Estado de Direito acima de tudo; a lei acima de todos

O poder de polícia é um dos mais poderosos braços do Estado. Bem usado, produz o bem comum, desvenda crimes e pune culpados. Mal utilizado, degenera-se em instrumento de perseguição política de adversários, arbítrio e corrupção. Não é por acaso que a natureza totalitária de um governo costuma ser medida pelo poder de suas polícias.

Nesta linha, merece aplausos a decisão do ministro Dias Toffoli de suspender investigação criminal instaurada contra o senador Flávio Bolsonaro pelo fato de o procedimento se apoiar em dados bancários obtidos sem autorização judicial.

Boa hora em que o governo recebe a lição de que o poder de polícia só pode ser exercido dentro das regras legais e constitucionais.

O habeas corpus de Flávio Bolsonaro tem bastante a ensinar aos exaltados apoiadores da política punitiva do governo, que prega, em miúdos, trocar a confiança no império da lei e da Constituição pela devoção aos heróis de ocasião, sejam promotores, juízes ou policiais.

No Brasil, os poderes de investigação criminal competem basicamente às polícias e ao Ministério Público, órgãos que, no entanto, não podem tudo. Podem muita coisa, como intimar pessoas, prender em flagrante, realizar perícias e ouvir testemunhas.

Precisam, porém, da autorização de um juiz para levar a efeito a quebra de sigilo bancário e fiscal de alguém, fazer buscas domiciliares, prisões fora dos casos de flagrante, quebra de sigilo de dados e de telefone, entre outras.

Em 2016, ao julgar uma ação direta de inconstitucionalidade, em que o relator era o próprio Dias Toffoli, o Supremo Tribunal Federal abriu uma exceção ao direito à intimidade e à vida privada, dando à Receita Federal o poder de acessar dados bancários sem autorização judicial.

Ocorre que, se dão a mão, querem o braço.

Além de usar os dados para apurar dívidas com tributos, a Receita passou a compartilhar as informações com as polícias e os Ministérios Públicos. Isto, quando não resolve ela mesma fazer as vezes de polícia judiciária, como vimos recentemente.

Ou seja, os órgãos de investigação criminal passaram a contrabandear da Receita informações que, pela lei, só poderiam obter por meio de autorização judicial. Um atalho legal, digamos assim, para abusar do eufemismo.

O mesmo procedimento começou a ser feito com o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão de inteligência financeira responsável por identificar movimentações suspeitas.

No lugar de formalizar pedido ao juiz solicitando ofício aos bancos para obtenção de informações financeiras, passou-se a obter as informações diretamente do Coaf, papel a que o órgão definitivamente não se destina.

A grande questão é por que não pedir ao juiz? Por que fazer da forma errada se é possível fazer da forma correta?

A razão é simples. Para obter de um juiz medida de acesso a dados sigilosos de outra pessoa é preciso explicar muito bem explicado os motivos, a relevância e a necessidade da medida. A intervenção do juiz evita o arbítrio e garante maior transparência à investigação.

decisão do ministro Toffoli recoloca as coisas em seus devidos lugares, delimitando o âmbito de atuação de cada instituição e devolvendo ao Judiciário o papel de garantidor das liberdades e dos direitos individuais do cidadão.

Por outro lado, oxalá, agora que o arbítrio penal bateu à sua porta, o governo perceba que o combate ao crime só pode ocorrer com o respeito às regras do Estado democrático de Direito.

A ameaça é real

Aquela ideia de ONG assistencialista é coisa do passado. A sociedade civil organizada tem hoje um compromisso muito mais engajado com temas como meio ambiente, corrupção, tortura, defesa da mulher, racismo e acesso à Justiça do que os partidos políticos, comprometidos na maior parte das vezes com pautas mais amplas e genéricas. É tão relevante e fundamental a atuação das ONGs que, recentemente, a Organização das Nações Unidas publicou uma lista de trinta países acusados de perseguir de alguma forma ativistas de direitos humanos ou impedir as entidades da sociedade civil de atuar livremente. Na lista estão Rússia, Turquia, Colômbia e Hungria, assim como China, Cuba e Venezuela. O Brasil ainda não faz parte desse infeliz time. Ainda não.

Mas já há claros indícios do caminho que o governo de Jair Bolsonaro pretende trilhar na convivência com as ONGs. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, anunciou a suspensão, por noventa dias, de convênios e parcerias de sua área de atuação. Foi desmentido, fez um recuo, mas depois recuou do recuo. Pode-se dizer, olhando para o cenário internacional, que a gestão Bolsonaro parece alinhada ideologicamente com o governo de Vik­tor Orbán, na Hungria, que aprovou, nos últimos anos, um pacote de medidas com o objetivo de sufocar a atuação de ativistas de direitos humanos, tanto por meio da criminalização da ajuda a refugiados quanto por meio da criação de entraves burocráticos e fiscais para o ingresso de recursos financeiros direcionados a projetos sociais. O pacote ficou conhecido como “Pare Soros”, em alusão ao magnata húngaro-americano George Soros, criador da Open Society, entidade filantrópica que financia projetos sociais ao redor do mundo. Soros virou o inimigo número 1 da direita ultranacionalista não só na Hungria, de onde a entidade teve de sair para se estabelecer em Berlim, como também nos Estados Unidos.

Trump chegou a dizer que Soros alimenta a caravana de refugiados do México para os Estados Unidos. Em um post no Twitter, Eduardo Bolsonaro usou tom semelhante ao criticar Soros em decorrência de suas posturas progressistas, que ele traduziu como “ideias de esquerda”. Como de esquerdista Soros não tem nada, sendo ele próprio a mais pura tradução do capitalismo, um megainvestidor do mercado financeiro e um dos homens mais ricos do mundo, a única razão que sobra para a antipatia pelo bilionário é sua preocupação com causas humanitárias e sociais.

Jair Bolsonaro navega nesse caldo. Logo depois do primeiro turno das eleições presidenciais, ele foi claro: “Vamos acabar com toda forma de ativismo no Brasil”. A promessa carece de alguns predicados para ser mais bem compreendida. Em outra mensagem via Twitter, referindo-se aos quilombolas, e já empossado no cargo de presidente, Bolsonaro escreveu que é preciso “integrar estes cidadãos e valorizar todos os brasileiros”. Na mesma postagem, denunciava “os quilombolas manipulados e explorados por ONGs oportunistas”. A publicação foi feita no exato dia em que editou uma medida provisória que prevê o monitoramento das atividades da sociedade civil organizada, ONGs nacionais e estrangeiras.

Logo irrompeu a dúvida. O Executivo então quer mo­nitorar, fiscalizar, acompanhar e coordenar a atuação de entidades não governamentais? Como será? Tal medida se aplica apenas às entidades que recebem verba da União ou a todas as organizações? Como o próprio nome diz, organizações não governamentais nada têm a ver com o governo. Se tivessem, seriam consideradas organizações governamentais.

Como o governo ainda parece muito atrapalhado nas suas manifestações, tal como ocorreu no aumento do IOF, anunciado pelo presidente em rede nacional e logo desmentido pelo terceiro escalão, é possível que o palavrório não passe de diversionismo para continuar entretendo eleitores mais exaltados. Somada, porém, às declarações do presidente, a medida provisória é suficiente para colocar uma pulga atrás da orelha de entidades filantrópicas, ONGs e movimentos sociais em geral.

“O governo quer monitorar, fiscalizar, acompanhar e coordenar a atuação das ONGs? Como será?”

A defesa da segurança nacional contra o terrorismo ou a cooperação com entidades estrangeiras também têm servido de pretexto para alguns governos darem, digamos assim, aparência de legitimidade às políticas de cerceamento e criminalização das atividades do terceiro setor. Nisso, alguns aliados do novo governo já começaram a se empenhar. Aprovada no governo Dilma, como forma de prevenir atos de terrorismo durante a Olimpíada de 2016, a Lei Antiterrorismo sofreu na época alguns vetos presidenciais, tendo em vista a ambiguidade que continha ao permitir, por exemplo, que atos individuais de manifestantes, grevistas ou pertencentes a movimentos sociais fossem enquadrados no conceito de terrorismo.

A lei hoje em vigor prevê uma importante ressalva para que a sociedade civil legitimamente organizada não seja confundida com organizações terroristas. Exclui-se todo tipo de “conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional”. Alguns não digeriram bem o veto, como foi o caso do ex-senador Magno Malta. Dias depois de saber que não havia sido reeleito para um novo mandato, o então parlamentar tentou pôr em votação um projeto de lei que elimina essa trava legal, de modo que a definição de terrorismo passe a se estender inclusive a movimentos legítimos e a organizações da sociedade civil com escopos lícitos. Pela redação do novo projeto, basta que uma manifestação do Movimento Passe Livre, do Movimento Brasil Livre, do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra ou do Greenpeace termine em atos de violência para que, além das punições próprias já existentes na lei para quem os pratica (crimes há muito previstos no Código Penal, como lesão corporal, dano ao patrimônio público, incêndio etc.), todos os integrantes do movimento sejam enquadrados no crime de pertencer a uma organização terrorista. E quem se atrever a defender os manifestantes publicamente também será tratado como terrorista. É o que propõe o artigo 3º-A do tal projeto de lei, ao prever pena que varia de quatro a oito anos de reclusão àquele que recompensar ou louvar pessoa envolvida em atos criminosos punidos pela lei. Como se sabe, é fácil infiltrar provocadores em qualquer manifestação — e está armada a arapuca.

É verdade que a lei por si só não é suficiente para garantir o objetivo do legislador. O Judiciário pode mitigar os efeitos perversos da lei, mas não está acima dela. Ao aprovar uma lei como essa, o governo, que a apoia, já terá conseguido uma grande vitória na sua estratégia de amedrontar os ativistas que queiram se opor às suas políticas de Estado, especialmente as ONGs. Ainda é cedo para julgar.

Talvez seja o caso, por ora, de atribuir essa postura a arroubos retóricos e desencontros que caracterizaram os primeiros dias do governo de Bolsonaro. Algumas notas de vigiar e punir, no entanto, já podem ser identificadas na valsa que este governo pretende dançar com a sociedade civil organizada. Resta saber se são o tom da valsa ou se representam meros acordes dissonantes.

Proteção ao sigilo impede Receita de investigar crimes não tributários

A divisão de competências é uma das mais importantes regras de um Estado Democrático de Direito. Previne a concentração de poder, o arbítrio, e garante a impessoalidade do exercício da função pública, evitando ou pelo menos diminuindo o espaço para perseguições pessoais praticadas sob patrocínio estatal.

É por isso que existem limites à atuação dos agentes públicos, principalmente daqueles investidos do poder de polícia. Este só pode agir onde a lei manda, e não quando lhe convém. Quanto mais ampla a atribuição de uma função pública, maior a chance de arbitrariedades. Quem semeia arbítrio corre grande risco de colher corrupção.

Os Estados absolutistas não precisavam de leis delimitando o poder do soberano, e nem as admitiam. O Rei tudo podia. O direito serve para limitar o poder do soberano, que passa a se guiar pela lei, apenas e tão-somente pela lei, e não mais pela vontade ou pelo capricho.

Este é o espírito do artigo 64-A que o senador Fernando Bezerra Coelho inseriu na Medida Provisória 870/2019: esclarecer, em caráter meramente interpretativo (mas muito necessário diante dos excessos que vêm sendo cometidos), os limites da competência da Receita Federal do Brasil em matéria criminal.

Trata-se de introduzir um parágrafo 4º ao artigo 6º da Lei 10.593/2002, dispondo que “a competência do Auditor-Fiscal da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil limita-se, em matéria criminal, à investigação dos crimes contra a ordem tributária ou relacionados ao controle aduaneiro” (inciso I) e que “os indícios de crimes diversos dos referidos no inciso anterior, com os quais o Auditor-Fiscal da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil se depare no exercício de suas funções, não podem ser compartilhados, sem ordem judicial, com órgãos ou autoridades a quem é vedado o acesso direto às informações bancárias e fiscais do sujeito passivo” (inciso II).

A medida provisória expira em 3 de junho próximo e, além de dúvidas razoáveis que este artigo se propõe a esclarecer, a regra proposta pelo Senador tem gerado reações extremadas, umas decorrentes do puro desconhecimento do seu conteúdo, outras oriundas de setores que recorrem a práticas heterodoxas para ganhar a opinião pública e, com isso, legitimar pautas corporativas, quando não puramente pessoais: como bônus pagos com a arrecadação de multas tributárias, a livre disposição de fundos bilionários constituídos com dinheiro público, o contrabando de promoção pessoal em medidas reparadoras, a manipulação de dados para constranger autoridades não alinhadas, a pavimentação de carreiras políticas ou judiciárias…

As aventuras criminais da Receita Federal são testemunhadas dia a dia por quem atua nas áreas tributária e criminal. E foram há pouco escancaradas pelo vazamento da Nota 48/2018 RFB/Copes, de caráter sigiloso, a qual (i) confessa que o objetivo da RFB é apurar a atuação de agente público “como partícipe de uma eventual ação irregular” (itens 06 e 17), (ii) sugere “maior atenção da fiscalização na fonte de recursos do que no contribuinte” (item 26) e (iii) admite que nem todas as fiscalização abertas em seu cumprimento “levarão, necessariamente, à constatação de fraudes nos termos da legislação” ali tratada (lavagem de dinheiro), podendo haver casos onde se constate mera “irregularidade tributária” (item 35).

É certo que, no julgamento do RE 593.727/MG (Pleno, relator ministro Gilmar Mendes, DJe 4/9/2015), o STF estendeu a competência investigatória das polícias judiciárias ao Ministério Público, às CPIs, às corregedorias judiciais e a órgãos executivos como a CGU, o COAF e os Fiscos dos três níveis da Federação. Porém, como adverte a Corte, a competência dos outros órgãos, diversos da polícia e do Parquet, limita-se a que “promovam, por direito próprio, em suas respectivas áreas de atribuição, atos de investigação destinados a viabilizar a apuração e a colheita de provas concernentes a determinado fato que atinja valores jurídicos postos sob a imediata tutela de referidos organismos públicos” (2ª Turma, HC 89.837/DF, Relator Ministro Celso de Mello, DJe 19.11.2009).

Daí terem os Fiscos competência para investigar exclusivamente os crimes tributários — acrescidos, quanto à Receita Federal, dos aduaneiros —, por serem estas as áreas da administração postas sob a sua responsabilidade: “é da atribuição dos agentes da Receita Estadual” — e, pois, também das autoridades tributárias dos demais entes federados — “colaborar com a Polícia Judiciária na elucidação de ilícitos tributários, o que os autoriza a acompanhar as diligências de busca e apreensão” (1ª Turma, AP 611/MG, relator ministro Luiz Fux, DJe 10/12/2014).

E mais: mesmo nos crimes tributários, a competência da Receita limita-se a uma proposta de tipificação, a partir dos fatos geradores apurados e descritos na Representação Fiscal para Fins Penais. Proposta que, é claro, não vincula a polícia e muito menos o Ministério Público, titular exclusivo da ação penal. Tampouco lhe cabe adentrar temas como a análise dos antecedentes e da personalidade do agente, a distinção entre concurso material e continuidade delitiva, a prescrição da pretensão punitiva, entre tantos outros de índole estritamente criminal.

E nem poderia ser diferente. Há afinal um plexo de direitos e garantias em favor do investigado, que ficam completamente anulados numa apuração realizada no âmbito fiscal. Direitos como o de não ter devassada a intimidade bancária e fiscal sem decisão fundamentada de autoridade judiciária, direito ao silêncio e o de não produzir prova contra si mesmo, entre outros. Veja-se que o direito à não autoincriminação, garantia comezinha que socorre qualquer pessoa alvo de uma investigação criminal, é praticamente inexistente perante o Fisco, já que, dependendo da situação, é até mesmo capitulado como crime (artigo 1º, inciso V, da Lei 8.137/90 — de duvidosíssima constitucionalidade).

A investigação criminal está prevista no Código de Processo Penal e submetida a rigoroso controle judicial, com a obrigação, por exemplo, de que o inquérito seja enviado a cada 30 dias para avaliação do Ministério Público e do juiz. E no caso da Receita, quem controla a atividade investigativa? Os próprios agentes fiscais? Esta é a receita certa — com o perdão do trocadilho — para florescer o arbítrio e campear a corrupção.

O cobertor é curto. Ou bem a Receita é órgão de apuração de tributos, função repleta de poderes que outros órgãos não têm (quebrar sigilo bancário e fiscal sem autorização judicial, por exemplo), ou bem se torna mais um órgão de investigação criminal, passando a obedecer aos limites e rituais próprios dessa função — o que traria notório prejuízo à sua finalidade arrecadatória. No longo prazo, isso seria a morte dos Fiscos!

O que não se pode admitir é que, travestida de órgão arrecadatório, queira agir como polícia, método sub-reptício e rasteiro de se furtar à observância do figurino legal e constitucional que cerca a atuação dos órgãos incumbidos da investigação criminal em qualquer Estado Democrático de Direito. A propósito, é por isso que, além de não investigar pessoalmente os crimes não tributários ou aduaneiros cujos indícios suponha ter identificado nas informações bancárias e fiscais do contribuinte, o auditor não pode compartilhar dados e informações às quais teve acesso durante a fiscalização.

Sim, pois tal compartilhamento — assim como a investigação direta seguida da transmissão das respectivas conclusões aos órgãos de persecução penal — redundaria na entrega de informações sigilosas a autoridades que só as poderiam acessar mediante ordem judicial (CF, artigo 5º, incisos X e XI; CTN, artigo 198; artigo 6º, parágrafo único, da Lei Complementar 106/2001; Código Penal, artigo 325).

E nem se pretenda que tal compartilhamento estaria respaldado no artigo 116, inciso VI, da Lei 8.112/90, norma de controle interno da administração pública que impõe ao servidor federal o dever de “levar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao conhecimento da autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente para apuração”. A menos que os auditores da Receita Federal admitam que o Delegado da Polícia Federal o Procurador da República são seus superiores hierárquicos — assunção que, considerada a instrumentalização da categoria no âmbito das chamadas forças-tarefas, não estaria muito longe da realidade.

Tudo o que se disse acima diz respeito à investigação ou à comunicação de indícios que precisem ser aprofundados e que decorram de informações sigilosas. Crimes constatáveis de plano em quaisquer outras fontes podem e devem ser comunicados pelos auditores às autoridades competentes, na forma do artigo 27 do Código de Processo Penal. Não procedem, assim, as teses sensacionalistas de que, aprovada a emenda parlamentar, o fiscal tributário teria de ficar calado quando encontrasse drogas, armas de uso restrito ou pessoas reduzidas à escravidão no estabelecimento visitado.

À falta de melhores argumentos, diz-se que a emenda é um jabuti. Propomos um exercício simples: com o recurso “Localizar” do computador, verificar quantas vezes os termos “competência” e “compete” aparecem na MP 870/2019, ligados aos mais diversos órgãos do Poder Executivo. Acerta quem disser mais de setenta. Por que só a Receita estaria fora do seu alcance?

Ao cabo, o jabuti é só mais um disfarce para a jabuticaba que são os fiscais-tiras!

O ICMS não pago e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

… malandro, pra valer trabalha, mora lá longe e chacoalha no trem da central…”
(Chico Buarque – Ópera do Malandro)

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu, no julgamento do habeas corpus 399.109/SC, que o não pagamento de ICMS caracteriza retenção de imposto cobrado de terceiro e, assim, espécie de apropriação indébita tributária prevista no artigo 2º, II, da Lei 8.137/90.

Causou espanto o julgamento não apenas pelo inusitado entendimento, mas também porque no caso os réus eram pessoas simples, que haviam deixado de recolher alguns poucos milhares de reais, e eram defendidos pela valorosa Defensoria Pública de Santa Catarina.

O caso seguiu para o Supremo Tribunal Federal, no RHC 163.334, de relatoria do ministro Roberto Barroso, onde deverá ser julgado pelo Plenário da Corte.

Diversos autores já escreveram com profundidade e proficiência sobre o tema, de modo que não se pretende aqui revisitar toda a problemática jurídica envolvida, mas apenas sob enfoque da jurisprudência do STF.

De fato, desejando a Suprema Corte manter coerência com a jurisprudência construída ao longo de anos acerca da sistemática do ICMS, deverá rever a decisão do STJ, e julgar que é atípica do ponto de vista penal a conduta de declarar e não pagar o imposto.

Vejamos:

Como se sabe existem duas formas de apropriação indébita tributária, a via desconto (apropriação indébita previdenciária e artigo 337-A), e aquela feita mediante cobrança adicional (substituição tributária no ICMS).

No desconto, o empresário retém do pagamento que precisa fazer a alguém a parte do imposto (apropriação indébita previdenciária prevista no artigo 168-A).

Já na cobrança, como ocorre na ICMS por substituição tributária, além do preço do produto, no qual estão embutidos os impostos próprios, há uma cobrança separada a título de imposto.

É por isto que o inciso II prevê as duas formas ao estabelecer que configura crime “deixar de recolher no prazo legal valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação tributária…”

A grande controvérsia quando se discute se há ou não apropriação indébita no não pagamento do ICMS próprio é se o valor recebido pelo contribuinte na operação é imposto ou preço.

Sim, porque enquanto no ICMS-ST não há dúvida de que o empresário cobra o imposto em nome do fisco, no ICMS próprio, como o próprio nome diz, o contribuinte é ele mesmo.

Nem a obrigação de destacar na nota é suficiente para desnaturar o caráter de preço do valor e a condição de contribuinte próprio do vendedor ou prestador de serviço. Afinal, pela inteligência do artigo 13, parágrafo 1º, I da Lei Complementar 87/96, o destaque na nota constitui mera indicação para fins de controle.

Na devolução da mercadoria fica ainda mais evidente que o ICMS destacado não pertence ao estado, pois, em alguns estados, não deve constar na nota de devolução a alíquota ST, mas apenas o ICMS próprio.

Como, por pura lógica, o empresário só pode devolver o que está na sua esfera de disponibilidade, e como não só pode, como deve devolver o ICMS próprio, é porque o valor destacado na nota lhe pertence e não ao fisco.

A tese do acórdão do STJ tampouco encontra guarida no precedente do STF, proferido no RE 574.706, do STF, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, no qual se assentou que o valor do ICMS não integra a base de cálculo da Cofins, porque não é receita, mas mero “trânsito contábil”.

A expressão “trânsito contábil” levou parte da doutrina a concluir, portanto, que ICMS declarado e não pago configura apropriação. Na judiciosa análise de Eisele em artigo publicado nesta ConJur, o precedente seria a pá de cal, o tiro de misericórdia na tese de que no ICMS próprio “compõe o preço da operação e configura propriedade do vendedor”.

Ocorre que nem mesmo este precedente permite precipitar tal conclusão por alguns motivos:

Primeiro, porque o acórdão do STF se baseia em outros fundamentos como já assentado há mais tempo no RE 240.785 do STF, de que “tributos não devem compor a base de cálculo para incidência de outros tributos”, e também na ideia de que não se permite a inclusão na base de cálculo de receita de terceiros, como é o caso do ICMS, de competência dos Estados.

Segundo, porque o STF argumentou que o valor recebido pelo vendedor configura “trânsito contábil”, que é conceito abstrato, próprio do direito tributário, o qual, a nosso ver, não permite deduzir, de pronto, comportamento humano configurador de apropriar de valores pertencentes, conduta humana muito mais complexa, que é o que importa ao direito penal.

Até porque o artigo 2º, inciso II, prevê conduta real e não mera realidade contábil. Veja por exemplo que se o empresário vende, mas não recebe o valor da venda, há registo contábil, mas não o trânsito efetivo de valores, logo, não haverá o crime sequer no tocante à substituição tributária. Prova de que o tipo penal não se compraz da mera ficção contábil.

De mais a mais, a exclusão do ICMS do Cofins só parece possível quando o imposto estadual é pago. Sem recolhimento do ICMS, parece óbvio que não vale a regra sufragada no precedente. Sendo assim, então, ao incluir na base de cálculo do PIS e da Cofins o ICMS não pago, a União estaria sendo cúmplice da apropriação dos valores pertencentes ao Estado federado?

Não parece fazer sentido.

Contradição, no entanto, haverá mesmo se a Corte decidir que o não pagamento de ICMS configura crime, pois aí sim estaria infirmando seu próprio entendimento, sedimentado no julgamento do RE 608.872/MG, quando deixou de reconhecer imunidade de ICMS para entidades filantrópicas na aquisição de bens ou serviços, justamente sob o fundamento de que o valor pago é preço e não tributo.

Como desfrutam de imunidade tributária, as aludidas entidades pretendiam que fosse excluído o valor do imposto de todas as mercadorias e serviços que adquirem ou contratam. Ou melhor, o pleito era no sentido de que pudessem adquiri-los com o desconto do imposto. Ao dizer que isto não era possível, pois o ICMS destacado na nota não configura pagamento do imposto, o STF colocou fim à discussão. O ICMS destacado é preço, e não tributo.

Assim, não há dúvida de que, à luz do entendimento cristalizado na jurisprudência do STF, o não recolhimento do tributo incidente sobre a operação representa mera dívida fiscal e não apropriação indébita tributária.

Sendo assim, por qualquer ângulo que se analise a questão, o entendimento sufragado pela 3ª Seção do STJ é não apenas tecnicamente equivocado — pese todo respeito e admiração rendidos aos ministros que a compõem — mas sobretudo injusto por criminalizar a mera dívida fiscal, mecanismo que, no afã de suprir a falência dos instrumentos legais de cobrança, acaba por incentivar a própria a sonegação.

O crime de lavagem de dinheiro na operação “lava jato” e o caso Lula

A operação “lava jato” cometeu arbítrios e ilegalidades que já foram por diversas vezes apontadas por professores, advogados e especialistas.

O excesso acusatório é traço distintivo bastante visível nessa operação. O MPF operou com manifesto bis in idem em diversos casos. Houve casos em que, embora de forma disfarçada, puniu-se duas, em alguns até três vezes a mesma conduta, sob o pretexto de configurarem tipos penais autônomos.

No entanto, é sem dúvida no crime de lavagem de dinheiro que o bis in idem — ou a dupla ou tripla incriminação — se mostra ainda mais manifesto.

Há grande debate jurisprudencial em torno do que é lavagem. O desafio dos tribunais tem sido, porém, menos definir o que é lavagem, e muito mais distinguir o que não é lavagem.

Coube ao STF papel preponderante nos contornos e limites ao tipo legal, definindo ineditamente, por exemplo, que as diversas formas de usufruir do patrimônio ilícito por si só não configura lavagem, mas mero exaurimento do crime antecedente (HC 80.816, relator ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 18 de junho de 2001). Depois, no julgamento da Ação Penal 470, ao proclamar que não configura lavagem os atos dissimulados utilizados para receber a vantagem indevida no crime de corrupção (caso do deputado João Paulo Cunha).

Tal entendimento foi completamente desvirtuado na “lava jato”. Na 7ª fase da operação, conhecida como juízo final, diversos executivos de empresas foram acusados por lavagem de dinheiro, pela conduta de celebrar contratos de fachada com empresas do doleiro Alberto Youssef, valores em seguida transferidos a agentes públicos como pagamento de propina.

A um leigo pode parecer óbvia ou até intuitiva a ocorrência de lavagem. Mas no Direito nem tudo que é óbvio ou intuitivo é o certo. Do contrário, a Justiça poderia ser feita por qualquer um, e não por juristas. Nem nos países que consagram a instituição do júri a lei subtrai da análise de juristas o exame de questões eminentemente jurídicas.

Para afirmar, pois, que a celebração de tais contratos com Youssef configura lavagem de dinheiro, é preciso primeiro demonstrar que os valores objeto dessa operação financeira são produto de crime antecedente. Lavagem é por definição legal aquilo que se faz com o produto do crime antecedente. Sem um crime anterior que tenha produzido bens ou valores, pode haver outros crimes, falsidade ideológica, corrupção, mas não lavagem.

A tese então que passou a vigorar com sucesso na 13ª Vara do Paraná foi a de que os valores transferidos a Alberto Youssef eram produto dos crimes praticados contra a Petrobras, cartel, fraude à licitação, peculato…

A opção remanescente seria ainda mais absurda, a de que o crime antecedente seria a própria corrupção, tese bem mais difícil de emplacar, já que a etapa da operação que o MPF considerava caracterizadora da lavagem era muito anterior ao momento em que os valores foram efetivamente entregues ao agente público.

No entanto, tampouco os crimes contra a Petrobras, cartel, fraude à licitação e peculato poderiam ser considerados antecedentes à lavagem. E nem pretendo entrar na questão de que tais crimes nunca chegaram a ser objeto de acusação contra alguém, embora até fosse argumento relevante.

A questão que nos interessa neste momento é quanto à natureza dos valores que as empresas de engenharia receberam da Petrobras, mesmo considerando a hipótese de serem valores superfaturados (muito embora, frise-se, a acusação por peculato nunca tenha sido formulada).

A lavagem é processo que se leva a efeito com a finalidade de conferir ao proveito do crime proteção patrimonial que, em razão da clandestinidade dos recursos, não pode ser obtida por meio dos instrumentos oficiais da economia formal. Se o recurso já ingressa de forma oficial, qual seria a lavagem?

São pressupostos essenciais da lavagem a clandestinidade dos recursos e o caráter oficial ou lícito que se queira atribuir a eles.

Ou seja, não se lava o que já está limpo. Não se oficializa o que já é oficial. Não se pode confundir dinheiro ilícito ou recebimento indevido de valores com dinheiro sujo, clandestino, que precisa passar pelo processo de lavagem para ser incorporado à economia formal.

Ninguém cogita, nem o MPF, que as empresas desejavam por meio dos contratos celebrados com Youssef — ou outros com atividade semelhante — esconder, escamotear, dissimular ou ocultar os valores recebidos da Petrobras.

Seria até absurda essa suposição, pois esses valores já eram oficiais e não precisavam ser lavados, eram usados para pagar funcionários, fornecedores, despesas gerais. Então todas as operações financeiras feitas com esses valores configuram lavagem? Nem o mais xiita dos acusadores chegou a sustentar tal hipótese.

Na verdade, os contratos fictícios eram forma de fazer a propina sair da empresa sem chamar atenção, para que depois, num segundo momento, pudessem chegar ao agente público.

Logo, não visavam lavar valores provenientes de crime antecedente contra a Petrobras, mas dissimular os atos preparatórios do crime posterior de corrupção, o que faz toda a diferença para efeito de tipicidade da lavagem. É que não há lavagem de crime que ainda não se consumou ou, no caso da corrupção, não teve seu exaurimento verificado.

Ou melhor, propina só pode ser lavada depois que entra na esfera de disponibilidade do agente corrompido.

É o que afirmou com precisão a ministra Rosa Weber no julgamento da Ação Penal 470:

“… o ato configurador da lavagem há de ser, a meu juízo, DISTINTO E POSTERIOR à disponibilidade sobre o produto do crime antecedente” (STF, AP 470, voto Minª. ROSA WEBER, fls. 52.880, do v. acórdão do julgamento da ação penal).

No caso do ex-presidente Lula, a acusação considerou, em síntese, que a corrupção teria se consumado com a aceitação de oferta que seria em algum momento materializada com transferência de um apartamento triplex em Guarujá (SP).

Falso ou verdadeiro — não importa para efeito deste artigo —, fato é que o acórdão do STJ parte da premissa de que o apartamento nunca foi efetivamente passado para o nome do ex-presidente, o que levou o STJ a entender que, por esse motivo, estaria configurado também o crime de lavagem.

Pela intelecção do acórdão, ao manter o apartamento em nome de terceiro, os réus estariam ocultando ou dissimulando a propriedade de bem fruto de crime, no caso, a própria corrupção.

A premissa do acórdão então é que o imóvel, embora prometido por empresa envolvida no escândalo da Petrobras, não chegou a ser transferido, ou seja, continuou em nome da empresa.

Se isso é verdade, não teria havido o próprio exaurimento do crime de corrupção, isto é, não houve por parte do ex-presidente recebimento de bem ou valor, mas, no máximo, uma suposta aceitação de promessa de entrega de bem, ou usufruto da posse, mas não acréscimo patrimonial.

O próprio acórdão chega a reconhecer que “estivesse em seu nome o apartamento (…) não seria possível cogitar do crime de lavagem”. Veja-se então o paradoxo: se a suposta corrupção tivesse avançado um pouco mais, e o imóvel sido efetivamente transferido ao ex-presidente, este estaria livre do crime de lavagem, mas, como parou na mera promessa, responde então por ambos os crimes. Não parece fazer sentido, data máxima vênia.

Ao rebater a tese de bis in idem levantada pela defesa, aduziu o voto do ministro Felix Fischer:

“Nos crimes de corrupção, cabe recordar, o efetivo pagamento sequer é essencial ao tipo penal. Nesta conjugação de balizas, é impensável admitir-se, como regra geral, que ao ato — posterior, autônomo e sem necessária relação com o antecedente — tendente a ocultar ou dissimular a origem ilícita de dinheiro já incorporado ao patrimônio do agente seja mero exaurimento da corrupção (p. 91)”.

O acórdão tem razão quando diz que, para a configuração da corrupção, não é preciso haver a efetiva incorporação da vantagem no patrimônio do agente público. A corrupção se consuma com a mera aceitação da vantagem.

O mesmo, porém, não se aplica ao crime de lavagem, como inclusive já teve a oportunidade de observar Pierpaolo Bottini nesta ConJur (“Análise do conceito de lavagem de dinheiro na condenação de Lula”, publicado em 5 de março de 2018).

O crime de lavagem não se compadece de meras formalidades, ficções ou virtualidades. Enquanto não há o efetivo recebimento material de bem ou valor produto de crime antecedente, não há o que ser lavado, há apenas uma expectativa de receber a propina. Como então falar em lavagem de bem que nunca saiu do patrimônio da empresa acusada de oferecer a vantagem indevida?

O próprio voto acima citado reconhece que, para que se possa cumular lavagem e corrupção, é preciso que, após o recebimento da propina, haja ato posterior e autônomo, praticado com a finalidade de dissimular ou ocultar a origem de bem já incorporado ao patrimônio do agente beneficiado pela corrupção.

Mas que ato posterior e autônomo seria este se o próprio acórdão admite que o agente público não chegou a receber o imóvel, que sequer saiu da esfera patrimonial da empresa acusada de oferecer a propina? Até porque, vale lembrar, para haver lavagem, é preciso ter havido recebimento material de bens, valores ou recursos, o que não ocorre com a mera posse ou usufruto de imóvel.

Seria até mesmo hipótese de crime impossível pela impropriedade do objeto. Vale dizer, é impossível lavar o produto de propina que ainda não ingressou na esfera de disponibilidade do agente público.

Em suma: como falar em lavagem da propina sem que tenha havido o exaurimento (pagamento) da corrupção?

A lógica consagrada no acórdão é a de que configura lavagem o fato de alguém prometer entregar imóvel como propina e não transferir a propriedade ao agente público. Ou seja, a mensagem transmitida do ponto de vista da política criminal é a pior possível, é a de que seria preferível receber logo a propina do que não receber, e ficar na mera promessa, ou na expectativa de recebimento.

Chama a atenção no referido precedente não haver muita clareza de qual seria o crime antecedente. Pois, em outra passagem do acórdão ora analisado, extrai-se o seguinte argumento:

“Demais disso, constatou-se a ocorrência de operações de compensação entre contas de diferentes empresas (…) como forma de repassar as vantagens indevidas e dificultar o rastreamento dos valores ilícitos. Isso por si só, caracteriza a técnica de lavagem por mera movimentação, intitulada mescla, como destacado em razões finais do órgão de acusação” (p. 91).

Pelo que se deflui do trecho acima, a lavagem aqui já não teria mais consistido na dissimulação da propriedade do imóvel, mas, sim, em movimentações financeiras e contábeis simuladas que precedem a corrupção.

Neste tópico, o acórdão considera que configuram lavagem os atos utilizados para fazer a suposta propina chegar até o beneficiário.

Os atos dissimulados praticados pela contabilidade da empresa podem configurar crimes autônomos, como falsidade, ou até corrupção, mas não lavagem de dinheiro de uma corrupção futura.

O voto proferido pelo ministro Jorge Mussi foi ainda mais além no sentido de proclamar que não é possível nem preciso demonstrar o nexo de causalidade entre o produto do crime antecedente e o bem ou valor sob apuração, quando se trata de bem fungível como dinheiro. A assertiva, de largada, provoca alguma confusão, porque neste ponto já não se sabe mais se o acórdão considera produto do crime dinheiro ou imóvel.

Deixando este pormenor de lado, há de qualquer forma interpretação equivocada do delito de lavagem. Para efeito de lavagem, a operação de dissimulação ou ocultação deve ocorrer sempre sobre o “mesmo bem ou sobre o mesmo dinheiro”, e não sobre “qualquer dinheiro”.

Pensemos na seguinte situação: A recebe propina de B em dinheiro no Brasil e guarda debaixo do colchão. A, porém, precisa dividir a propina com C, outro agente público, e resolve transferir de uma conta declarada no exterior a parte de C, que a recebe em conta também declarada no exterior. Houve lavagem do dinheiro recebido em espécie no Brasil? Parece que não. O dinheiro “sujo” continua “sujo” no Brasil, de forma idêntica à de quando foi recebido. Não houve nexo causal entre o produto do crime e a operação econômica subsequente capaz de lhe alterar alguma qualidade.

Intérprete mais açodado poderia se ver tentado a dizer: “Claro que há lavagem, pois a jurisprudência brasileira considera que compensação de valores entre mantidos no Brasil com contas no exterior por meio de operação de câmbio pode, em tese, configurar lavagem”.

Sim, mas basta reler o exemplo usado no parágrafo anterior para perceber que naquele caso específico não houve utilização do dinheiro recebido como propina no Brasil para efetivar qualquer operação de câmbio (tipo dólar-cabo).

Se os valores tivessem sido entregues a um doleiro aqui para que fizesse a transferência no exterior, seria lavagem. Mas não foi o que ocorreu no exemplo citado.

Os valores recebidos em espécie não foram usados na operação internacional.

O exemplo bem mostra como é fundamental o nexo causal entre o ato que se quer chamar de lavagem e o efetivo produto do crime antecedente.

Para Godinho, “é indispensável demonstrar tal efectiva proveniência [do produto do crime antecedente], não bastando apurar que o agente manipulou bens cuja origem lícita não resulta clara”[1].

O festejado autor argentino Raúl Cervini é taxativo também a esse respeito:

El vínculo entre el bien que se pretende legitimar y el delito prévio ES ESENCIAL PARA LA CONFIGURACIÓN DEL LAVADO” (CERVINI, Raúl et alliEl delito de blanqueo de capitales de origen delictivo. Cuestiones dogmáticas y político-criminales. Córdoba: Alveroni Ediciones, 2008, p. 38).

Para Gustavo Badaró, celebrado professor da Universidade de São Paulo, “no caso de produto indireto da infração antecedente, a relação de causalidade entre o produto ilícito apto a ser lavado e sua origem infracional é condição necessária[2].

Sendo assim, a dificuldade de estabelecer relação de causalidade entre valores produto de crime e o ato que se quer inquinar de lavagem não permite condenação pelo crime acessório, sob pena de violação da cláusula do in dubio pro reo.

Por qualquer ângulo que se examine a questão, o precedente do STJ ora em comento definiu como lavagem de dinheiro hipótese que claramente não se enquadra nas figuras típicas da Lei 9.613/98, seja porque não se pode falar em lavagem da propina sem exaurimento (pagamento) da corrupção, seja porque os crimes praticados contra empresa estatal já são oficiais, não têm como ser lavados, representam no máximo benefício ilícito, distinção fundamental, que torna inapropriado cunhar o termo lavagem para designar a movimentação financeira feita com tais valores, introduzidos desde sempre, por essência, na economia formal, seja ainda porque não se pode falar em lavagem sem demonstração do nexo causal entre o bem que se pretende legitimar e a prática de crime prévio ou antecedente.

[1] GODINHO, Jorge Alexandre Fernandes. Do crime de branqueamento de capitais. Introdução e tipicidade. Coimbra: Almedina, 2001, p. 165.
[2] BADARÓ, Gustavo. Produto indireto de infração antecedente pode ser objeto do crime de lavagem. In: http://www.conjur.com.br/2016-jul-16/gustavo-badaro-proveito-infracao-objeto-lavagem (acesso em 17/9/2016).

O Deus da carnificina; ou oração aos homens

Oh, Deus todo poderoso, por que nos abandonaste? Tantas foram nossas súplicas. Tantos foram nossos chamados. Tantas orações e preces. Por que não nos ouviste. Onde estava o Todo Poderoso quando as prisões sem julgamento começaram a se banalizar?  Onde estava Vossa Santidade que não nos ouviu quando as pessoas estavam sendo levadas à força para depor em delegacias de polícia, nas chamadas conduções coercitivas? Onde estavas quando prisões começaram a ser usadas para extrair delações premiadas?

Por que nos abandonaste Deus, todo poderoso! Por ande andava o Altíssimo quando a lei que expressamente proíbe cumprimento de pena antes do trânsito em julgado foi dilacerada em nome do combate à corrupção? Quanto desamparo reinou sobre nós estes anos todos.

Onde estava nossa Luz Maior quando denunciamos os excessos acusatórios da Lava Jato e o abuso de autoridade que se alastrava como fogo em nome do combate ao crime, em especial, a corrupção? A propósito, onde estava nosso Pai quando o projeto do Senador Roberto Requião sobre o abuso de autoridade foi discutido? Onde estava nosso Deus maior quando seus enviados mais célebres propuseram um pacote medidas que lhes garantiriam carta branca para fazerem o que bem quisessem? E o Reitor? Onde estava nosso Todo Poderoso quando o reitor tirou a própria vida por causa de uma prisão absurda e ilegal? Oh Senhor, Altíssimo, onipresente e onipotente, como pôde permitir tanta miséria, tanta mazela, tanta iniquidade? Como pôde permitir que tantas reputações fossem arrasadas com vazamentos ilegais, sem tomar qualquer providência? Onde estava quando advogados começaram a ser colocados na mesma vala comum de seus clientes? Onde estava o senhor, todo Poderoso quando um juiz resolveu inverter a ordem, constrangendo Desembargadores e Ministros, julgando casos fora de sua jurisdição, fazendo as vezes de investigador, acusador e julgador? Como chamei pelo Senhor meu Pai!!!!

Eu entendo que agora estão atrás de ti, lhe causando aborrecimentos, me compadeço do sofrimento causado por buscas excessivas, talvez até abusivas, e de cerceamentos de Vossa Santa Liberdade e até de Vossa Imaculada Intimidade. Quantas vezes não suplicamos para que as fizesse cessar, para que não as deixasse triunfar, mas fomos respondidos com a soberba de quem detém o dom do justo absoluto, fomos achincalhados, desmoralizados e ridicularizados.

Entendo que agora o Senhor queira ouvir minhas preces, minhas orações e minhas Odes de amor a tudo que o senhor representa. Mas nestes anos todos, enquanto o senhor dormia, no regozijo dos que se intitulavam justos, e nos deixava à própria sorte, nós tivemos que lutar, lutar por um mínimo de respeito ao que sobrava do seu patrimônio moral e espiritual: o Direito, a Lei, a Constituição Federal e o Estado Democrático.

Fomos obrigados a trocar orações por luta diária. E agora, só agora, Santa Virtude, o Senhor nos faz o chamamento? Só agora queres a minha prece, o meu suplício? Não sei se creio mais no Senhor, Todo Poderoso, nem em ti, nem em nada. Não sei se não lhe perdi a fé. Ou, se ainda não lhe perdi completamente, quanto tempo levarei para recuperá-la?

Prefiro neste momento acreditar nos homens, frágeis homens, humanos, demasiadamente humanos, com seus erros e acertos, mas que durante todos estes anos não hesitaram em defender, com enorme sacrifício de sua paz pessoal, os princípios que o Senhor, Todo Poderoso, sempre pregou, princípios que me fizeram a professar sua fé, rezar na sua cartilha, amar-te como a ninguém mais.

Perdoe-me, Santa Dignidade, mas minha fé, hoje, está com eles, apenas e tão somente com eles, estes senhores de carne e osso, imperfeitos, que o defendiam enquanto o Senhor se esbaldava na ribalta da fama e dos aplausos fáceis.

Enquanto Vossa Plenitude colhia os louros por uma justiça de ocasião, eles velavam para que o Senhor, Deus, Todo Piedoso, pudesse continuar a existir. Fico com eles para salvar tua honra, fico com eles para preservar tua memória, fico com eles por amor incondicional a ti, meu Pai, Todo Poderoso, Esplendor maior do Universo e da Existência!

Delações premiadas estão no campo do obscurantismo

 

Presidente do Instituto de Direito de Defesa (IDDD), o advogado Fábio Tofic Simantob avalia que “a Lava Jato é a justiça dos holofotes, que é tão perversa quanto a justiça comum”, e enxerga “uma indústria de condenações”; ele defende, em entrevista à TV 247, que o papel essencial do advocacia deve ser o de denunciar os abusos e garantir os direitos e liberdades previstos na Constituição; “As delações premiadas estão no campo do obscurantismo e precisam ser regulamentadas”, diz.

O advogado Fábio Tofic Simantob concedeu entrevista à TV 247 nesta semana, abordando questões jurídicas referentes à prisão arbitrária do ex-presidente Lula, além de expor os excessos cometidos pela Operação Lava Jato. Para o advogado, “as delações premiadas estão no campo do obscurantismo e precisam ser regulamentadas”.

Ao analisar o processo contra Lula, Tofic Simantob afirma que, se o caso tivesse outro relator, Lula já teria sido colocado em liberdade. “Foi justamente o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin que julgou o processo de Lula, que se posiciona contra o trânsito em julgado”, relata.

Sublinhando as profundas divergências no tribunal, ele considera que, se o processo tivesse nas mãos dos juízes Marco Aurélio de Mello, Gilmar Mendes ou Celso de Mello, a liminar de habeas corpus poderia ter sido concedida a Lula, em vez de levada a exame por um plenário, quando era previsível imaginar que seria recusada.

“O mais grave da questão envolvendo o habeas corpus do ex-presidente é o fato de o pleno do STF não julgar a questão a da prisão em segunda instância no plano geral, mas apenas o mérito específico do processo de Lula”, analisa, referindo-se a personalização do caso.

Questionado sobre a origem do modelo jurídico da condenação sem provas, o advogado afirma, citando o ex-promotor de Justiça Roberto Tardelli, que a Justiça comum “é um rolo compressor de moer gente pobre”.

“A Lava Jato é a justiça dos holofotes, que é tão perversa quanto a justiça comum”, acrescenta, referindo-se a um universo que define como “uma indústria de condenações”. Sintetizando, Tofic diz: “a operação inaugurou a prisão para a delação premiada. O cárcere é uma forma de pressão para fazer o indivíduo delatar”.

Presidente do Instituto de Direito de Defesa (IDDD), entidade fundada por inspiração de Márcio Thomaz Bastos, primeiro ministro da Justiça do governo Lula e um dos grandes criminalistas brasileiros, Tofic acredita que o papel essencial do advocacia deve ser o de denunciar os abusos e garantir os direitos e liberdades previstos na Constituição. “A delação premiada precisa ser melhor regulamentada”, conclui.

Antecipar prisão é eliminar garantias sem resolver problemas estruturais

A decisão do STF de determinar a prisão do réu após a condenação em segunda instância atende a vários sentimentos da sociedade. O principal deles talvez seja apagar aquele gosto ruim de impunidade que o brasileiro identifica nos casos que se arrastam por anos nos tribunais. É cansativo mesmo ver tanta denúncia seguida de tanto julgamento que demora tanto até se transformar no cumprimento de pena. Isso quando se transforma em pena.

O processo civilizatório, no entanto, não passa apenas pela busca de medidas que acalmem a população, até porque nem sempre nos guiamos por um sentimento de justiça, mas, às vezes, por vingança pura e simples. Fosse diferente, nos revoltaríamos mais com os vários episódios de linchamento e chacinas registrados no país do que com a demora de um julgamento qualquer.

O avanço institucional ocorre quando construímos soluções que, mesmo contrariando a vontade popular, imponham alguma dose de racionalidade no modo de colocar limites ao Estado. E um dos limites mais racionais que precisamos estabelecer como sociedade é uma régua alta para garantir que o aprisionamento ocorra sempre que necessário, mas apenas quando necessário.

Está previsto que todos os casos graves terminem na cadeia desde que esgotadas as possibilidades de recurso. Fora isso, nem pensar. E por quê? Porque aprisionar é algo sério demais. Na escala de punições, só perde em gravidade para a pena de morte.

Na questão da prisão em segunda instância, criou-se uma falsa polêmica, como se houvesse o seguinte dilema: ou tem prisão em segunda instância, ou ninguém vai preso antes do julgamento definitivo. A polêmica é falsa porque, nos casos em que o acusado oferece perigo, pretende fugir ou colocou obstáculos ao processo, ninguém questiona que juízes e tribunais podem continuar prendendo antes do julgamento, na verdade antes até de iniciado o processo.

Sob esse aspecto, o Brasil não tem do que reclamar quando se compara com outros países. Ao contrário do que se diz por aí, é um recordista no uso da prisão provisória: 40% dos presos, algo em torno de 300 mil presos, não estão cumprindo pena, estão aguardando julgamento.

O que acontece com esses presos com a decisão do STF? Absolutamente nada. Essas pessoas vão continuar presas, altere-se ou não o entendimento do STF.

O que muda com a prisão em segunda instância é que, mesmo quem não se enquadra no perfil do preso preventivo, ou seja, pessoa que não oferece risco à ordem pública, não pretende fugir e não fez nada para obstruir o processo, alguém que, além de tudo, tem chance de ser inocentado, poderá ser preso antes do julgamento definitivo.

Por trás dessa vontade de prender antes da hora certa, está uma brutal distorção, um reendereçamento de responsabilidades. Decidiu-se punir o réu pela morosidade da Justiça. Não há, por trás do debate, nenhum problema filosófico, mas prático. Réus costumam recorrer de suas condenações. Recursos no Brasil costumam demorar para ser julgados. A sociedade tem pressa para ver a sentença cumprida. Conclusão: o réu tem que ser preso antes do julgamento do recurso.

O cerne do problema, portanto, não é a presunção de inocência, mas a demora que os tribunais levam para examinar os recursos do réu solto. Por que então não resolver o problema da demora? Mas não, em vez de o Judiciário procurar resolver os gargalos administrativos e burocráticos, talvez até criando mais vagas de juízes para dar conta do excesso de trabalho e assim conseguir julgar com mais rapidez o recurso do jurisdicionado, a solução encontrada é mitigar, flexibilizar, fazer um ajuste numa cláusula pétrea da Constituição Federal.

É preciso mais sobriedade e informação nesse debate. É preciso enxergar que mais do que prender este ou aquele réu, o Judiciário está eliminando um direito do cidadão, para não ter que corrigir as próprias mazelas. Para os que invocam a experiência de outros países, é forçoso indagar: algum outro país civilizado resolveria dessa forma seus problemas estruturais, eliminando cláusula pétrea da Constituição como forma de aliviar a própria ineficiência?

 

Sementinhas de um mundo novo

O interrogatório é uma oportunidade para o réu se defender das suspeitas ou acusações que recebe. Diante das perguntas formuladas pelo Ministério Público que o denunciou, por exemplo, pode se calar, sem que isso seja usado contra ele. É o chamado direito ao silêncio, uma garantia constitucional contra a autoincriminação. O réu deseja confessar um crime ou dar explicações que esclareçam sua inocência? Direito dele de falar. Sente-se injustiçado num processo e compreende que suas palavras não irão ajudar? Direito dele de ficar quieto.

E é assim que as coisas devem ocorrer no curso de um interrogatório. As partes perguntam o que entendem apropriado, o juiz intervém quando identifica indução, irrelevância ou repetição e o réu decide o que vai falar ou se vai falar.

Pois bem, deu aqui no Migalhas que, revoltado num interrogatório com o fato de o réu se recusar a responder às suas perguntas, um procurador da República classificou seu silêncio, em alto e bom som, como “atitude covarde da defesa”. Repetindo, mas de outra forma, para ficar bem claro: um integrante do Ministério Público Federal, cuja missão é “promover a realização da Justiça, a bem da sociedade e em defesa do estado democrático de direito” (trecho extraído do site oficial do MPF) se sentiu à vontade para se insurgir contra a decisão de um cidadão de exercer uma prerrogativa constitucional.

Já houve, anos atrás, quem sustentasse em letra escrita para quem quisesse ler (veja neste sentido pareceres subscritos pelo Procurador da República Manoel Pastana em inúmeros habeas corpus impetrados pelas defesas de réus na fase Juízo Final da Operação Lava Jato), que a prisão preventiva era necessária para acelerar acordos de delação. Pegou tão mal que o procurador nunca mais emitiu um “a” sobre o assunto, e o discurso passou a ser o de negar a relação entre uma coisa e outra. Isto foi quando a Força Tarefa de Curitiba estava em campanha aberta, com site e tudo, construindo cuidadosamente o discurso com qual granjearia seus milhares de fãs Brasil afora.

Agora, numa fase mais avançada, com a marca mais consolidada, alguns procuradores decidiram pisar de vez no acelerador, beirando o sincericídio, chegando ao cúmulo até de protagonizar cenas inimagináveis, algumas com powerpoint, outras sem, como neste caso. Se é grave que tenha ocorrido, mais grave ainda é imaginar que abusos como esse se repetem aos montes pelo país. Às vezes nas redes sociais, com opiniões sobre qualquer coisa que lhes desagrade, às vezes em plena audiência, desabafando contra o que provavelmente considera um penduricalho constitucional, algo que em sua visão de mundo serve apenas para atravancar e atrasar o encarceramento. Ué, cometeu o crime, tem que ir para cadeia. Para quê, defesa? Como assim um réu que não fala? Veio fazer o quê aqui? Impedir o andamento da justiça?

Pode parecer que não, mas o direito ao silêncio não é invenção dos poderosos, dos corruptos ou dos políticos, pelo contrário, foi concebido como arma do cidadão comum contra o abuso dos agentes do Estado, o que, aí sim, ajuda a explicar a revolta do Procurador. Trata-se de um princípio que está na Constituição americana, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, na Convenção Americana de Direitos Humanos, na Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis e Degradantes, da ONU, e na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, da OEA. Ah, algo menos importante em tempos de Lava Jato, mas está também na Constituição Federal Brasileira de 1988.

O procurador resolveu desabafar, chamando de covarde a defesa que orienta o réu a ficar em silêncio nas perguntas do acusador, covarde o réu que só responde às indagações do juízo e dos advogados. Covarde. Exato. Foi este o termo exato que sua excelência usou. Covarde.

Felizmente (esperando que não só desta vez), a revolta do procurador não passou de esbravejo. No final, o procurador até que se mostrou um sujeito razoável, não usou de violência, não bateu na mesa, não ameaçou prender o réu, nem seus filhos ou familiares, tampouco lhe ocorreu mandar levar preso o advogado por obstrução de justiça. Manifestou apenas o sonho de um mundo melhor e mais justo, afinal a liberdade de manifestação é um princípio constitucional, e ninguém é proibido de sonhar.

Atitudes como a do procurador precisam ser apontadas e discutidas à exaustão, porque pode não ter tido efeito prático naquele caso, até porque o advogado que patrocinava a causa, o renomado e prestigiado Alberto Zacharias Toron não deixou por menos, reagiu à altura com argumentação afiada e substanciosa. Mas a sementinha foi plantada. A sementinha dos fins justificando os meios, agora na versão Ministério Público. Neste Brasil, que ainda é alvo de várias denúncias internacionais por tortura, certamente não faltarão agentes públicos dispostos a levar adiante este projeto de futuro sonhado pelo procurador.

O que preocupa é como seria a versão armada desta cena. E se o guarda da esquina, sim, o guarda que usa arma de fogo, começa a aplicar este ideal de justiça por aí? Sim, aquele guarda da esquina que já era motivo de preocupação de Pedro Aleixo, a ensejo da edição do AI5, quando tornou célebre a frase: “Presidente, o problema não é o senhor e nem os que com o senhor governam, o problema é o guarda da esquina”.

O representante do MP pode não ter percebido, ou se percebeu não teve a coragem ou a vontade necessária naquele momento, mas profetizou as bases de um mundo novo, diferente, menos formalista, quem sabe sem advogados, recursos e defesas, sem lei também, algo mais efetivo e moderno, algo mais adequado aos novos tempos. Se o sonho vingar, terá saído da audiência para entrar na história, com um tiro bem no peito da Constituição e do nosso combalido Estado de Direito.

Como o réu é culpado, não é preciso provar a culpa

Fui convidado no ano passado a integrar respeitado grupo de juristas e advogados que escreveria sobre a condenação do ex-Presidente Lula no caso conhecido como triplex. Li e analisei detidamente a sentença, mas na época acabei recusando o honroso convite, por falta de tempo para me dedicar ao projeto com o esmero que a missão exigia.

Agora, já com mais calma, e aproveitando o ritmo mais lento que esta época do ano nos proporciona, procuro, nestas rápidas linhas, compartilhar as conclusões que, penso eu, interessam – ou deveriam interessar – a qualquer estudioso ou curioso do direito penal. A intenção deste artigo não é fazer uma defesa incondicional, muito menos política do ex-Presidente, mas uma análise técnica da sentença. Tanto é assim que os fatos que serão levados em consideração são aqueles que a própria sentença adota como verdadeiros, e não aqueles que constam na versão de interrogatório do ex-Presidente. Não estudei os autos, tão somente a sentença.

De acordo com a análise aqui feita, importa menos se o tríplex pertence ou não ao ex-Presidente, e mais a relação do imóvel com algum ato de corrupção.

O ex-Presidente Lula foi acusado de corrupção porque, nas palavras da sentença, a empresa OAS lhe teria pago propina em virtude de contratos ilícitos com a Petrobras. Afirma a sentença que “os valores teriam sido corporificados com a DISPONIBILIZAÇÃO ao ex-Presidente do apartamento 164-A, triplex, do Condomínio Solaris (…) sem que fosse cobrada a diferença de preço (…)”. O imóvel ainda “… teria sofrido reformas e benfeitorias a cargo do Grupo OAS para atender ao ex-Presidente”.

Tomando emprestado feliz expressão de HASSEMER, o jurista olha o fato criminoso pelas lentes do tipo penal. Logo, nenhuma outra análise interessa a este caso que não seja pelo prisma do artigo 317 do Código Penal Brasileiro.

O tipo penal do artigo 317 comina pena de 2 a 12 anos àquele que “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.

O crime de corrupção passiva contém duas elementares principais, a vantagem indevida, e uso da função pública, o que alguns chamam de ato de ofício. Ato de ofício é o ato próprio da função pública que, por vantagem econômica indevida, o agente aceita praticar. Alguns julgados, no entanto, têm diminuído a importância desta circunstância na hora de condenar, contentando-se com o fato de a vantagem ter sido obtida em razão da função pública, algo bem mais genérico.
Independentemente do entendimento que se tenha, numa coisa a jurisprudência é unânime: se a corrupção precisa estar relacionada com a função pública, por uma questão lógica, só é crime se o agente aceita promessa de vantagem antes ou enquanto ocupa a função, jamais depois.

A questão crucial do processo, portanto, era saber, primeiro, se o Presidente solicitou, aceitou ou recebeu promessa de vantagem de qualquer natureza da empresa OAS no período em que era Presidente; segundo, se o fato estaria relacionado ao exercício da função pública; terceiro, se o Presidente teria ofertado em contrapartida vantagem a algum agente privado (o chamado ato de ofício), e quarto, se há prova de que sabia dos ilícitos na Petrobras ou dos acertos de contas de Leo Pinheiro e Vaccari.

Ocorre que se extrai da própria sentença duas premissas que infirmam a possibilidade de crime. Primeiro é no trecho do depoimento de LEO PINHEIRO onde afirma que quando adquiriu a BANCOOP, lhe foi dito que o tríplex era de Lula. Ora, se isto for verdade, como a sentença adota que é, então não foi a OAS que lhe deu o imóvel de presente, fazendo assim ruir uma das premissas da acusação.

Restaria então questionar as reformas feitas no imóvel em 2014. Bom, em 2014, Lula já não era mais presidente fazia alguns anos. O que não impede, é forçoso reconhecer, que durante o exercício da função pública alguém pudesse lhe ter feito uma promessa de vantagem que só seria cumprida anos depois. Havendo prova disto, responde o agente público por corrupção.

Sucede que a sentença não aponta prova nesta direção. Muito pelo contrário, de acordo com a sentença, a decisão de dar a reforma de presente ao ex-Presidente foi tomada apenas em 2014. Em conversa entre LEO PIHEIRO e VACCARI em 2014, citada na sentença, aquele lhe indaga quem afinal iria arcar com as despesas da reforma.

Ora, se a reforma, ou o valor correspondente a ela fizesse parte de algum acerto de propina da época em que Lula era Presidente, esta pergunta seria totalmente despropositada.
Mais emblemática ainda é a resposta que, segundo LEO PINHEIRO, VACCARI teria lhe dado na ocasião.

“… eu levei para o Vaccari e isso fez parte de um encontro de contas com ele, o Vaccari me disse naquela ocasião que, como se tratava de despesas de compromissos pessoais, ele iria consultar o presidente, voltou para mim e disse ‘Tudo ok, você pode fazer o encontro de contas’, então não tem dúvida se ele sabia ou não, claro que sabia” (fls. 128).

O relato de LEO PINHEIRO mostra que seu acerto original com VACCARI não envolvia custeio de despesas pessoais de Lula, e que o ajuste final sobre bancar as benfeitorias no tríplex ocorreu apenas em 2014, e não na época em que ocupava função pública. Revela, ademais, que o acerto foi feito entre LEO PINHEIRO e VACCARI, não com o ex-Presidente. Premissas que extraio, repito, da própria sentença.

Mesmo tomando como verdadeiro o depoimento de LEO PINHEIRO, quando reporta a ocorrência do citado diálogo com VACCARI, não há prova alguma – não pelo menos apontada na sentença – de que VACCARI tenha de fato tratado do assunto com o ex-Presidente. Isto sem dizer que LEO PINHEIRO prestou depoimento na qualidade de réu, não como testemunha, logo, sem compromisso de dizer a verdade.

Seja como for, nada na sentença demonstra que Lula tivesse aceito promessa de coisa alguma antes de 2014. Não estamos dizendo que não aceitou, apenas que a sentença não o demonstra, o que em um julgamento penal é exigência indeclinável.

Questionável, reprovável, condenável moralmente um ex-Presidente aceitar de presente um mimo de uma empreiteira? Se for verdade, nos parece censurável. Mas não crime, não pelo menos de acordo com a lei brasileira.

Não se conhece, porém, na história da jurisprudência brasileira um único caso em que o agente público é condenado por aceitar pequenos favores anos depois de deixar a função pública.
O método interpretativo da sentença não é baseado em prova, o que fica claro quando diz no item 850 que como o ex-Presidente não forneceu nenhuma explicação hábil para a reforma, então se conclui que é propina, revelando que, no frigir dos ovos, opera com presunções que, de mais a mais, acabam por gerar uma das mais odiosas arbitrariedades que um julgamento penal pode cometer, a inversão do ônus da prova, relegando à defesa o papel de provar a inocência, e retirando da acusação o ônus de provar a culpa.

De mais a mais, a indagação do porquê alguém faria esta cortesia ao ex-Presidente em 2014 não parece enfrentar obstáculos sérios para achar uma resposta. Ora, parece óbvio que agradar um dos homens mais poderosos e influentes do país, ainda que não ocupasse função pública, não era algo que se devesse negligenciar de acordo com a mentalidade vigente no setor na época em que ocorreram os fatos.

Por outro lado, o único ato próprio da função que a sentença atribui ao Presidente é um ato lícito, ter dado a palavra final na nomeação de diretores para a Petrobras. Ainda assim, para condená-lo por corrupção a sentença não poderia se desincumbir do dever de mostrar que, ao nomear este ou aquele diretor, Lula já arquitetava usá-los para favorecer as empresas, cobrando-lhes propina, como contrapartida.

Para superar este obstáculo argumentativo, a sentença recorre a um método retórico que pode passar despercebido a um leitor desatento, mas não resiste a uma análise mais acurada. Hipóteses ainda sujeitas a comprovação foram tratadas na sentença como verdades absolutas, como se já tivessem passado pelo escrutínio da prova.

Este método foi usado em dois momentos decisivos da sentença. O primeiro foi no item 857, onde afirma que, “como foi provado o crime de corrupção”, é irrelevante discutir se Lula “tinha ou não conhecimento do papel específico dos Diretores da Petrobrás na arrecadação de propinas”. A sentença, primeiro, parte da premissa de que o réu cometeu o crime de corrupção para depois concluir que, portanto, sabia dos ilícitos. A equação está claramente invertida. Com este estratagema a sentença se desincumbiu, como que em um passe de mágica, de demonstrar o dolo.

É como se o juiz dissesse “como o réu é culpado, não é necessário provar a culpa”. O mesmo método se repetiu no item 890, quando a sentença volta a usar o mesmo sofisma, afirmando que “tendo sido beneficiado materialmente de parte de propina decorrentes de acerto de corrupção em contratos com a Petrobras (…) não tem como negar conhecimento do esquema criminoso”.

Não existe crime de corrupção, a menos que o agente tenha atuado com dolo (consciência e vontade).

Logo, a sentença jamais poderia ter afirmado que “pelo fato de ter sido beneficiado não tem como negar que sabia”, porque está dizendo que o elemento subjetivo do tipo se presume, não precisa ser provado. É como se dissesse que alguém pode ser responsabilizado criminalmente mesmo sem culpa.

Semelhante forma de proceder não guarda paralelo nem mesmo com outros julgamentos realizados em Curitiba. A Lava Jato se tornou conhecida por inovar no exame da culpabilidade, aumentando a hipótese de incidência do chamado dolo eventual, até por buscar introduzir no Brasil conceitos estrangeiros como o da cegueira deliberada, mas é inédito inclusive na Operação Lava Jato uma sentença que simplesmente se desobriga de provar o dolo (conhecimento e vontade).

Em suma pela atenta leitura da sentença, se extraem algumas conclusões. Nenhuma prova é citada no sentido de que Lula tenha aceito promessa de vantagem enquanto era Presidente da República. E ato ilegal algum lhe é atribuído, a não ser ato de nomear diretores para a Petrobras sem demonstração de conhecimento ou ciência dos mal feitos praticados por eles, e muito menos de algum ato, gesto ou conduta praticado pelo ex-Presidente no sentido de favorecer ilegalmente alguma empresa.

Eis, pois, nossa pequena contribuição para este debate em torno deste caso específico (nenhuma análise fizemos de outros casos envolvendo o ex-Presidente), um caso circundado por paixões de lado a lado. Como dissemos no início, a preocupação aqui foi menos entender o fato histórico, fugindo inclusive da controvérsia colocada na mídia, focada em discutir se o tríplex é ou não é do Lula, e muito mais analisar os fundamentos jurídicos usados na sentença para condenar, único interesse que, a juristas e advogados, o caso deve ou deveria suscitar.

Não custa lembrar que o julgamento penal exige provas e exige certeza, ou algo próximo disto. A dúvida gerada pela falta de provas permite no máximo um julgamento moral, e o julgamento moral não cabe entre as paredes apertadas do tribunal; pertence às ruas, à política, enfim, às urnas.

Um grande desafio colocado sobre os ombros dos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª região, juízes experientes, técnicos e cultos, a quem desejo sorte e altivez de espírito para enfrentarem com destemor a horda das ruas.