideia em si.

Sim, porque quando se fala em drogas e dependência química, logo entram em cena alguns fantasmas, que vão desde a condenação moral e ética, até o medo e seu corolário mais sombrio, o desejo de contenção social do usuário contumaz, como forma de profilaxia penal. E é neste ponto específico da questão que se abre uma fenda enorme por onde penetram políticas que, inevitavelmente, nos remetem a momentos dramáticos da história da humanidade, como a higienização da população e a eliminação social dos “perigosos” ou “indesejáveis”.

De fato, a preocupação não parece desarrazoada, porque, a despeito do discurso oficial invocar sempre o salvamento de vidas, não há como dissociar do plano governamental o interesse na recuperação de uma área bastante degradada da cidade, onde o belo e o horrendo parecem conviver lado a lado.

 

Preocupa sobremaneira, ainda nesta toada, a ideia de convocar uma plêiade de profissionais, advogados, promotores, médicos e juízes, “escolhidos” especificamente para levar a cabo a tal política de internação. Por mais bem intencionados que possam ser esses profissionais, a experiência histórica nos mostra que quando homens da lei e auxiliares da Justiça são escolhidos para fazer funcionar uma política específica de governo, eles correm o risco de se tornarem meros atores de uma “farsa judicial” destinada a legitimar um “escopo maior”, neste caso, a internação a qualquer custo.

Levado ao seu grau máximo, farsas judiciais foram responsáveis no curso da história por legitimar inclusive políticas sanguinárias, a exemplo da convenção jacobina e das “troikas” soviéticas, ambas de triste memória, responsáveis por dar ares de legalidade a políticas de extermínio em massa dos considerados adversários do regime.

Antes, porém, que um exagero comparativo possa comprometer a seriedade da preocupação externada, é bom lembrar que “as tragédias se repetem como farsas”, ou seja, os erros de outrora voltam com novos disfarces e é preciso estar atento para identificá-los e não repeti-los.

E uma boa forma de identificar uma política equivocada é colocá-la dentro de um contexto maior, que no caso da internação compulsória deve ser o próprio sistema de Justiça criminal, em cujo dia-a-dia a questão da dependência química é tratada quase com desdém.

Quem milita na Justiça criminal, sabe que o diagnóstico de dependência química é uma lenda urbana: os médicos raramente diagnosticam a doença, enquanto promotores e juízes raramente contestam o parecer do médico, mantendo, em vez disto, os acusados — muitos deles, aliás, presos por pequenos furtos em locais como a “Cracolândia” — no ambiente deletério da prisão, onde a droga ingressa facilmente, agravando o problema da dependência. A dúvida é se esses baixos índices de dependência correspondem à realidade, ou apenas refletem mais uma situação de descaso com a saúde do preso.

O cenário suscita no mínimo outra indagação. Se o diagnóstico da dependência é tão difícil de se verificar entre os presos, por que seria diferente com os moradores de rua usuários de droga, universo de onde, não raro, muitos detentos são oriundos? Ao fazer este confronto de realidades, a prisional e a de rua, torna-se inevitável perceber que o projeto do governo está fadado ao insucesso, por duas razões. Pois, ou bem os diagnósticos continuarão seguindo a estatística da Justiça criminal, e neste caso a previsão é de que não deverá haver internações em escala suficiente que justifique a adoção da política anunciada, ou bem constataremos algo mais grave, um aumento dos casos de dependência em comparação com os de presos, e aí sim, a confirmação de que o diagnóstico médico judicial não obedece apenas a fatores clínicos, mas também a critérios políticos e de conveniência administrativa. Neste caso, o disfarce histórico começaria a mostrar sua face.

Esta face escura revelaria, colocando em xeque os eufemismos, um objetivo velado de excluir do convívio social número cada vez maior de usuários, seja com a prisão de infratores, quando legalmente autorizada, seja com a internação médica de inocentes, quando a mera detenção é vedada por lei. Passaria a impressão de que o problema só é tratado como de saúde pública, quando o Estado precisa lançar mão do viés médico para restringir a liberdade de alguns indesejáveis, em situações tais que a lei não autorizaria a prisão.

É verdade que ainda é cedo para proferir um veredicto tão definitivo sobre uma política pública que mal começou a ser implementada. Entretanto, alguns sintomas já dão a tônica de uma política ruim, como o fato de nenhuma menção ter sido feita à estranhíssima escassez de diagnósticos da dependência no universo prisional, inclusive entre moradores de rua, estrato social onde, infelizmente, a relação entre droga e delito é quase simbiótica.

Assim, se o governo estiver mesmo disposto e enfrentar o problema da dependência química, e neste caso não pode deixar de lado os dependentes do álcool, provavelmente a droga mais ligada à prática dos crimes violentos, a iniciativa é louvável e bem vinda, mas para não cair na armadilha da hipocrisia, precisa primeiro começar a tratar os doentes que já se encontram sob sua tutela, aos milhares, nos presídios paulistas.

Lei de lavagem de dinheiro está com imagem arranhada

O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Ação Penal 470, examinou com profundidade um dos temas de maior polêmica: a extensão do crime de lavagem de dinheiro. A Lei de Lavagem, que está em vigor no Brasil desde 1998, sofreu alteração no último mês de julho, mas há um princípio sagrado no Direito Penal, o princípio da anterioridade, que proíbe a utilização de lei nova para fatos anteriores a ela. Assim, apesar de a nova lei ter entrado em vigor antes do começo do julgamento, o STF julgou o caso à luz da lei antiga.

Entretanto, a única modificação substancial é que na lei de 1998 só o lucro de pouquíssimos crimes podia configurar lavagem, ao passo que agora não há mais nenhuma distinção quanto a isso, de modo que até o lucro da contravenção penal poderá configurar lavagem. Essa é, aliás, uma das maiores polêmicas surgidas com a nova lei, pois em alguns casos a conduta acessória (a lavagem) é punida com mais rigor do que a principal (no caso da contravenção).

Agora, o que já causava polêmica na lei antiga e não foi solucionado pelo legislador de 2012 é a enorme amplitude e obscuridade do tipo penal: “Ocultar ou dissimular origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Por sinal, lendo-o, tem-se a impressão de que a lei penal vem sendo redigida só para juristas entenderem. Neste caso, ainda pior, porque, ao que tudo indica, nem os juristas parecem entendê-la.

 

Feuerbach, considerado o pai do princípio da legalidade, concebia-o como um instrumento de coação psicológica, e não como ideia – mais aceita hoje – de garantia da liberdade do cidadão. Todavia, ainda que Feuerbach estivesse correto, quem se sentirá coagido psicologicamente por um tipo penal que não pode compreender? Poderão dizer que o STF terá arrumado uma forma de acomodar melhor o entendimento sobre o crime. Então, o que nos protege não é mais a lei, mas a vontade do funcionário público incumbido da função de julgar. E todos nós sabemos que a vontade do julgador pode mudar ao sabor dos ventos.

Só para lembrar, em Cuba é crime “subverter, de qualquer modo, a revolução”. O que é subverter? O que é “de qualquer modo”? O que é a revolução? Tudo isso fica a cargo do intérprete e, então, quem garante a liberdade das pessoas não é mais a lei, mas o agente estatal ocasionalmente investido no cargo.

Veja-se que, com estas críticas, não se está advogando a desnecessidade de uma Lei de Lavagem de Dinheiro. O problema não é tanto se devemos ou não incriminar, mas como incriminar. Porque é no como que costumam ocorrer os abusos do poder punitivo. Tipos penais amplos são próprios de Estados totalitários.

Fenomenologicamente falando, há certo consenso entre estudiosos de que a lavagem de dinheiro é o processo destinado a conferir aparência de licitude a bens ou valores obtidos com a prática de crime. Ora, e por que, então, a lei não diz simplesmente isso, em vez de optar pela indecifrável fórmula “ocultar ou dissimular a origem, localização, disposição…”?

Dirão alguns que essa aparente distorção se deve ao fato de que a lei não pune apenas o fenômeno em si, mas também as várias etapas do processo de lavagem. Desse modo, a ocultação ou dissimulação da origem, propriedade, disposição seriam punidas como etapa do processo de lavagem, já que para converter o dinheiro em ativo lícito o criminoso precisaria primeiro escondê-lo.

Mas como é possível olhar para a ocultação de um bem ou valor e profetizar que aquilo visaria à sua posterior reinserção na economia com aparência de licitude, sendo, portanto, etapa da lavagem? Só mesmo de forma especulativa poderíamos dizê-lo.

Os pontos cegos, contudo, não param por aí. Como separar a natural ocultação do bem obtido com o crime de algo maior, que é a lavagem? Para tal seria necessária, pelo menos, uma ruptura temporal entre o recebimento do valor e uma nova conduta, repleta de novos e próprios significados. Assim, quando o STF condena por lavagem o réu que usou de dissimulação para receber o valor ilícito, inaugura uma nova figura, inédita na doutrina internacional, a da lavagem precoce, praticada antes mesmo de terminado o crime principal.

Seja como for, os verbos ocultar e dissimular dizem muito pouco – ou dizem demais -, até mesmo porque é próprio das atividades econômicas, ilícitas ou não, a extrema discrição nas transações financeiras (fato lembrado por vários ministros do Supremo), assim como os predicativos “origem, localização, movimentação, disposição, propriedade, direitos ou valores” esgotam uma gama tão grande de situações que fica difícil saber não “o que é lavagem”, mas “o que não é lavagem”.

Será que qualquer transação monetária envolvendo dinheiro proveniente de um ilícito configura lavagem? Isso pode, num primeiro momento, parecer justo, porque as pessoas tendem a projetar a hipótese no outro, jamais em si mesmas. Mas quando paramos para pensar que pelo simples fato de alguém prestar um serviço lícito e receber por ele – caso o cliente seja suspeito de enriquecer ilicitamente – poderá ser enquadrado no tipo penal, a situação começa a ficar mais preocupante.

Será, por exemplo, que o dono do restaurante deverá recusar-se a servir refeição ao suspeito de um crime? O hotel deverá recusar a sua hospedagem? A escola deverá expulsar os filhos desse sujeito, para não correr o risco de responder por lavagem de dinheiro? E se o sujeito for inocentado depois? Quem resgatará, ademais, a dignidade das crianças?

Todas essas dúvidas mostram que, no frigir dos ovos, quem sai com a imagem arranhada desse julgamento, além, é claro, dos acusados, é a própria Lei de Lavagem, de tal modo que, muito embora uma nova redação tenha acabado de entrar em vigor, nasce já no momento de se pensar outro diploma para substituí-la.

O direito de defesa agoniza no país, mas não morre

A história da advocacia criminal é a história da perseguição aos advogados e das tentativas de acovardar a profissão. É célebre a frase com que Nicolas Berryer costumava iniciar suas defesas no tribunal do terror revolucionário: “Trago à convenção a verdade e a minha cabeça; poderão dispor da segunda, mas só depois de ouvir a primeira.”

Malfalado, achincalhado e colocado na mesma vala comum de seus clientes, vítima de agressões em razão do mero ofício, o advogado foi dos poucos que, ao longo da História, saíram em defesa dos oprimidos e perseguidos, não importando a classe social a que pertencessem.

Quando a opinião pública se voltou contra os judeus na França, foi um advogado — sem falar em Émile Zola com o J’accuse — que saiu em defesa de Alfred Dreyfus para provar que o borderô usado contra ele era falso. Graças à atuação de advogados, muitas vezes sem ganhar nem um tostão, milhares de presos políticos escaparam das masmorras brasileiras durante a ditadura militar, mesmo correndo o risco de serem confundidos com a militância política de seus clientes.

 

Quando as ideologias tomavam conta do mundo, Rui Barbosa respondeu a uma consulta formulada pelo amigo Evaristo de Moraes. Numa carta intitulada O dever do advogado aconselhou o famoso rábula, seu correligionário, a aceitar a defesa criminal de Mendes Tavares, então antagonista do civilismo liderado por Rui, por considerar que o múnus do advogado criminal está acima das disputas políticas.

Nessa famosa missiva, o mestre Rui Barbosa assim dizia ao amigo Evaristo de Moraes: “Recuar ante a objeção de que o acusado é ‘indigno de defesa’ era o que não poderia fazer o meu douto colega, sem ignorar as leis do seu ofício, ou traí-las. Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas”.

Partidário da mesma opinião, após o levante comunista de 1935, Sobral Pinto, conhecido por suas convicções católicas e anticomunistas, aceitou defender Luiz Carlos Prestes, inimigo número um de Getúlio Vargas.

Bem pagos ou não, os advogados nunca arredaram pé de seu mister de sair na defesa intransigente dos direitos do réu. Basta, porém, a acusação contra determinado réu acender uma pequena fagulha de ódio na opinião pública para que imediatamente os inimigos das liberdades voltem a incendiar a imagem do advogado criminal.

A isso se prestou, na semana passada, Manoel Pestana, procurador da República em Porto Alegre, que, num ato de populismo que lembra o caudilhismo dos pampas, buscou torpedear seus adversários de tribuna, os advogados, e especificamente o advogado de Cachoeira, Márcio Thomaz Bastos, demonstrando todo o rancor e o ressentimento que ainda persiste na alma de alguns figadais inimigos do Estado Democrático de Direito. A proposta concreta do procurador Pestana é a seguinte: quando o advogado cobra honorários de alguém acusado de enriquecer ilicitamente, os valores recebidos são ilícitos e, portanto, configuram receptação culposa. Receptação culposa é a conduta, prevista no artigo 180 do Código Penal, de “adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso”.

Equiparar os honorários do advogado ao crime de receptação culposa é o mesmo que igualar espelho de tomada de luz a focinho de porco. Somente a olhos tacanhos, míopes e estrábicos, ambos poderão ser colocados na mesma vala. Como técnico do Direito, Pestana sabe ou deveria saber disso; mas como instrumento de sedição, a estratégia funciona bem.

A proposta é tão demagógica e sediciosa que, se o procurador quisesse mesmo levá-la a ferro e fogo, deveria mandar incinerar todo o dinheiro que o grupo de Cachoeira transferiu para os cofres públicos nos últimos anos, por meio do pagamento de taxas, impostos, etc., valores usados para pagar quiçá o próprio salário do procurador ou de seus colegas de Ministério Público.

Bazófia! A proposta esconde objetivo claro: acovardar e desmoralizar a advocacia e fulminar, assim, o sacrossanto direito de defesa dos acusados! Se Cachoeira, pivô do motim que o procurador insufla contra os advogados, de fato cometeu os crimes pelos quais responde na Justiça, uma coisa é certa: a culpa disso não é do advogado dele! Por trás da panfletária ode à criminalização da advocacia escondem-se o vetusto desrespeito à ordem jurídica estabelecida, a antipatia pelo direito de defesa, o espírito punitivista totalitário e avesso aos direitos e garantias individuais do homem.

Se quisermos falar de honorários, teremos de voltar nossos olhos para outras mazelas da Justiça, como as condições degradantes da esmagadora maioria dos advogados humildes deste país, que se acotovelam nas apinhadas salas da OAB instaladas nos próprios Fóruns, causídicos que recebem salários de fome para defender seus clientes. Pior que isso, por uma razão que até hoje ninguém explica, os salários pagos a acusadores públicos são substancialmente maiores do que os pagos aos defensores públicos, um sintoma bastante evidente do desprezo pelo direito de defesa neste país.

Advogados e membros do Ministério Público não são inimigos, são apenas adversários processuais num caso concreto. Irmanam-se, no entanto, num mister mais nobre: o engrandecimento da Justiça. Ainda mais por esse motivo, a iniciativa de um procurador da República de atacar o advogado em razão apenas da causa que ele defende cria antagonismos indesejáveis entre as duas carreiras — a advocacia e o Ministério Público —, além de não servir a nenhum propósito útil de aperfeiçoamento das instituições democráticas.