Sementinhas de um mundo novo

O interrogatório é uma oportunidade para o réu se defender das suspeitas ou acusações que recebe. Diante das perguntas formuladas pelo Ministério Público que o denunciou, por exemplo, pode se calar, sem que isso seja usado contra ele. É o chamado direito ao silêncio, uma garantia constitucional contra a autoincriminação. O réu deseja confessar um crime ou dar explicações que esclareçam sua inocência? Direito dele de falar. Sente-se injustiçado num processo e compreende que suas palavras não irão ajudar? Direito dele de ficar quieto.

E é assim que as coisas devem ocorrer no curso de um interrogatório. As partes perguntam o que entendem apropriado, o juiz intervém quando identifica indução, irrelevância ou repetição e o réu decide o que vai falar ou se vai falar.

Pois bem, deu aqui no Migalhas que, revoltado num interrogatório com o fato de o réu se recusar a responder às suas perguntas, um procurador da República classificou seu silêncio, em alto e bom som, como “atitude covarde da defesa”. Repetindo, mas de outra forma, para ficar bem claro: um integrante do Ministério Público Federal, cuja missão é “promover a realização da Justiça, a bem da sociedade e em defesa do estado democrático de direito” (trecho extraído do site oficial do MPF) se sentiu à vontade para se insurgir contra a decisão de um cidadão de exercer uma prerrogativa constitucional.

Já houve, anos atrás, quem sustentasse em letra escrita para quem quisesse ler (veja neste sentido pareceres subscritos pelo Procurador da República Manoel Pastana em inúmeros habeas corpus impetrados pelas defesas de réus na fase Juízo Final da Operação Lava Jato), que a prisão preventiva era necessária para acelerar acordos de delação. Pegou tão mal que o procurador nunca mais emitiu um “a” sobre o assunto, e o discurso passou a ser o de negar a relação entre uma coisa e outra. Isto foi quando a Força Tarefa de Curitiba estava em campanha aberta, com site e tudo, construindo cuidadosamente o discurso com qual granjearia seus milhares de fãs Brasil afora.

Agora, numa fase mais avançada, com a marca mais consolidada, alguns procuradores decidiram pisar de vez no acelerador, beirando o sincericídio, chegando ao cúmulo até de protagonizar cenas inimagináveis, algumas com powerpoint, outras sem, como neste caso. Se é grave que tenha ocorrido, mais grave ainda é imaginar que abusos como esse se repetem aos montes pelo país. Às vezes nas redes sociais, com opiniões sobre qualquer coisa que lhes desagrade, às vezes em plena audiência, desabafando contra o que provavelmente considera um penduricalho constitucional, algo que em sua visão de mundo serve apenas para atravancar e atrasar o encarceramento. Ué, cometeu o crime, tem que ir para cadeia. Para quê, defesa? Como assim um réu que não fala? Veio fazer o quê aqui? Impedir o andamento da justiça?

Pode parecer que não, mas o direito ao silêncio não é invenção dos poderosos, dos corruptos ou dos políticos, pelo contrário, foi concebido como arma do cidadão comum contra o abuso dos agentes do Estado, o que, aí sim, ajuda a explicar a revolta do Procurador. Trata-se de um princípio que está na Constituição americana, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, na Convenção Americana de Direitos Humanos, na Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis e Degradantes, da ONU, e na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, da OEA. Ah, algo menos importante em tempos de Lava Jato, mas está também na Constituição Federal Brasileira de 1988.

O procurador resolveu desabafar, chamando de covarde a defesa que orienta o réu a ficar em silêncio nas perguntas do acusador, covarde o réu que só responde às indagações do juízo e dos advogados. Covarde. Exato. Foi este o termo exato que sua excelência usou. Covarde.

Felizmente (esperando que não só desta vez), a revolta do procurador não passou de esbravejo. No final, o procurador até que se mostrou um sujeito razoável, não usou de violência, não bateu na mesa, não ameaçou prender o réu, nem seus filhos ou familiares, tampouco lhe ocorreu mandar levar preso o advogado por obstrução de justiça. Manifestou apenas o sonho de um mundo melhor e mais justo, afinal a liberdade de manifestação é um princípio constitucional, e ninguém é proibido de sonhar.

Atitudes como a do procurador precisam ser apontadas e discutidas à exaustão, porque pode não ter tido efeito prático naquele caso, até porque o advogado que patrocinava a causa, o renomado e prestigiado Alberto Zacharias Toron não deixou por menos, reagiu à altura com argumentação afiada e substanciosa. Mas a sementinha foi plantada. A sementinha dos fins justificando os meios, agora na versão Ministério Público. Neste Brasil, que ainda é alvo de várias denúncias internacionais por tortura, certamente não faltarão agentes públicos dispostos a levar adiante este projeto de futuro sonhado pelo procurador.

O que preocupa é como seria a versão armada desta cena. E se o guarda da esquina, sim, o guarda que usa arma de fogo, começa a aplicar este ideal de justiça por aí? Sim, aquele guarda da esquina que já era motivo de preocupação de Pedro Aleixo, a ensejo da edição do AI5, quando tornou célebre a frase: “Presidente, o problema não é o senhor e nem os que com o senhor governam, o problema é o guarda da esquina”.

O representante do MP pode não ter percebido, ou se percebeu não teve a coragem ou a vontade necessária naquele momento, mas profetizou as bases de um mundo novo, diferente, menos formalista, quem sabe sem advogados, recursos e defesas, sem lei também, algo mais efetivo e moderno, algo mais adequado aos novos tempos. Se o sonho vingar, terá saído da audiência para entrar na história, com um tiro bem no peito da Constituição e do nosso combalido Estado de Direito.

Como o réu é culpado, não é preciso provar a culpa

Fui convidado no ano passado a integrar respeitado grupo de juristas e advogados que escreveria sobre a condenação do ex-Presidente Lula no caso conhecido como triplex. Li e analisei detidamente a sentença, mas na época acabei recusando o honroso convite, por falta de tempo para me dedicar ao projeto com o esmero que a missão exigia.

Agora, já com mais calma, e aproveitando o ritmo mais lento que esta época do ano nos proporciona, procuro, nestas rápidas linhas, compartilhar as conclusões que, penso eu, interessam – ou deveriam interessar – a qualquer estudioso ou curioso do direito penal. A intenção deste artigo não é fazer uma defesa incondicional, muito menos política do ex-Presidente, mas uma análise técnica da sentença. Tanto é assim que os fatos que serão levados em consideração são aqueles que a própria sentença adota como verdadeiros, e não aqueles que constam na versão de interrogatório do ex-Presidente. Não estudei os autos, tão somente a sentença.

De acordo com a análise aqui feita, importa menos se o tríplex pertence ou não ao ex-Presidente, e mais a relação do imóvel com algum ato de corrupção.

O ex-Presidente Lula foi acusado de corrupção porque, nas palavras da sentença, a empresa OAS lhe teria pago propina em virtude de contratos ilícitos com a Petrobras. Afirma a sentença que “os valores teriam sido corporificados com a DISPONIBILIZAÇÃO ao ex-Presidente do apartamento 164-A, triplex, do Condomínio Solaris (…) sem que fosse cobrada a diferença de preço (…)”. O imóvel ainda “… teria sofrido reformas e benfeitorias a cargo do Grupo OAS para atender ao ex-Presidente”.

Tomando emprestado feliz expressão de HASSEMER, o jurista olha o fato criminoso pelas lentes do tipo penal. Logo, nenhuma outra análise interessa a este caso que não seja pelo prisma do artigo 317 do Código Penal Brasileiro.

O tipo penal do artigo 317 comina pena de 2 a 12 anos àquele que “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.

O crime de corrupção passiva contém duas elementares principais, a vantagem indevida, e uso da função pública, o que alguns chamam de ato de ofício. Ato de ofício é o ato próprio da função pública que, por vantagem econômica indevida, o agente aceita praticar. Alguns julgados, no entanto, têm diminuído a importância desta circunstância na hora de condenar, contentando-se com o fato de a vantagem ter sido obtida em razão da função pública, algo bem mais genérico.
Independentemente do entendimento que se tenha, numa coisa a jurisprudência é unânime: se a corrupção precisa estar relacionada com a função pública, por uma questão lógica, só é crime se o agente aceita promessa de vantagem antes ou enquanto ocupa a função, jamais depois.

A questão crucial do processo, portanto, era saber, primeiro, se o Presidente solicitou, aceitou ou recebeu promessa de vantagem de qualquer natureza da empresa OAS no período em que era Presidente; segundo, se o fato estaria relacionado ao exercício da função pública; terceiro, se o Presidente teria ofertado em contrapartida vantagem a algum agente privado (o chamado ato de ofício), e quarto, se há prova de que sabia dos ilícitos na Petrobras ou dos acertos de contas de Leo Pinheiro e Vaccari.

Ocorre que se extrai da própria sentença duas premissas que infirmam a possibilidade de crime. Primeiro é no trecho do depoimento de LEO PINHEIRO onde afirma que quando adquiriu a BANCOOP, lhe foi dito que o tríplex era de Lula. Ora, se isto for verdade, como a sentença adota que é, então não foi a OAS que lhe deu o imóvel de presente, fazendo assim ruir uma das premissas da acusação.

Restaria então questionar as reformas feitas no imóvel em 2014. Bom, em 2014, Lula já não era mais presidente fazia alguns anos. O que não impede, é forçoso reconhecer, que durante o exercício da função pública alguém pudesse lhe ter feito uma promessa de vantagem que só seria cumprida anos depois. Havendo prova disto, responde o agente público por corrupção.

Sucede que a sentença não aponta prova nesta direção. Muito pelo contrário, de acordo com a sentença, a decisão de dar a reforma de presente ao ex-Presidente foi tomada apenas em 2014. Em conversa entre LEO PIHEIRO e VACCARI em 2014, citada na sentença, aquele lhe indaga quem afinal iria arcar com as despesas da reforma.

Ora, se a reforma, ou o valor correspondente a ela fizesse parte de algum acerto de propina da época em que Lula era Presidente, esta pergunta seria totalmente despropositada.
Mais emblemática ainda é a resposta que, segundo LEO PINHEIRO, VACCARI teria lhe dado na ocasião.

“… eu levei para o Vaccari e isso fez parte de um encontro de contas com ele, o Vaccari me disse naquela ocasião que, como se tratava de despesas de compromissos pessoais, ele iria consultar o presidente, voltou para mim e disse ‘Tudo ok, você pode fazer o encontro de contas’, então não tem dúvida se ele sabia ou não, claro que sabia” (fls. 128).

O relato de LEO PINHEIRO mostra que seu acerto original com VACCARI não envolvia custeio de despesas pessoais de Lula, e que o ajuste final sobre bancar as benfeitorias no tríplex ocorreu apenas em 2014, e não na época em que ocupava função pública. Revela, ademais, que o acerto foi feito entre LEO PINHEIRO e VACCARI, não com o ex-Presidente. Premissas que extraio, repito, da própria sentença.

Mesmo tomando como verdadeiro o depoimento de LEO PINHEIRO, quando reporta a ocorrência do citado diálogo com VACCARI, não há prova alguma – não pelo menos apontada na sentença – de que VACCARI tenha de fato tratado do assunto com o ex-Presidente. Isto sem dizer que LEO PINHEIRO prestou depoimento na qualidade de réu, não como testemunha, logo, sem compromisso de dizer a verdade.

Seja como for, nada na sentença demonstra que Lula tivesse aceito promessa de coisa alguma antes de 2014. Não estamos dizendo que não aceitou, apenas que a sentença não o demonstra, o que em um julgamento penal é exigência indeclinável.

Questionável, reprovável, condenável moralmente um ex-Presidente aceitar de presente um mimo de uma empreiteira? Se for verdade, nos parece censurável. Mas não crime, não pelo menos de acordo com a lei brasileira.

Não se conhece, porém, na história da jurisprudência brasileira um único caso em que o agente público é condenado por aceitar pequenos favores anos depois de deixar a função pública.
O método interpretativo da sentença não é baseado em prova, o que fica claro quando diz no item 850 que como o ex-Presidente não forneceu nenhuma explicação hábil para a reforma, então se conclui que é propina, revelando que, no frigir dos ovos, opera com presunções que, de mais a mais, acabam por gerar uma das mais odiosas arbitrariedades que um julgamento penal pode cometer, a inversão do ônus da prova, relegando à defesa o papel de provar a inocência, e retirando da acusação o ônus de provar a culpa.

De mais a mais, a indagação do porquê alguém faria esta cortesia ao ex-Presidente em 2014 não parece enfrentar obstáculos sérios para achar uma resposta. Ora, parece óbvio que agradar um dos homens mais poderosos e influentes do país, ainda que não ocupasse função pública, não era algo que se devesse negligenciar de acordo com a mentalidade vigente no setor na época em que ocorreram os fatos.

Por outro lado, o único ato próprio da função que a sentença atribui ao Presidente é um ato lícito, ter dado a palavra final na nomeação de diretores para a Petrobras. Ainda assim, para condená-lo por corrupção a sentença não poderia se desincumbir do dever de mostrar que, ao nomear este ou aquele diretor, Lula já arquitetava usá-los para favorecer as empresas, cobrando-lhes propina, como contrapartida.

Para superar este obstáculo argumentativo, a sentença recorre a um método retórico que pode passar despercebido a um leitor desatento, mas não resiste a uma análise mais acurada. Hipóteses ainda sujeitas a comprovação foram tratadas na sentença como verdades absolutas, como se já tivessem passado pelo escrutínio da prova.

Este método foi usado em dois momentos decisivos da sentença. O primeiro foi no item 857, onde afirma que, “como foi provado o crime de corrupção”, é irrelevante discutir se Lula “tinha ou não conhecimento do papel específico dos Diretores da Petrobrás na arrecadação de propinas”. A sentença, primeiro, parte da premissa de que o réu cometeu o crime de corrupção para depois concluir que, portanto, sabia dos ilícitos. A equação está claramente invertida. Com este estratagema a sentença se desincumbiu, como que em um passe de mágica, de demonstrar o dolo.

É como se o juiz dissesse “como o réu é culpado, não é necessário provar a culpa”. O mesmo método se repetiu no item 890, quando a sentença volta a usar o mesmo sofisma, afirmando que “tendo sido beneficiado materialmente de parte de propina decorrentes de acerto de corrupção em contratos com a Petrobras (…) não tem como negar conhecimento do esquema criminoso”.

Não existe crime de corrupção, a menos que o agente tenha atuado com dolo (consciência e vontade).

Logo, a sentença jamais poderia ter afirmado que “pelo fato de ter sido beneficiado não tem como negar que sabia”, porque está dizendo que o elemento subjetivo do tipo se presume, não precisa ser provado. É como se dissesse que alguém pode ser responsabilizado criminalmente mesmo sem culpa.

Semelhante forma de proceder não guarda paralelo nem mesmo com outros julgamentos realizados em Curitiba. A Lava Jato se tornou conhecida por inovar no exame da culpabilidade, aumentando a hipótese de incidência do chamado dolo eventual, até por buscar introduzir no Brasil conceitos estrangeiros como o da cegueira deliberada, mas é inédito inclusive na Operação Lava Jato uma sentença que simplesmente se desobriga de provar o dolo (conhecimento e vontade).

Em suma pela atenta leitura da sentença, se extraem algumas conclusões. Nenhuma prova é citada no sentido de que Lula tenha aceito promessa de vantagem enquanto era Presidente da República. E ato ilegal algum lhe é atribuído, a não ser ato de nomear diretores para a Petrobras sem demonstração de conhecimento ou ciência dos mal feitos praticados por eles, e muito menos de algum ato, gesto ou conduta praticado pelo ex-Presidente no sentido de favorecer ilegalmente alguma empresa.

Eis, pois, nossa pequena contribuição para este debate em torno deste caso específico (nenhuma análise fizemos de outros casos envolvendo o ex-Presidente), um caso circundado por paixões de lado a lado. Como dissemos no início, a preocupação aqui foi menos entender o fato histórico, fugindo inclusive da controvérsia colocada na mídia, focada em discutir se o tríplex é ou não é do Lula, e muito mais analisar os fundamentos jurídicos usados na sentença para condenar, único interesse que, a juristas e advogados, o caso deve ou deveria suscitar.

Não custa lembrar que o julgamento penal exige provas e exige certeza, ou algo próximo disto. A dúvida gerada pela falta de provas permite no máximo um julgamento moral, e o julgamento moral não cabe entre as paredes apertadas do tribunal; pertence às ruas, à política, enfim, às urnas.

Um grande desafio colocado sobre os ombros dos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª região, juízes experientes, técnicos e cultos, a quem desejo sorte e altivez de espírito para enfrentarem com destemor a horda das ruas.

Política de encarceramento precisa ser revista com urgência

Urge rever a política de encarceramento. Prendemos muito e prendemos mal. A política criminal é como a economia, nem sempre o que agrada aos ouvidos do cidadão é melhor para o País. É uma ciência contraintuitiva. Estamos colhendo os danos da política demagógica, populista e irresponsável plantada durante décadas, focada apenas em prender, prender e prender.

O Brasil investiga pouco e prende muito. Prende por delitos pequenos, como furto, tráficos menores, receptação e roubo (o mais grave da categoria, porque praticado sempre com violência ou grave ameaça). Precisamos urgentemente rever a política de encarceramento.

Dados recentes do Ministério da Justiça mostram que a população carcerária cresceu assustadores 575% nos últimos 26 anos. Rios de dinheiro foram gastos nas últimas décadas na construção de presídios e nem por isso a criminalidade diminuiu. Ao contrário, a própria prisão virou o incremento maior da criminalidade organizada, a mais perigosa, como mostram os últimos acontecimentos.

A mudança no sistema prisional passa necessariamente pela transformação de uma cultura que propaga ser a prisão a única resposta admissível ao crime. O sinônimo de punição é encarceramento. Ao contrário, o equivalente à impunidade é a ausência do cárcere. O dever estatal e o querer social são os de punir, e não de evitar o crime. Punir prendendo. Até nas hipóteses em que a liberdade do acusado não apresenta riscos, sua prisão provisória é exigida por uma sociedade que se tornou ávida por castigo e vingança.

O querer punitivo da sociedade é capitaneado por parte de uma imprensa que não se limita a informar, mas acusa. Não admite defesa, condena. Não deseja processo, quer punição.

O paradoxo pouco percebido é que os esforços governamentais, que se cingem à construção de mais presídios, são direcionados para finalidades contrárias aos objetivos legais do sistema: não diminuem, mas aumentam a criminalidade.

O artigo 1.º da Lei de Execuções Penais afirma ser escopo do sistema proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado. Com facilidade se observa uma absoluta dissonância entre a lei e a realidade.

A ação governamental no setor penitenciário limita-se à construção de presídios. Não são criados subsistemas que possibilitem transformar a prisão em instrumento de readaptação do preso, restando ao sistema a missão de guardar, e mal, os que são trancafiados.

O Estado prende e não evita que a prisão exerça avassaladora influência sobre o indivíduo, aumentando extraordinariamente sua carga criminógena. Note-se, em abono, que o retorno ao cárcere atinge em torno de 70% da população carcerária.

O Brasil ostenta hoje o patamar de quarta maior população carcerária do mundo, atrás de EUA, China e Rússia. Mas entre eles é o campeão de prisões de acusados sem condenação. Nesse critério só perde para Peru, Marrocos, Paquistão, Índia e Filipinas. Na questão de superlotação, somos também um dos vencedores: temos metade das vagas para atender o número de presos.

A taxa do crescimento da população prisional é estarrecedora, como consequência da taxa de aprisionamento, que é a segunda maior do mundo, só perdendo para a Indonésia. Repita-se: não obstante tal fato, a criminalidade cresceu, como reflexo de uma política que só investiu em presídios, e não em formas inteligentes de reprimir o crime. Prendemos muito e prendemos mal.

Muitas dessas prisões são ilegais, mas há grande demora de parte da Justiça para revogá-las, quando e se isso vier a ocorrer. Ademais, como mostrou uma pesquisa da FGV, centenas de presos acabam cumprindo grande parte da pena em regime ilegal porque não conseguem a tempo corrigir nos tribunais de Brasília o erro cometido nas Cortes estaduais, que ainda relutam em incorporar a jurisprudência dos tribunais superiores.

Só que, em vez de facilitar o acesso dos presos aos tribunais superiores, o STF fez o inverso. Decidiu que, mesmo antes de uma condenação ser revista em Brasília, o réu já pode começar a cumprir a pena. Tudo indica que mais prisões ilegais serão efetivadas.

Medida que está ajudando a reduzir um pouco o ingresso de presos no sistema é a tão festejada audiência de custódia. A apresentação do preso a um juiz nas primeiras horas do flagrante é uma antiga exigência internacional, que o Brasil relutava em cumprir. Resultado do esforço pessoal do então presidente do CNJ, Ricardo Lewandowski, a audiência de custódia virou realidade em todos os Estados da Federação. Prevista no Pacto de São José da Costa Rica (artigo 7.º, 5), a audiência de custódia sofreu todo tipo de ataque, principalmente de setores da magistratura e do Ministério Público, instituições que deveriam zelar em primeiro plano pelos direitos e garantias individuais.

A apresentação do preso em juízo logo após a detenção é medida fundamental não apenas para coibir a tortura e os maus-tratos, mas também para funcionar como um filtro de racionalidade na porta de entrada do combalido sistema penitenciário. Fosse o Brasil um país dado ao cumprimento dos preceitos constitucionais e dos acordos internacionais que subscreve, vigoraria a liberdade como regra, como corolário do princípio da presunção de inocência.

Retirar da prisão quem lá não deveria estar significa reduzir a reincidência e evitar que as facções criminosas tenham mão de obra farta, ao ocuparem a lacuna deixada pelo Estado. Reduzir a mentalidade da prisão provisória significa punir melhor quem merece ser punido e evitar sofrimento para quem jamais deveria ter experimentado o cárcere.

Propiciar o mínimo de dignidade a uma população que carece e sempre careceu dos direitos sociais mais básicos, com o aproveitamento do cárcere para tentar supri-los, é dever impostergável da sociedade e do Estado. Se não assumirem consciente e permanentemente esse objetivo, só nos restará aguardar a próxima tragédia.

Política Nacional de Participação Social representa o dinamismo da sociedade

Segue provocando enorme polêmica o decreto 8.243, editado pela presidente Dilma, criando o “Sistema Nacional de Participação Social”. Podemos nos perguntar os motivos para medida deste jaez a poucos meses da eleição, ou até se a iniciativa estaria revestida de caráter autoritário. Antes disto, no entanto, é preciso debater a própria natureza da questão, afinal seria legítimo criar instâncias de diálogos dentro do governo, ampliando a participação da sociedade no executivo?

A sociedade técnico-industrial dos tempos contemporâneos, sociedade de massas, extremamente complexa social e tecnologicamente, tornou anacrônico o modelo de Estado fundado no liberalismo típico do século XIX, fundado no contrato social individualista, e com separação rígida entre Estado e sociedade. Esta transformação vem colocando desafios dramáticos a juristas e políticos, empenhados em manter a estabilidade institucional do Estado Democrático de Direito, sem refrear, no entanto, os elementos dinâmicos deste novo corpo social.

O entrechoque de interesses conflitantes destituiu o Estado da capacidade de atender, de forma satisfatória, as demandas de uma sociedade cada vez mais pluralista, e por esta razão, permeada de contradições e paradoxos inexpugnáveis.

O velho antagonismo de classe da década de 1930 cedeu lugar aos movimentos de defesa do meio ambiente, dos gays, da reforma prisional, do consumidor, dos aposentados, dos trabalhadores, os sindicatos, movimento das mulheres, empresários, cientistas, jornalistas, cada qual soerguendo sua bandeira de reivindicações e ideologias.

É inegável o déficit de representatividade que acompanha esta rápida transformação da sociedade e a enorme dificuldade de manter o Estado contemporâneo conectado a esta pluralidade de demandas sociais.

É verdade que alguns parlamentares são eleitos com plataformas razoavelmente bem definidas, mas são casos raros, o número de demandas e de movimentos ainda é infinitamente maior que o de tendências efetivamente representadas no legislativo, isto porque não é toda causa ou movimento que consegue se alavancar politicamente. Resultado: sobra uma gama enorme de movimentos sem representação política, e abundam políticas públicas com alto índice de reprovação da sociedade.

Assim, o papel do Estado hoje também deve ser o de mediador destes choques de interesses às vezes antagônicos. Mais do que isso. Ao adotar políticas públicas, o governo democrático não pode ignorar os impactos sociais delas resultantes, os quais dificilmente estão ao alcance do mandatário do poder.

Em outras palavras, quer nos parecer que, dada a incapacidade de onisciência dos governantes, e em razão da gama enorme de problemas a resolver, os votos da maioria dos eleitores já não bastam para garantir a legitimidade de toda e qualquer ação comandada pelo poder executivo; é necessário algo mais, é imprescindível também o respaldo social – técnico ou não – de quem convive com o problema, conhece suas sutilezas e armadilhas, sabe identificar causas e endereçar as melhores soluções, e isto só se consegue com a abertura dos poros do Estado, deixando entrar o oxigênio trazido pelo dinamismo da sociedade em movimento.

A crítica que se poderia fazer a esta forma de condução das políticas públicas seria quanto a delegar tão relevantes papéis a pessoas ou grupos escolhidos sem qualquer critério democrático de eleição, substituindo-se os personagens constitucionalmente incumbidos de representar o corpo social numa democracia.

Nada disto, contudo, permite concordar com a tese de que a participação de movimentos sociais na gestão do Estado ofende a democracia e a Constituição.

É verdade que Estados totalitários como a União Soviética e sua cópia tupiniquim, o Estado Novo de Vargas, criaram, através do poder central, plataformas de articulação, que permitiam a participação pelega da sociedade no governo, como forma de manter principalmente os sindicatos, no caso brasileiro, sob o jugo do ditador. No entanto, é preciso lembrar que lá não havia parlamento, e nem eleições, de modo que esta participação direta era a forma alternativa que os regimes encontravam de conferir alguma legitimidade ao governo.

Veja, não é porque o ditador invoca a bíblia, que nós seremos contra deus. Afinal, o Executivo não precisa deste ou de qualquer outro artifício para tomar a decisão que quiser, sobretudo em questões de sua competência que independem de promulgação de lei, ou melhor, de concordância do legislativo. Quanto às políticas públicas que dependem de alteração legislativa, o executivo tampouco precisaria de consulta prévia a movimentos sociais para encaminhar ao Congresso o projeto de lei que bem entendesse.

Aliás, num presidencialismo de coalisão como o nosso, dificilmente o executivo deixa de angariar apoio quando quer aprovar um projeto de lei importante para o governo. Não é criando instâncias de diálogos dentro do próprio governo que irá conseguir maior chance de aprovação.

Forçoso reconhecer também que o que o decreto ganha em legitimidade perde em agilidade, e neste ponto peca o decreto, porque subordina, quase como uma camisa de força, as decisões do executivo ao aval da sociedade civil.

Seja como for, é preciso abandonar o preconceito que existe em torno da expressão “movimentos sociais”, ainda hoje vistos como grupelhos subversivos, preocupados em impor a desordem e incitar a revolução. Os movimentos sociais são hoje dos mais variados matizes e, se escolhidos de forma isenta e imparcial, poderão contribuir muito para o progresso civilizatório do país.

Empresa não deve ser responsabilizada por crimes individuais

Qualquer empresário atento às mudanças legislativas convive atualmente com dois fantasmas a rondarem a vida da empresa. Um é a nova lei de lavagem de dinheiro (Lei 12.683/12), o outro a Lei Anticorrupção, entrada em vigor mais recentemente (Lei 12.846/13).

A lavagem se esconde amiúde em operações cotidianas aparentemente lícitas, de modo que detectar sua desfaçatez é tarefa complexa para o funcionário subalterno normalmente defrontado com este tipo de situação. Aliada aos rigores da nova lei de lavagem, esta dificuldade tem levado empresas a criarem regras internas, certas de evitarem, assim, o risco de cumplicidade de seus funcionários.

Ainda persiste, no entanto, a dúvida. Afinal, é justo condenar o empresário, ou um funcionário da empresa, não por ter desejado e premeditado o crime, mas apenas porque não foi capaz de impedi-lo, como é o caso da incriminação por lavagem no ambiente empresarial?

Existe um dispositivo no Código Penal, o artigo 13, que trata da questão, equiparando o autor do crime àquele que, embora tivesse o dever legal de evitar o resultado, assim não o procede. É a responsabilização por omissão. Este dispositivo torna possível acusar por homicídio a mãe que deixa o filho morrer de inanição, ou o médico que deixa morrer o doente sem prestar socorro.

Dá para imaginar, entretanto, a perplexidade do empresário que se depara com uma lei que, apesar de acenar com sanções pesadas, não aponta caminhos claros de como evitar a prática da lavagem de dinheiro. Sim, porque em situações normais da vida, as chamadas posições de garante ou de responsável legal decorrem de regras claras. A mãe não precisa conhecer a lei para saber que deve alimentar o filho, assim como o “salva vidas” não precisa saber direito penal para incumbir-se do dever de auxiliar o afogado.

Mas uma empresa obrigada por lei a evitar que seus serviços sejam usados para camuflar dinheiro sujo encontra grandes dificuldades de natureza operacional para cumprir com esta obrigação, afinal o empresário briga contra si mesmo quando precisa ir atrás do lucro, sua atividade fim, e ao mesmo tempo ser polícia do seu cliente, o que, além de não ser sua vocação, implica necessariamente perder negócios.

Somado a isto ainda há o fato de que, na área penal, onde ao Estado é dado o poder de aplicar as penas mais graves, inclusive de natureza corporal, como a prisão, as condutas proibidas precisam estar muito bem definidas, e a razão para isto está na comprovação histórica de que quanto mais imprecisa é a lei, maior a margem de arbitrariedade do Estado.

Como é possível, porém, responsabilizar, criminalmente, alguém por não fazer alguma coisa que a lei obriga se, primeiro, este alguém não está precisamente identificado na lei, e, segundo, se o comportamento exigido dele não decorre de uma regra definida de forma estrita no ordenamento, mas de programas de governança, ou “compliance”, que, cada qual a seu modo, deverá estabelecer na sua empresa, com grande dose de fé em que tais programas um dia sejam aprovados pelas autoridades competentes. Uma loteria, ou quem sabe mais uma roleta, pois enorme o risco de apostar no que acha correto e, no entanto, acabar perdendo tudo.

Por falar em perder tudo, este é o risco real de quem estiver incurso na nova Lei Anticorrupção. Adotando lógica até mais perversa, embora não haja sanção de natureza criminal, a nova lei prevê penalidades severas para a empresa que não evitar a prática de corrupção no âmbito de suas atividades, podendo até ser extinta, dependendo do caso, com prejuízo para muita gente inocente, conspurcando, é forçoso lembrar, a garantia constitucional de que nenhuma pena passará da pessoa do condenado.

O que o legislador claramente visou com a promulgação desta nova lei não foi punir o empresário que individualmente pratica a corrupção, mas sim penalizar a empresa como um todo, caso o funcionário, não importa o escalão, seja descoberto corrompendo um agente público.

Eis aí o grande erro do legislador. Se a empresa tem dificuldades para ser a polícia de seus clientes, tal como o Estado a quer no combate à lavagem, pior ainda a tarefa de xerife de seus funcionários. A responsabilidade pelo cometimento de um crime deve ser sempre individual, e cabe ao Estado investigar o fato para poder punir os responsáveis, até o mais alto escalão, se necessário, inclusive com medidas de afastamento dos culpados da direção da empresa e mesmo com sanções à própria empresa, dependendo de como o ato de corrupção estiver atrelado à sua forma de condução dos negócios.

O que o Estado não pode é abreviar esta missão investigativa, mediante a responsabilização de todo um regimento por mero decreto, sem critério algum, apenas porque a empresa não foi capaz de estabelecer programas de prevenção das práticas ilícitas. Ora, as pessoas mal conseguem prevenir acidentes, o que dirá crimes intencionais de terceiros, como a corrupção.

O legislador finge ignorar, ademais, que o grande vilão da corrupção não está dentro da empresa, mas no agente estatal que muitas vezes cria dificuldade para vender facilidade, ou o que é mais comum, vai direto para o achaque puro e despudorado. Mas deste velho personagem da história nacional a nova lei não cuidou.

Leis como estas, com indisfarçável viés totalitário, além de criarem um forte clima de desconfiança dentro das empresas, permitem uma alta dose de subjetivismo e arbítrio do agente estatal incumbido de aplicá-las, prova maior da incompreensão do legislador sobre o mal que se propôs a debelar. Dominasse o tema, saberia que o arbítrio estatal é, na verdade, um dos grandes responsáveis pela corrupção que assola o país.

Departamentos especializados perpetuam irregularidades

Um dos traços mais marcantes do anacronismo da nossa Justiça penal é a existência de “departamentos especializados”, como prevê agora a Lei Complementar 1.208/2013, aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado, com juízes excepcionalmente designados pela cúpula do Tribunal de Justiça de São Paulo, em vez de concursados para o cargo.

Por meio do texto aprovado pelos parlamentares paulistas, a Assembleia entrega ao presidente do tribunal e seu órgão especial um Departamento Estadual de Execuções Criminais e outro de Inquéritos Policiais, este último responsável, entre outras coisas, por examinar a legalidade das prisões em flagrante. Estes departamentos serão divididos em dez unidades por todo o estado, com a organização que bem entender lhe dar o órgão especial do tribunal de Justiça, que passa a ser investido do poder inclusive de designar juízes ao seu talante, além dos quase 600 cargos de auxiliares da Justiça que ficam desde já criados por disposição expressa da própria lei.

A entrada em vigor da citada lei representa um enorme atentado à tripartição dos poderes, pois a organização judiciária do Estado compete ao Legislativo, competência esta exclusiva e indelegável, por força de vários dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo e da Constituição Federal.

Mais do que isto, representa também uma grave violação das garantias do juiz natural, e dos princípios da inamovibilidade e independência judicial, criando juízes de exceção, que poderão ser postos e removidos dos cargos ao bel prazer do tribunal, além de implicar um tremendo retrocesso na política de direitos humanos, vez que distancia o juiz do sistema carcerário, aprofundando suas já conhecidas mazelas.

Em nota pública, várias entidades ligadas ao sistema de Justiça penal apontaram ainda outros inconvenientes, como o fato de que a lei obrigará outras carreiras, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, a se reorganizarem para estarem presentes nos locais onde os novos juízes passarão a atuar.

Ignorando, no entanto, os argumentos apresentados, e encerrando o debate de forma pouco democrática, a Assembleia aprovou a “toque de caixa” o texto encaminhado pelo presidente do TJ-SP, fazendo vistas grossas inclusive ao entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal, onde deverá ser decidida a constitucionalidade da lei, na linha da representação já encaminhada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo no último dia 9 de agosto ao Procurador Geral da República.

Merece rememorar que mesmo antes da entrada em vigor da mencionada lei complementar, o tribunal de Justiça já vinha sofrendo severas críticas pela não observância da independência judicial em algumas comarcas.

Preocupado com a situação, ainda em 2011, o Conselho Nacional de Justiça chegou a recomendar que o tribunal remetesse à Assembleia Legislativa do estado anteprojeto de lei de organização judiciária pondo fim a tais irregularidades. E veja só que ironia. A solução encontrada em terras bandeirantes foi oficializar a irregularidade transformando-a em lei, que não só mantém o problema, como estende a situação, antes localizada em pontos isolados, agora para todo o estado, ainda por cima dando carta branca ao tribunal para designar e afastar juízes, cerne da preocupação do CNJ.

Se nossos representantes na Assembleia não querem ouvir a sociedade civil, até vá lá, mas poderiam estar mais atentos ao entendimento do Supremo Tribunal Federal e do CNJ sobre o tema, afinal de contas a malfadada lei cria aproximadamente 600 novos cargos no tribunal, custo demasiado elevado para ser jogado no lixo, caso o Supremo julgue a lei inconstitucional. E as chances disto ocorrer, convenhamos, são bastante elevadas.

Gritos e sussurros agitam as ruas

Pertenço a uma geração forjada na onda de um sonho; o sonho de uma democracia possível. Fomos criados ao som triunfante da ditadura arruinada. Filhos dos planos econômicos, da inflação galopante e das sucessivas crises financeiras, somos também meio filhos, meio irmãos de uma Constituição que nasceu cidadã, mas logo se pôs de joelhos para a burocracia dos tempos do império, e dos ranços de autoritarismo ainda impregnados nas nossas instituições. Somos a geração do impeachment do Collor. E somos uma geração que parou naquele ano de 1992. Mas nem tudo é tão ruim. Somos também a geração do tetra e do penta. O alucinógeno para tantas dores sentidas.

Somos a geração que herdou a liberdade conquistada a fórceps pelos nossos pais, e de repente percebeu que ela não cabia na sala apinhada de quinquilharias eletrônicas. Junto com a vitrola, com a máquina de escrever e o rádio de pilha, enfiamos esta liberdade no fundo do armário, como uma relíquia vintage, um penduricalho qualquer, um adorno imponente.

Somos também a geração do massacre do Carandiru, dos sequestros, planejados e relâmpagos. Somos a geração do PCC e do 11 de setembro. Fomos a primeira geração de adolescentes da história a portar celular, e também os primeiros adolescentes da história a se corresponder por e-mail.

Algumas lembranças, como os ruídos de uma máquina de escrever, do telefone com som de campainha, do orelhão a ficha e da carta enviada pelo correio, ainda soam para nós como um filme nouvelle vague que começou a ser projetado por engano, mas logo foi interrompido, e no lugar dele apareceu um longa-metragem cheio de ação, barulho e muita violência.

É difícil perceber o que esta multidão pretende nas ruas frias da capital paulista e de outras cidades do país. Tantos são os temas envolvidos na revolta pacífica, que nenhum deles chega a caracterizar o lema ou o mote do movimento. Bem capaz até que, embora empunhando a mesma bandeira, os manifestantes estejam a antagonizar-se mutuamente em pontos específicos, numa babel moderna, onde todos gritam, mas ninguém se entende. Por enquanto sabem o que os une; pior será quando se aperceberem das diferenças que os separam. São tantos os temas, que não pode haver concordância em todos eles. Alguém disse que há esquerdas e direitas nas ruas. Quem se arvora defini-los assim ou assado diante de tão complexa plêiade de insatisfações?

Eles protestam contra tudo. Contra a onda de assaltos violentos na cidade, mas também contra a violência da Polícia Militar, e contra prisões ilegais na periferia. Contra uma justiça morosa, que ora permite a impunidade de alguns, mas ora prende por anos a fio para depois declarar a inocência. Contra a PEC 37, mas também contra órgãos do Judiciário que falam outra língua, distantes do cidadão, e cada vez menos sensíveis aos dramas individuais. É contra um Estado letárgico e corrupto, mas ao mesmo tempo inflexível e implacável aplicador da lei, quando se trata de arruinar famílias inteiras com a cobrança de tributos escorchantes.

Somos um país governado por um poder que arruma jeito para tudo, até estádio de primeiro mundo em tempo recorde, mas é incapaz de resolver os mais básicos problemas individuais do cidadão: o transplante de rim do pai do João, a cirurgia cardíaca da tia do Pedro, o alvará do bar do Zé, o parcelamento da dívida fiscal do Seu Mané, a prisão injusta do irmão do Severino… A dificuldade de perceber um discurso único nas passeatas não é por acaso. Nossa miséria é a somatória dos invisíveis sofrimentos individuais de cada um.

Algo nos diz que a revolta não é só contra o Estado. Parece ser um pouco também contra a cultura do automóvel e o consumismo vulgar, contra a publicidade opressiva e as forças invisíveis de um capitalismo brutalizado. São as intermináveis conversas com a empresa de telefonia móvel. Ou a intransigência do plano de saúde que se recusa a cumprir o contrato. O sentimento de ser bem tratado somente na hora de pagar e esquecido na hora de receber. Afora aquelas dívidas que o cidadão paga, mas nunca diminuem; aqueles contratos feitos para consumidor nenhum entender. Agora, para coroar, a inflação.

A sensação é de que vivemos num mundo onde é preciso estar o tempo inteiro à espreita, e sob o menor sinal de desatenção, lá vêm eles, a moça da telefonia vendendo um plano “mais vantajoso”, o rapaz do banco oferecendo um produto “muito interessante para a segurança da família”…. E junto deles vem sempre o seu maior aliado, o medo incutido na veia do cidadão. Não bastasse o medo natural que os problemas no cotidiano já nos provocam, este sentimento ainda é anabolizado pelos oportunistas de plantão. É o apresentador de televisão vendendo pânico a preços populares, com sua melada voz sepulcral em pleno horário nobre.

Nosso Estado tem problemas graves, mas pior do que isto, nossa sociedade está doente, está acometida por aquilo que Jung chamava de epidemia psíquica. Não sabemos aonde as passeatas vão nos levar, se o movimento das ruas é sinal de mudança, ou apenas mais um grito sem resposta da massa descontente. Sabemos, porém, que a sociedade está dando um pequeno passo no sentido de enfrentar questões que estavam escondidas no nosso mais remoto inconsciente coletivo, e daí quem sabe um dia sejamos capazes de curar nossas piores patologias sociais.

Lei seca ou embriagada?

Entrou em vigor no final do ano passado a novíssima lei seca, que traz alterações no Código de Trânsito Brasileiro. Novíssima porque houve uma tentativa fracassada em 2008, acompanhada na época de uma forte campanha nos Estados, com o aumento vertiginoso da fiscalização, das autuações e até de prisões.

Essa, porém, não tardou a se mostrar inviável, porque a configuração do crime dependia da quantidade de álcool no sangue, de modo que bastava recusar-se a fazer o teste do bafômetro para se ver livre da incriminação. Enfim, em poucos meses a tão festejada mudança legislativa se revelou um grande fiasco.

Veio, então, a lei n.º 12.760/2012, por força da qual o artigo 306 do Código de Trânsito, que tipifica o crime, passou a ter a seguinte redação: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”.

Algumas considerações sobre o novo crime de embriaguez ao volante merecem ser feitas.

Um ponto positivo da nova lei é que somente o motorista flagrado com a capacidade psicomotora alterada poderá ser enquadrado no mencionado crime, ao contrário do que ocorria com a malsinada lei de 2008, que presumia a alteração psíquica a partir de determinada quantidade de álcool no sangue, independentemente da efetiva embriaguez. A mudança é bem-vinda porque os efeitos do álcool e de outras substâncias psicoativas variam de uma pessoa para outra, só se podendo afirmar a diminuição da capacidade psicomotora de alguém mediante seu exame médico individualizado.

Entrementes, geraram polêmica na lei atual os meios de prova admitidos para se poder constatar a embriaguez. Além do teste de alcoolemia (por bafômetro ou exame de sangue), de notório fracasso na legislação anterior diante da oponível garantia de ninguém ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, a lei agora prevê o exame clínico, a perícia, o vídeo, a prova testemunhal ou outros meios de prova em Direito admitidos.

Causa estranheza que provas sérias e dotadas de valor científico, como a perícia ou o laudo clínico do médico, tenham recebido o mesmo valor legal do depoimento de uma testemunha qualquer ou até mesmo de um vídeo amador. Sim, porque, excluídos os casos emblemáticos de embriaguez notória, que a televisão costuma flagrar, a maioria dos casos de alteração da capacidade psicomotora é de difícil asserção, de modo que se mostra bastante temerário deixá-la à mercê da prova testemunhal – cuja falibilidade vem sendo discutida há décadas nos meios acadêmicos -, a qual é aceita com ressalvas pelos tribunais pátrios, sobretudo quando desacompanhada de provas materiais do crime.

Da mesma forma, a possibilidade de que a embriaguez seja atestada por imagens captadas em vídeo cria um ambiente fértil para uma indústria de condenações arbitrárias, exatamente o inverso do que deveria prevenir a lei, pois as imagens em vídeo são obviamente muito pobres em informações se comparadas com as análises médicas realizadas no exato momento da abordagem. Ou seja, mesmo quando não for possível o exame ao vivo e em cores, face to face, feito por um médico no momento da abordagem, diz a lei que poderá substituí-lo o exame virtual, melhor dizendo, cinematográfico, em duas dimensões, e não necessariamente submetido à análise médica, posto à mercê, portanto, da interpretação leiga dos agentes da Justiça. Havemos de convir que a lei se contentou com muito pouco!

Mais temerário ainda é permitir que o policial responsável pela abordagem possa figurar como “testemunha” da embriaguez. Herança de sombrios tempos de autoritarismo, o testemunho em juízo do policial responsável pela abordagem ainda é aceito praticamente sem reservas pela jurisprudência dos nossos tribunais como prova para condenar acusados de roubo, pequenos furtos, porte ilegal de arma e de drogas. Logo, ficará a gosto do freguês, cabendo a cada juiz individualmente decidir se ele será válido ou não como prova da embriaguez.

Acontece que infunde justificado desconforto no espírito do cidadão saber que a prova da embriaguez poderá ser decidida, em última análise, pelo policial responsável pela abordagem. Esse incômodo pode ter várias causas, como o histórico de arbítrio do poder no Brasil e as deficiências ainda existentes na nossa polícia. Mas pode ser atribuído também a um natural e, arriscamos dizer, universal receio do indivíduo, não importa o continente onde se encontre, de vir a sofrer abusos e arbitrariedades da parte das forças do Estado.

Não à toa, toda a razão de ser do Direito se resume a estabelecer limites ao exercício do poder, e talvez não haja situação mais propícia à ocorrência do desmando estatal do que a abordagem policial de rua. Em situações assim, em que o Estado detém um poder quase de vida ou morte sobre o indivíduo, a lei deve adotar procedimentos insuspeitos, pelos quais a legalidade da atuação possa ser aferida de forma objetiva, e não por mero ato de fé na palavra do policial.

Não há dúvida que a sociedade brasileira era credora de uma lei capaz de responder adequadamente ao número quase epidêmico de acidentes de trânsito causados pela combinação de álcool e automóvel. Mas é verdade também que toda iniciativa legislativa dessa natureza deve buscar o binômio liberdade-segurança, garantindo de forma equilibrada a prevenção de tragédias, sem ameaçar a segurança jurídica da população que sabe dosar liberdade com responsabilidade e não deve, por conseguinte, ser prejudicada pelos excessos alheios.

Pesa dizer, mas mais uma vez o legislador se deixou embriagar pela comoção provocada por alguns casos pontuais, atuando a reboque dos acontecimentos, aprovando do dia para a noite um texto legal que, sob o pretexto de resolver um relevante drama social, faz reviver velhos anacronismos, resquícios ainda de um Estado com forte viés autoritário.

Lei seca foi embriagada pela comoção de casos pontuais

Entrou em vigor no final do ano passado a novíssima lei seca, que traz alterações no Código de Trânsito Brasileiro. Novíssima porque houve uma tentativa fracassada em 2008, acompanhada na época de uma forte campanha nos estados, com o aumento vertiginoso da fiscalização, das autuações e até de prisões.

Essa, porém, não tardou a se mostrar inviável, porque a configuração do crime dependia da quantidade de álcool no sangue, de modo que bastava recusar-se a fazer o teste do bafômetro para se ver livre da incriminação. Enfim, em poucos meses a tão festejada mudança legislativa se revelou um grande fiasco.

Veio, então, a Lei 12.760/2012, por força da qual o artigo 306 do Código de Trânsito, que tipifica o crime, passou a ter a seguinte redação: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”.

Algumas considerações sobre o novo crime de embriaguez ao volante merecem ser feitas.

Um ponto positivo da nova lei é que somente o motorista flagrado com a capacidade psicomotora alterada poderá ser enquadrado no mencionado crime, ao contrário do que ocorria com a malsinada lei de 2008, que presumia a alteração psíquica a partir de determinada quantidade de álcool no sangue, independentemente da efetiva embriaguez. A mudança é bem-vinda porque os efeitos do álcool e de outras substâncias psicoativas variam de uma pessoa para outra, só se podendo afirmar a diminuição da capacidade psicomotora de alguém mediante seu exame médico individualizado.

Entrementes, geraram polêmica na lei atual os meios de prova admitidos para se poder constatar a embriaguez. Além do teste de alcoolemia (por bafômetro ou exame de sangue), de notório fracasso na legislação anterior diante da oponível garantia de ninguém ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, a lei agora prevê o exame clínico, a perícia, o vídeo, a prova testemunhal ou outros meios de prova em Direito admitidos.

Causa estranheza que provas sérias e dotadas de valor científico, como a perícia ou o laudo clínico do médico, tenham recebido o mesmo valor legal do depoimento de uma testemunha qualquer ou até mesmo de um vídeo amador. Sim, porque, excluídos os casos emblemáticos de embriaguez notória, que a televisão costuma flagrar, a maioria dos casos de alteração da capacidade psicomotora é de difícil asserção, de modo que se mostra bastante temerário deixá-la à mercê da prova testemunhal — cuja falibilidade vem sendo discutida há décadas nos meios acadêmicos —, a qual é aceita com ressalvas pelos tribunais pátrios, sobretudo quando desacompanhada de provas materiais do crime.

Da mesma forma, a possibilidade de que a embriaguez seja atestada por imagens captadas em vídeo cria um ambiente fértil para uma indústria de condenações arbitrárias, exatamente o inverso do que deveria prevenir a lei, pois as imagens em vídeo são obviamente muito pobres em informações se comparadas com as análises médicas realizadas no exato momento da abordagem. Ou seja, mesmo quando não for possível o exame ao vivo e em cores, face to face, feito por um médico no momento da abordagem, diz a lei que poderá substituí-lo o exame virtual, melhor dizendo, cinematográfico, em duas dimensões, e não necessariamente submetido à análise médica, posto à mercê, portanto, da interpretação leiga dos agentes da Justiça. Havemos de convir que a lei se contentou com muito pouco!

Mais temerário ainda é permitir que o policial responsável pela abordagem possa figurar como “testemunha” da embriaguez. Herança de sombrios tempos de autoritarismo, o testemunho em juízo do policial responsável pela abordagem ainda é aceito praticamente sem reservas pela jurisprudência dos nossos tribunais como prova para condenar acusados de roubo, pequenos furtos, porte ilegal de arma e de drogas. Logo, ficará a gosto do freguês, cabendo a cada juiz individualmente decidir se ele será válido ou não como prova da embriaguez.

Acontece que infunde justificado desconforto no espírito do cidadão saber que a prova da embriaguez poderá ser decidida, em última análise, pelo policial responsável pela abordagem. Esse incômodo pode ter várias causas, como o histórico de arbítrio do poder no Brasil e as deficiências ainda existentes na nossa polícia. Mas pode ser atribuído também a um natural e, arriscamos dizer, universal receio do indivíduo, não importa o continente onde se encontre, de vir a sofrer abusos e arbitrariedades da parte das forças do estado.

Não à toa, toda a razão de ser do Direito se resume a estabelecer limites ao exercício do poder, e talvez não haja situação mais propícia à ocorrência do desmando estatal do que a abordagem policial de rua. Em situações assim, em que o estado detém um poder quase de vida ou morte sobre o indivíduo, a lei deve adotar procedimentos insuspeitos, pelos quais a legalidade da atuação possa ser aferida de forma objetiva, e não por mero ato de fé na palavra do policial.

Não há dúvida que a sociedade brasileira era credora de uma lei capaz de responder adequadamente ao número quase epidêmico de acidentes de trânsito causados pela combinação de álcool e automóvel. Mas é verdade também que toda iniciativa legislativa dessa natureza deve buscar o binômio liberdade-segurança, garantindo de forma equilibrada a prevenção de tragédias, sem ameaçar a segurança jurídica da população que sabe dosar liberdade com responsabilidade e não deve, por conseguinte, ser prejudicada pelos excessos alheios.

Pesa dizer, mas mais uma vez o legislador se deixou embriagar pela comoção provocada por alguns casos pontuais, atuando a reboque dos acontecimentos, aprovando do dia para a noite um texto legal que, sob o pretexto de resolver um relevante drama social, faz reviver velhos anacronismos, resquícios ainda de um estado com forte viés autoritário.