Investigações subterrâneas

Causou grande impacto a fala de Augusto Aras em webinar do grupo Prerrogativas, mencionando que a força-tarefa de Curitiba possui um banco de dados sigiloso com informações de 38 mil pessoas.

Há alguns anos, o STF colocou uma pá de cal na questão dos poderes investigatórios do Ministério Público, decidindo que o MP pode investigar. O problema é que esse poder nunca recebeu regulamentação legal à altura de sua envergadura.

Para investigar um fato, o delegado de polícia, por exemplo, precisa instaurar oficialmente um inquérito e prestar contas ao Ministério Público ou ao juiz a cada 30 dias.

Trata-se de portentosa arma contra a prevaricação do agente público, uma proteção do cidadão contra os caprichos do agente estatal.

A grande questão é: e no caso de investigações que correm dentro do MP, quem as fiscaliza?

Questionado sobre isso na webinar, o procurador-geral aludiu a uma série de resoluções do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) que, de acordo com ele, dão o devido tratamento à questão.

De fato, as resoluções existem e buscam solucionar o impasse, mas ainda regulam a questão de forma bastante insatisfatória, não prevendo formas rigorosas e periódicas de controle dos atos de investigação por um órgão superior e muito menos pelo Judiciário.

A obrigação do delegado de prestar contas ao MP e ao juiz não existe no caso dos procedimentos que tramitam direto no MP. Como o MP não presta contas periódicas de investigações a ninguém, um caso pode ter diligências das mais estapafúrdias ou permanecer parado anos a fio sem uma única diligência realizada. É um poder de vida e de morte sobre a investigação, incompatível com os princípios democráticos.

O mais grave, porém, é quando alguns acabam adquirindo o costume, ou fetiche, de ficar colecionando peças de um quebra-cabeça imaginário, na esperança de um dia conseguirem aproveitá-las contra alguém.

É no subterrâneo dessa espera, muitas vezes impaciente, que correm as águas profundas da atividade investigatória ilegal, sem qualquer escrutínio ou fiscalização de um órgão superior ou do Judiciário.

É nesse emaranhado de peças esparsas sem proveito imediato que se escondem as investigações secretas, pelas quais uma pessoa pode ser investigada por tempo indeterminado, sem ter meios de obter informações —e, por vezes, sem que haja sequer registro do procedimento no sistema eletrônico do MP, em clara violação das normas constitucionais e da súmula vinculante nº 14 do Supremo, que garante a todo investigado o acesso aos autos do procedimento investigatório.

É, ainda, sob o manto desse excedente investigatório que informações são trocadas de forma não oficial, ou em off, e descartadas ou usadas a bel-prazer de quem as manipula —práticas, ao que parece, adotadas pela força-tarefa de Curitiba, conforme revelado pelo site The Intercept, no dia 10 de agosto de 2020, em reportagem intitulada “Foi passado em off”.

Os 38 mil nomes mencionados por Aras, portanto, são apenas uma face do problema, a ponta do iceberg. É preciso regulamentar os procedimentos criminais do Ministério Público de modo a dar maior transparência a essa poderosíssima atividade do Estado, compatibilizando-os com as regras do Estado democrático de Direito.

O Ovo da Serpente

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, virou persona non grata no Palácio do Planalto ao proibir a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal. O ministro argumentou que o ato de nomeação de um amigo da família presidencial estava contaminado por desvio de finalidade em “inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”. Logo veio a resposta. No dia seguinte, o presidente da República Jair Bolsonaro disparou uma saraivada de críticas e até ameaças contra o STF e Moraes.

Adotou a mesma postura com relação a Celso de Mello – depois que o ministro tornou público o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril e pediu uma avaliação da Procuradoria-Geral da República sobre a conveniência de apreender o celular do presidente. Atacou outra vez Moraes, quando este autorizou um conjunto de mandados de busca e apreensão em endereços de pessoas próximas ao presidente. Depois que seus apoiadores promoveram uma chuva de fogos de artifício sobre a sede do STF, Bolsonaro tentou suavizar seus ataques ao tribunal, enviando até uma comitiva a São Paulo para conversar em privado com Moraes. Fez isso movido pelo temor de que decisões futuras do tribunal possam lhe prejudicar, e não porque adquiriu um súbito respeito às funções dos ministros.

A animosidade do presidente contra o STF, contudo, é anterior a esses fatos. Todos se lembram da fala do deputado federal Eduardo Bolsonaro (SP) de que bastavam um cabo e um soldado para fechar o Supremo. O STF costuma ser o alvo preferencial também de apoiadores do presidente, que gostam de se juntar na rampa do Planalto para atacar a democracia e a Justiça, e até se aglomeraram à porta do STF com máscaras e tochas na mão – uma encenação sinistra inspirada em bandos fascistas do passado. O presidente não censura esses atos. Pelo contrário, estimula-os.

O presidente tem uma visão distorcida, quando não infantilizada, a respeito do Supremo e do ofício de julgar. Mas não é apenas a imaturidade psicológica que o impede de compreender o sentido da Justiça para além de algo que lhe favoreça no momento oportuno. Muito tempo antes de assumir a Presidência, Bolsonaro já praticava ataques à democracia e às instituições democráticas, recorrendo a um discurso que, em outros tempos, costumava desqualificá-lo de imediato para o debate político. Algo aconteceu no Brasil nos últimos anos que permitiu que esse discurso deixasse de ser visto como caricato e ganhasse a atenção de parte dos brasileiros.

A crise das esquerdas e do PT pode ter contribuído para o fortalecimento da direita, mas isso não seria suficiente para cacifar alguém do talhe de Jair Bolsonaro, tanto mais que havia várias outras opções eleitorais, nas diferentes esferas da vida política. O que de fato mudou o cenário foi a Operação Lava Jato, na qual o discurso do presidente encontrou solo fértil. Não me refiro aqui a essa ou àquela condenação gestada em Curitiba, mas sim ao proselitismo antissistema que encontrou eco entre muitos, propagando-se para fora dos autos – na imprensa, em artigos e entrevistas. Foi uma luta de guerrilha. Sergio Moro não virou ministro por causa de Jair Bolsonaro. Foi Bolsonaro quem pegou carona no discurso de Moro.

Em diversos momentos, procuradores da Lava Jato deixaram seus afazeres em Curitiba para empreender campanhas contra a classe política e a cúpula do Poder Judiciário. Os direitos e garantias fundamentais foram demonizados, a Constituição foi transformada em reles escudo para delinquentes. Esse discurso já se difundira, de certa forma, em parte da opinião pública, sendo usual ouvi-lo até mesmo da boca de participantes de programas de rádio e televisão. Foi com Moro e a Lava Jato, entretanto, que encontrou o “refinamento” social de que precisava para penetrar nos salões de baile da sociedade brasileira.

O bastão moral que Bolsonaro empunhou para vencer as eleições foi o da cruzada antissistema ou da luta contra tudo que está aí, principalmente contra os direitos e liberdades. Suas manifestações contra o stf, portanto, vão muito além de uma discordância de momento. Visam atacar a própria observância e o respeito às liberdades garantidas na Constituição.

Bolsonaro disse uma vez, num arroubo absolutista nos moldes atribuídos a Luís xiv, que “eu sou, realmente, a Constituição”. É natural, e até legítimo, que ele tenha um senso de justiça próprio. Cada um tem o seu. O ser humano não nasce com capacidade inerente para descrever os fenômenos físicos da natureza, mas bastam alguns anos de vida para já se achar apto a dizer o que é justo e o que não é. Durante muito tempo, vive num mundo binário, maniqueísta, onde justo é tudo o que lhe agrada, e injusto, tudo o que lhe prejudica. Mesmo quando chegam à vida adulta, quase todas as pessoas pressupõem que ser justo é tomar partido. Isso fica evidente quando há um conflito entre nações: a questão não é qual país é o mais justo, mas, sim, de que lado estamos.

Esse sentimento comum a todo ser humano é tão poderoso que as próprias instituições jurídicas o solicitam em determinadas situações. Algumas sociedades democráticas até hoje confiam a jurados, homens e mulheres escolhidos aleatoriamente entre pessoas comuns, a tarefa de julgar um réu, a partir da avaliação de determinados fatos e provas. No Brasil, são pessoas comuns que julgam casos de homicídio e outros crimes dolosos contra a vida.

O filósofo suíço Henri-Frédéric Amiel (1821-81) disse que um físico, um químico, um matemático e um jurista são capazes de dar respostas tão justas aos problemas da alma humana como as que daria um barbeiro. Mas, se todos estão habilitados a emitir juízo sobre o justo e se há tantos juízos justos diferentes e até antagônicos, de onde vem a legitimidade de uma Suprema Corte numa sociedade democrática? Por que confiar a onze ministros, ou, em maior escala, a milhares de juízes de direito, o poder de dizer o que é justo para toda uma nação? Ocorre que julgar o próprio direito é tarefa de especialistas. Não é a mesma coisa que fazem os jurados ao examinar os conflitos da alma humana ou afirmar a ocorrência de fatos criminais. A aplicação do direito exige aprendizado teórico e técnico, e não deve por isso ficar sujeita à noção de justiça que emana do senso comum.

Essa forma de enxergar o julgamento técnico é antiga. Aristóteles, no prólogo de Ética a Nicômaco, alertou que, em questões gerais da vida, o bom juiz é o que dispõe de cultura geral, mas, no que diz respeito a um domínio determinado, o julgamento deve ser feito por especialistas. O juiz de direito não recebe o cargo para julgar de acordo com sua cultura geral, suas convicções íntimas ou sua forma especial de ver o mundo, como às vezes se acredita. A aprovação em concurso público lhe confere salvo-conduto para aplicar o direito de acordo apenas com o conhecimento técnico-jurídico que aprendeu na universidade. Para ingresso na magistratura, a prova é de direito, e não de cultura geral ou de senso de justiça. Até para ser nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal o requisito fundamental é ter notório saber jurídico, e não um senso de justiça aguçado. O juiz é um especialista, como é o advogado, o dentista ou o veterinário.

Investido, como juiz, do poder de aplicar a lei e nada mais do que isso, Moro tornou-se a figura do juiz rebelde, do juiz símbolo da subversão da letra fria da lei, do herói combatente das injustiças que, no seu entender, cismam em permanecer incrustadas como parasitas nos textos legais. As regras que estabelecem onde um caso deve ser julgado – se em Curitiba ou em Brasília, por exemplo – foram jogadas para debaixo do tapete. A capital do Paraná se tornou o lugar do juízo universal do combate à corrupção, com prisões sendo decretadas aos borbotões como antecipação de pena, com o objetivo de forçar delações premiadas. Em um dos primeiros habeas corpus que chegaram ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, questionando a legalidade de dez prisões decretadas por Moro, um procurador da República, Manoel Pastana, deixou escapar que a prisão estava sendo usada para extrair confissões.

O próprio Moro, em artigo publicado em 2004 no qual faz uma análise da Operação Mãos Limpas, ocorrida na Itália, antecipava alguns métodos que seriam empregados dez anos mais tarde pela Lava Jato. Ele diz, por exemplo, que o combate à corrupção passava necessariamente por um exercício de deslegitimação do sistema vigente – o que se traduziu na deslegitimação de todos aqueles que não aceitassem se dobrar aos métodos da sua futura investigação. Aludia ainda aos “juízes de ataque” – pretori d’assalto, como se diz na Itália –, prontos a usar a caneta para espalhar seu senso de justiça à população. Era como Trussótzki, o bufão do romance O Eterno Marido, de Dostoiévski, que creditava as grandes ideias da humanidade a sentimentos profundos, e não ao conhecimento adquirido ao longo de séculos.

Moro era a própria encarnação do juiz de ataque. E ai do desembargador ou do ministro que ousasse questionar esses métodos. Eram logo apontados como defensores da corrupção, amantes da impunidade, arautos dos poderosos. Teriam que enfrentar a fúria da opinião pública, mobilizada rapidamente feito tanques Panzer, pilotados por integrantes da força-tarefa da Lava Jato. O direito virou refém do arbítrio dos justos.

A estratégia de deslegitimar o direito e os sistemas jurídico e político tornou-se, a certa altura, tão militante, que alguns procuradores passaram a atacar ministros do STF mesmo em casos em que não atuavam. Em 3 de julho de 2016, Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos, dois dos principais integrantes da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, assinaram um artigo no jornal Folha de S.Paulo atacando o Supremo por causa de um habeas corpus concedido a um réu que respondia a processo em São Paulo.

O artigo comparava a decisão ao salto duplo twist carpado da ginasta brasileira Daiane dos Santos e, de maneira velada, levantava uma série de suspeitas sobre os motivos que teriam levado o STF a conceder o habeas corpus. Aproveitando- se da raiva da opinião pública e da incompreensão que esta tinha da matéria jurídica, os procuradores buscaram deslegitimar o papel do stf como garantidor de liberdades individuais, criando uma espécie de ruptura entre a sociedade e a Corte. O direito passou a ser visto como a trava que impedia o país de prosperar, o obstáculo para alçá-lo a outro nível de civilização. Como se, para progredir, o Brasil precisasse ultrapassar o direito, deixar que os justos reescrevessem as leis e a Constituição.

Bolsonaro é o subproduto político dessa visão de mundo.

Não deixa de ser curiosa a indignação de Jair Bolsonaro com a decisão de Alexandre de Moraes. Ele acusa o ministro de usar sua caneta de juiz para corrigir injustiças de outro poder da República, o Executivo, exatamente o tipo de decisão que, como deputado e depois como candidato, aplaudia com fervor. Agora, exige que o Judiciário adote postura inversa àquela que o ajudou a chegar ao Palácio do Planalto. Guia-se pela famosa frase atribuída a Getúlio Vargas, que poderia ser assim atualizada: “Aos meus inimigos, os mais profundos sentimentos de justiça do juiz Moro; a mim, a lei.”

Cabe ao STF julgar a validade do ato administrativo de nomeação feita pelo presidente da República, caso haja indícios de desvio de finalidade. O chefe do Executivo não poderia, por exemplo, nomear um filho para cargo público. Se o fizesse, ninguém censuraria a decisão do STF de anular a nomeação. Portanto, é cabível discutir se o ministro Alexandre de Mores acertou ou errou ao barrar a nomeação de Ramagem, mas é um casuísmo classificar sua decisão como “ativismo do stf”. Nem toda decisão errada é ativismo.

Em novembro de 2018, quando a ministra Carmem Lúcia deferiu liminar em ação proposta pela Procuradoria-Geral da República, suspendendo o decreto de indulto editado por Michel Temer, o presidente eleito Jair Bolsonaro não teceu uma única crítica ao stf, nem disse que o Supremo estaria invadindo a esfera do Executivo. O silêncio tinha razões óbvias. Bolsonaro é contra o indulto, salvo se estiver afinado com sua ideologia – como o que concedeu a policiais em 2019. Situação parecida ocorreu quando o ministro Luiz Fux suspendeu a parte do pacote anticrime que institui o juiz de garantias. Apesar de ter sancionado o artigo que previa esse tipo de juiz, Bolsonaro não tinha nenhuma simpatia pela proposta, que separa o juiz da investigação do juiz do julgamento – a antítese do que Moro sempre representou. De novo, Bolsonaro não deu um pio contra a decisão do STF.

Também não fez nenhum reparo ao Supremo quando Dias Toffoli, presidente da Corte Suprema, deferiu liminar suspendendo todas as investigações de lavagem de dinheiro no país baseadas em relatórios de informação financeira do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Nem poderia criticar, pois a medida atendeu a um pedido formulado por seu filho e senador, Flavio Bolsonaro, investigado no Rio de Janeiro por suposto crime de “rachadinha”, o confisco ilegal de parte dos salários dos funcionários de seu gabinete parlamentar. Tampouco o inquérito das fake news recebeu qualquer espécie de crítica do presidente – até o momento em que se voltou contra seus correligionários.

Extremistas de direita e de esquerda podem espernear, mas, no final das contas, todos querem se agarrar à Constituição para proteger seus direitos. E isso ocorre porque uma Constituição não existe apesar dos conflitos sociais, mas por causa deles. Mau sinal é quando juízes caem na tentação de atender a certas expectativas sociais do momento em detrimento das liberdades.

Para o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, não há justiça na história. O que não quer dizer que estão todos desculpados. O juiz rebelde dos séculos XVIII ou XIX – que se opunha às injustiças de um ordenamento jurídico opressor, construído sem a participação política da maioria da população – nada tem a ver com o juiz de assalto que Moro cita no artigo de 2004, um magistrado que se arroga o poder de cassar direitos e liberdades inscritos na Carta da República. Já não vivemos no século XVIII. O regime escravocrata dava espaço de participação política para apenas uma minoria, que governava o restante da população com mão de ferro, fazendo da lei um instrumento de opressão. Descumpri-la, portanto, era a única forma de enfrentar a tirania.

Hoje não. Nossa época é a “era dos direitos”, na definição do filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004). O Estado moderno não é somente democrático, mas também de direito.

O Parlamento é a mais sofisticada forma de representação democrática que o ser humano foi capaz de criar, apesar de suas limitações. A principal delas é que não consegue resolver problemas individuais, pois as leis são feitas com vistas ao interesse coletivo, de toda a sociedade ou da maior parte dela, sem se ater ao que diz respeito a um único indivíduo, especificamente. A segunda limitação do Parlamento é que essa instituição, por mais democrática que seja, nem sempre representa os interesses da sociedade inteira, mas apenas da maioria.

A Corte Constitucional moderna – no Brasil, o Supremo Tribunal Federal – serve principalmente para garantir que um indivíduo, mesmo que ele não disponha de representação no Parlamento, possa ter seus direitos garantidos. Por isso vemos, em boa parte do mundo, as supremas  cortes descriminalizando o uso de certas drogas e legalizando o aborto. Estão fazendo o que o processo político muitas vezes não consegue: ampliar e garantir liberdades individuais.

Imagine um país onde uma das cláusulas pétreas – aquelas que, em nenhuma hipótese, podem ser alteradas – é o direito de os homens usarem roupas de todas as cores. A certa altura, porém, resolve-se fazer um plebiscito para proibir o uso de roupas cor-de-rosa por homens, e toda a população, exceto um cidadão, vota a favor da nova lei. O STF existe para garantir que aquele único cidadão possa continuar usando trajes cor-de-rosa sem ser preso, mesmo que isso contrarie a vontade da maioria. A Corte pode autorizar o uso depois de julgar seja uma ação direta de inconstitucionalidade da nova lei (ação que só algumas autoridades, organizações ou entidades estão autorizadas a propor, como o presidente da República, partidos políticos e a Ordem dos Advogados do Brasil), seja um pleito individual movido pelo cidadão proibido de usar cor-de-rosa. A decisão favorável a ele repercutirá em todo o sistema de justiça penal, permitindo que outros homens usem a mesma cor, caso queiram.

A união homoafetiva, reconhecida pelo STF há alguns anos, pode agredir a moral de determinada comunidade, mas ninguém em sã consciência cogita entrar com ação pedindo a anulação do casamento de dois homens, porque não existe um direito individual à não união de duas outras pessoas, mas no máximo uma expectativa social de que essa forma de enlace amoroso não seja tolerada.

O mesmo se pode dizer a respeito do uso de células-tronco para pesquisas, do aborto de anencéfalos, da prisão só após o trânsito em julgado ou o do sacrifício de animais em cultos religiosos, questões que também foram levadas ao STF nos últimos anos. Proibi-los seria negar direitos individuais à intimidade, dignidade da pessoa humana, liberdade de culto, presunção de inocência. Ao permiti-los, o SF não violou o direito de ninguém. No máximo, frustrou expectativas sociais da população, talvez até da maioria.

O papel do STF é garantir direitos e não corresponder às expectativas sociais de quem quer que seja. Um sinal de que uma Suprema Corte não vai bem é quando ela resolve inverter o seu papel. A pretexto de atender a vontade de suposta maioria, o Supremo resolve suprimir um direito individual qualquer – como o de homens usarem cor-de-rosa – sob alegação de que, embora esse direito conste da Carta da República, a maioria da população já não o tolera mais. Agir assim é como abrir a caixa de Pandora e se degenerar.

Como se vê, é papel difícil o de uma Corte Constitucional. Quando agrada apenas a um indivíduo ou a uma minoria, e desagrada a todo o resto, pode gerar indignação, mas não está senão fazendo valer direitos inscritos na Constituição. Está apenas desempenhando fielmente o papel que se espera dessa Corte em um Estado que não é só democrático, mas também de direito. Quando quer agradar a todos em detrimento do direito de um único indivíduo, desvirtua-se e enfraquece, passando a ser mero coadjuvante do processo de deterioração da vida democrática. Daí a se tornar presa fácil do discurso populista de um presidente da República é só um passo. É preciso distinguir, portanto, na atividade de uma Suprema Corte, entre a atitude de reafirmação de direitos e liberdades – que permite conquistas que o processo político jamais consagraria – daquilo que é ativismo puro e simples, com a indevida intromissão política.

O que Jair Bolsonaro chama de “ativismo” é, na verdade, fruto de sua imaginação binária. Ativismo para ele é tudo o que o STF decide contra suas expectativas pessoais. O que o presidente critica nas decisões do STF é a própria substância da Corte, ou seja, a reafirmação de direitos individuais inscritos na Constituição Federal – os mesmos que Bolsonaro despreza, como os dos índios, das mulheres, dos negros, dos homoafetivos e dos acusados no processo penal (a menos que sejam seus amigos ou familiares, claro).

A revolta do presidente com os inquéritos a respeito da difusão de fake news é fruto do seu garantismo de ocasião. Quando Moro se impunha em audiências da Lava Jato, encarnando a figura do juiz acusador, com protagonismo maior que o dos próprios acusadores, Jair Bolsonaro e seus asseclas ficavam em êxtase. De repente, passaram a cobrar o respeito ao sistema acusatório, sistema judicial em que o juiz não toma iniciativa e é um mero espectador do embate travado entre as partes – a antítese do que Moro e a Lava Jato representaram. Quando

Moro mandava prender ou fazer conduções coercitivas contra a previsão expressa da lei, prejulgando a causa antes mesmo de haver uma acusação formal, Bolsonaro e seus seguidores sequer cogitavam contestar o magistrado. Da noite para o dia, entretanto, o presidente passou a criticar que o mesmo juiz do inquérito possa vir a ser também o juiz do julgamento final, no caso do inquérito do STF.

O próprio Moro vem exercendo sua defesa com uma amplitude que jamais garantiu aos réus que respondiam processo na sua vara. As investigações em Curitiba corriam em sigilo absoluto, com vazamentos seletivos, sem a possibilidade de qualquer intervenção da defesa dos investigados nos atos, menos ainda nos depoimentos de testemunhas ou colaboradores. O acesso à prova só era permitido depois que a Polícia Federal já havia devassado as residências, cumprido mandados de prisão e exposto o preso algemado em rede nacional de tevê, para deleite do clamor público.

Uma reportagem da Folha de S.Paulo, publicada no dia 8 de junho, revelou que, ao contrário da praxe judiciária brasileira, o inquérito que investiga se o presidente Bolsonaro interveio na Polícia Federal vem garantindo aos advogados dos investigados não apenas a sua presença nos depoimentos como também a possibilidade de fazerem perguntas às testemunhas, algo   que só se costuma permitir na fase judicial. O modelo é digno de aplauso, pois consagra a ampla defesa e o contraditório, mas desde que se aplique a todos, e não apenas a “cidadãos especiais”.

O inquérito sobre a difusão de fake news provocou polêmica porque não é usual o stf fazer investigações, tanto mais quando a própria Corte é vítima. Mas a investigação está prevista num artigo do Regimento Interno do STF, que permite a esse poder instaurar inquérito para apurar fatos ocorridos em suas dependências. O Código Penal brasileiro considera consumados os crimes de ameaça no momento que as vítimas tomam conhecimento deles. Sendo assim, os ataques aos ministros, embora virtuais, teriam se consumado nas dependências do Supremo. Por outro lado, se o stf não puder julgar casos em que é vítima, quem então julgaria o presidente por crime contra a honra dos onze ministros? Ninguém? O presidente não responderia pelo crime? É o STF que, em última instância, interpreta as suas normas e o seu regimento. A Corte pode errar. E erra. E está sujeita a críticas. Mas não se pode dizer que está invadindo a competência de outro poder ou violando a harmonia entre os três poderes.

Continua muito atual o discurso proferido por Rui Barbosa no Senado em 29 de dezembro de 1914: “Em todas as organizações, políticas ou judiciais, há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar […]. O Supremo Tribunal Federal, senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade.” Esse privilégio de errar por último não implica desequilíbrio de forças com relação aos poderes Executivo e Legislativo, se lembrarmos que o STF é o único dentre eles cuja cúpula (seus onze ministros) é escolhida pelos outros dois poderes (o presidente nomeia, e o Senado aprova ou não). Ainda hoje, é mais prudente dar ao Supremo Tribunal Federal o privilégio de ser o último a errar – e não ao ocupante de ocasião do Palácio do Planalto.

O crime de omissão na gestão de investimentos em fundos de pensão

Um dos problemas mais instigantes da ciência penal atual é como lidar com o comportamento omissivo. A relação causal entre a ação e o resultado ocorre no plano real e concreto. A omissão não. A omissão pertence ao terreno apenas da imaginação. O que poderia ter sido feito para evitar o resultado delitivo? Todos os seres vivos concorrem em tese para omissão de um fato naturalístico. A questão, portanto, é a quem responsabilizar. Como fazer este exercício de imputação sem gerar a ruptura da legalidade? Este é um dos dramas da moderna ciência penal, sobretudo em virtude daquilo que SCHUNEMANN chama de nova criminalidade.

Empresários, gestores de fundos de pensão estão a todo tempo sujeitos a serem acusados de algum comportamento omissivo, supõe-se que devam ter conhecimento de todos os fatos que aconteçam no ambiente da empresa. Por quais destas condutas devem ser responsabilizados?

Código Penal oferece algumas saídas no artigo 13, par. 2º, ao estabelecer que responde por omissão aquele que poderia e deveria agir para evitar o resultado. São as tais posições de garante, que compreende dever de vigilância, cuidado e de proteção. Ou seja, só responde pela omissão aquele que deveria e poderia agir nestas circunstâncias. Ainda assim é vago. É desafio de o julgador estabelecer as balizas que permitam a responsabilização, sem que, no entanto, se permita condenação fora da legalidade. Uma equação difícil de encontrar.

Uma sentença proferida pelo juiz federal Frederico Botelho de Barros Viana da 4.ª Vara Federal Cível do DF, ao julgar procedente uma ação proposta por conselheiros de fundo de pensão que haviam sido responsabilizados administrativamente por omissão, ofereceu uma baliza importantíssima para esta forma de responsabilização, plenamente aplicável também à esfera penal.

Os conselheiros foram punidos administrativamente porque teriam praticado por omissão a infração de “aplicar recursos garantidores das reservas técnicas, provisões e fundos dos planos de benefícios em desacordo com as normas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional”, infração prevista no decreto 4.942/03. A lógica da decisão administrativa era de que, como membros do Conselho, lhes competia o dever de vigilância.

Pretendia a Previc, (órgão fiscalizador dos fundos de pensão) imputar-lhes responsabilidade por investimentos que somente no futuro se mostraram malsucedidos, ou seja, pretendia que os conselheiros tivessem dons premonitórios. Para tanto, alegou-se que eles não tomaram providências que impedissem tais prejuízos, e dessa forma, teriam concorrido, por omissão, para a prática da irregularidade.

O juiz federal anulou a condenação entendendo que nenhuma norma legal obrigava os conselheiros a agirem desta forma. Com isto, o magistrado sufragou entendimento importantíssimo no sentido de que o dever de agir (como aquele previsto no artigo 13, par. 2º do CP) deve estar previsto em lei. Ou melhor a ação omitida deve estar tipificada em alguma norma do direito. No caso específico, a norma que prevê o regime repressivo sobre gestores de fundos de pensão, deve prever expressamente quais condutas são passíveis de reprimenda.

Quando legislador diz que o dever de agir incumbe a quem (…) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância (art. 13, par. 2º, a), esta obrigação deve constar de forma expressa e precisa na lei, sob pena de grave violação do princípio da legalidade, que de alguma forma já sofre alguma mitigação com a responsabilização por omissão.

Tal entendimento é de extrema importância a fim de se evitar julgamentos subjetivos que distorcem a verdade dos fatos em sede administrativa. Por se tratar de um setor importante da economia nacional com participação em cerca de 14% do PIB, é salutar que existam regras claras para os que administram relevante patrimônio de particulares, a fim de se evitar que condutas legítimas sejam criminalizadas no futuro sob a alegação de omissão.

Os tipos penais incriminadores na pandemia

Existem três categorias de crimes orbitando o estado de pandemia em que nos encontramos: os crimes de resultado (lesão corporal e homicídio), os crimes de perigo (artigo 132 do CP) e os crimes de mera desobediência (artigos 268 e 330 do CP).

Os crimes de resultado são aqueles que efetivamente acarretam dano a outrem, como a lesão corporal e o homicídio. Embora teoricamente possíveis, é muito difícil alguém responder criminalmente pela sua prática. Ainda que o sujeito queira usar o vírus que porta para matar ou tentar matar alguém, a arma de que faz uso é invisível, invisível é também a lesão que causa, e igualmente invisível o nexo causal da conduta com o resultado. Nas doenças venéreas é possível identificar com mais chance de certeza o momento da contaminação. Mas como fazer isto no caso de um vírus que se transmite tão facilmente como o Corona? Como determinar a forma como se deu o contágio?

É por isto, ou seja, ante a natural dificuldade de aplicar os tipos de homicídio e lesão, que o legislador precisou antecipar a tutela penal criando outras duas camadas de proteção do bem jurídico.

Primeiro com crimes de perigo como o do artigo 132:

“Expor a risco a vida ou a saúde de outrem a perigo direto ou iminente”
Pena: detenção, de 3 meses a 1 ano, se o fato não configura crime mais grave.

Trata-se de crime que só se configura na forma dolosa, de perigo concreto. A ação ou omissão precisa por em risco a saúde de pessoa determinada (outrem). O próprio crime do artigo 267 do Código Penal – “causar epidemia mediante a propagação de germes patogênicos” – merece a nossa atenção. Afinal, aludido tipo se aplica apenas ao causador originário da epidemia, ou também àquele que colabora para sua propagação? A primeira hipótese parece mais consentânea com a redação do tipo, mas se mostra de aplicação praticamente impossível, por pressupor que seria possível encontrar e punir o agente originador de uma epidemia, a menos que se pense na hipótese de criação de germes em laboratório. A segunda hipótese, embora mais factível, não reflete, a nosso ver, a precisa descrição da conduta, seria uma expansão do tipo penal para atender as contingências emergenciais do momento, algo sempre perigoso no terreno do direito penal.

Não bastassem os crimes de perigo, o legislador vai além, prevendo crimes de mera desobediência, delitos que em si podem não acarretar qualquer dano ou risco de dano, mas mesmo assim se perfazem caso haja a realização da conduta.

No caso do COVID-19, a Portaria Interministerial de 5 de março de 17 de março de 2020 estabelece regras de isolamento e quarentena, e nos artigos 4º e 5º causa certa surpresa ao dizer que o descumprimento das medidas ali previstas pode sujeitar responsabilização criminal pelos tipos dos artigos 268 e 330 do CP.

Qual a natureza desta remissão ao código penal? Seria uma foram de criar ou complementar o tipo penal? Nenhuma das duas. Na verdade, a portaria não é instrumento jurídico adequado para dizer o que configura e o que não configura determinado tipo penal. Esta operação lógico-jurídica é da esfera de competência do judiciário e dos intérpretes da lei penal. Esta interpretação dá-se com a utilização das regras de aplicação da lei penal e da lógica jurídica e não por decreto, sobretudo do órgão que edita o ato normativo infralegal.

É o que devemos fazer, portanto, para entender até que ponto o descumprimento das regras estabelecidas pelo executivo, pode ou não configurar o crime do artigo 268, ou ainda do 330 do Código Penal.

A Portaria n. 356 do Ministério da Saúde e a Portaria Interministerial n. 5 de 2020 preveem duas principais espécies de determinações possíveis do poder público: o isolamento e a quarentena.

O isolamento é uma medida determinada sob prescrição médica. Ou seja, o poder público não determina isolamento de ninguém. Logo, cabe refletir se esta prescrição médica tem o condão de sujeitar aquele que a descumpre aos rigores do artigo 268 do CP. Parece-nos que não. É possível que particulares exerçam transitoriamente e sem remuneração função pública, como é o caso do jurado no tribunal do júri e do mesário nas eleições. Mas ambas atividades estão devidamente disciplinadas na lei federal de modo que possam atuar nestes casos como verdadeiros funcionários públicos para efeito da lei penal. O mesmo não pode ser dito acerca dos médicos durante a pandemia, cuja equiparação a agente do estado não recebe tratamento ou disciplina específica na legislação.

Por outro lado, a outra forma de isolamento, esta sim, diretamente promovida pelo poder público, é o isolamento recomendado, veja, recomendado e não determinado por agente de vigilância epidemiológica, ato pelo qual o agente sugere o isolamento de pessoa ou grupos de pessoas que, embora sem sintomas, possam ter mantido contato com pessoas infectadas. Ocorre que, conforme a própria Portaria Interministerial 5 estabelece, trata-se de mera recomendação que o agente de vigilância fará, e não uma determinação, de modo que também não parece possível que seu descumprimento acarrete punição pelo artigo 268 do CPP, que exige que a infringência seja a uma determinação do poder público, e não a uma mera recomendação.

O que restaria para se subsumir ao artigo 268 seria o descumprimento da medida de quarentena, esta sim, diferente da medida de isolamento, imposta pelo poder público por meio de ato administrativo emanado de autoridade municipal ou estadual. A grande questão, neste caso, porém, é a falta de clareza quanto às ordens emanadas do poder público com expressões vagas como “atividades não essenciais”, a gerar perplexidade e incompreensão sobre o alcance de tais proibições.

Caberá ao judiciário, com sensibilidade e bom senso estabelecer os casos que efetivamente merecem a incidência da norma penal daqueles em que os conflitos podem muito bem ser resolvidos de forma satisfatória na esfera administrativa.

Mais do que nunca o direito penal deve ser usado com parcimônia, em hipóteses excepcionais, apenas quando outra medida não se mostrar suficiente para proteger a saúde da população.

A quem interessam os vazamentos criminosos?

A preocupação com a cobertura jornalística acrítica da Lava Jato já foi muito bem externada em dois textos escritos por duas ombudsman desta Folha, Paula Cesarino Costa (Um jato de água fria”), e Flavia Lima (“A lava Jato e a imprensa”).

A grande questão é como equilibrar a liberdade de imprensa de um lado, que não merece qualquer relativização, com a forma como algumas autoridades inescrupulosas usam os jornais para transformar meras suspeitas contra alguém em culpa consumada, causando danos irreparáveis não só a indivíduos, mas ao próprio país. Cito, propositalmente, exemplos diferenciados.

No dia 17 de maio de 2017, o grupo Globo divulgou que, em conversa gravada por Joesley Batista, o ex-presidente Michel Temer (MDB) teria avalizado o pagamento pelo silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha.

A notícia foi divulgada sem o áudio da gravação. No dia seguinte descobriu-se que a informação não era exatamente aquela da véspera. A cobertura maciça transformou a versão em fato e criou o ambiente para a abertura de inquérito contra o ex-presidente. Recentemente, a Justiça recusou-se a receber a denúncia apresentada contra Michel Temer, reconhecendo que a versão do diálogo legitimada por setores da mídia e do Ministério Público não correspondia à realidade. Tarde demais.

A leviandade vai além. Em abril de 2017, a revista Veja publicou uma matéria de capa informando que, em delação premiada, à qual a revista teve acesso com exclusividade, um executivo da Odebrecht teria revelado a existência de uma conta bancária em Nova York ligada ao deputado Aécio Neves e movimentada pela sua irmã, Andrea Neves.

No dia 9 de agosto de 2019, a Procuradoria-Geral da República, já na gestão de Raquel Dodge, em documento oficial, atestou que o nome dela nunca foi citado em qualquer delação feita pelo executivo. A delação à qual a Veja afirma ter tido acesso com exclusividade simplesmente nunca existiu. Não existia a delação, a acusação, a conta bancária, nada. Ainda que sem nenhum documento que a comprovasse, a acusação, inexistente, foi capa da revista.

Agora é a vez do filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Fábio Luís. Documentos esparsos e fora de contexto são vazados propositadamente para embalar a opinião pública em julgamentos tão precipitados quanto equivocados.

A estratégia é a mesma de sempre. Buscar no calor da opinião pública o combustível artificial para subsidiar medidas espetaculosas, medidas que apenas pela força dos elementos do processo não teriam condições de prosperar. E com o Judiciário colocado de joelhos pela pressão popular, as ilegalidades ficam mais difíceis de serem anuladas pelos tribunais. É a receita que deu certo por muito tempo, e sua utilização foi admitida em artigo pelo próprio personagem principal da Operação Lava Jato, o hoje ministro Sergio Moro.

É o que se chama de publicidade opressiva do processo penal, já objeto de regulamentação legal em diversos países, como Inglaterra e França.

No Brasil, não há mais dúvida de que a conduta é crime previsto no artigo 38 da lei sobre abuso de autoridade. Resta saber qual o órgão de persecução penal terá a coragem de aplicar a lei, cortando na própria carne.

 

Os insondáveis mistérios da junk science

Toda profissão tem alguns pecadilhos que se fossem revelados ninguém mais confiaria em profissional nenhum. A justiça penal é rica nisto. Um deles é sem dúvida a prova pericial. Se a população soubesse o tratamento que costuma ser dado à prova pericial – não só no Brasil – ninguém mais contratava advogado, ajuizava ação, enfim, ninguém mais acreditava na justiça. Como todos de certa forma precisamos que a justiça goze de alguma dose de credibilidade, é comum ouvir o advogado ou o promotor criticarem a perícia feita em um ou outro caso, mas é raro ouvir alguém desqualificar por completo o trabalho pericial que usualmente se realiza no país.

Advogados e juristas sempre foram muito ciosos da defesa das regras do devido processo legal, mas são poucos os que se dedicaram a estabelecer um certo padrão de qualidade da prova, matéria sempre relegada à casuística.

A perícia, não raro, vem acompanhada de uma dose enorme de subjetivismos inaceitáveis em uma prova científica. Já vi perito fazer laudo concluindo pela culpa do réu pela análise dos depoimentos que constam dos autos. Em caso cuja controvérsia era se a vítima havia cometido suicídio ou se fora homicídio, chegou aos autos exame de balística, que em vez de se ater à trajetória dos projéteis, presença de pólvora nas vestes e outras questões científicas, resolveu enveredar pela prova oral para ao final concluir pela ocorrência do homicídio (ou seja, em vez de emitir laudo, emitiu um veredito).

Fato é que a influência da prova pericial sobre a decisão judicial é muito grande, tamanha sua capacidade de persuadir o juiz, alguém que, a rigor, não dispõe de elementos técnicos para colocar em xeque as conclusões do perito.

Daí que a vinda da prova para o processo deve ocorrer mediante controles que permitam confiar que a prova periciada é mesma encontrada na cena do crime (mesmidade).

Há muitos anos, defendi no júri um réu acusado de homicídio. Ainda na fase de inquérito, ele fora chamado a depor e, perguntado se possuía arma de fogo, respondeu que sim. No dia seguinte, a pedido da autoridade policial, dirigiu-se à delegacia e entregou a arma. Feita perícia na arma, o confronto balístico deu positivo. Era a arma do crime. Mas como seria possível? Por que o autor do crime levaria a arma usada no homicídio para que a polícia a periciasse e o incriminasse? Nada daquilo fazia sentido. Foi a primeira vez que ouvi falar em quebra de cadeia de custódia da prova, tese que foi brilhantemente explorada pelo advogado Thiago Gomes Anastácio, meu companheiro de vida e de tribuna.

Anastácio conseguiu demonstrar aos jurados que o exame pericial era imprestável pois os projéteis colhidos na cena do crime não foram lacrados. Foram transportados de um lugar para outro, sempre sem lacre, permaneceram jogados num armário da delegacia, sem nenhuma preservação. Como saber se os projeteis periciados eram os mesmos colhidos na cena do crime?

Da mesma forma a arma entregue pelo réu não recebeu nenhum tipo de cuidado que permitisse preservar sua integridade. Nada impedia que alguém querendo incriminá-lo produzisse novos disparos e colhesse novos projeteis para a perícia. Sem lacre, não havia cadeia de custódia da prova, e sem cadeia de custódia da prova, não se poderia garantir a integridade da prova, e não havendo certeza sobre a integridade da prova, a perícia sobre a prova é inútil. Foi esta a tese que foi sustentada com sucesso naquele plenário do júri. Como argumento Anastácio lembrou ao júri que o juiz que presidia a sessão só estava sentado ali porque prestou um concurso, que é um processo de seleção válido porque respeita uma séria de cadeias de custódia das provas (prova aqui no sentido de teste de conhecimento). Fez os jurados refletirem sobre a relevância do lacre em um país democrático, fazendo o paralelo dos projéteis com as urnas eleitorais.

O júri leva prova pericial a sério. Nem todo juiz é assim. Os jurados acolheram a tese de negativa de autoria e o réu foi absolvido.

Alguns anos depois daquele júri, fui procurado para defender um acusado de crime financeiro. O Ministério Público Federal lhe atribuía a titularidade de uma conta bancária em um banco em Curaçao. Nos registros do banco havia um e-mail que o vinculava à conta. Por meio de cooperação internacional, a Holanda enviara para o Brasil arquivos digitais contendo toda a movimentação da conta. O réu respondia por evasão de divisas e lavagem de dinheiro.

Muito embora a cadeia de custódia da prova ainda fosse um tema novo e pouco explorado nos tribunais, chamou a atenção o registro que um funcionário do MPF fez nos autos. Ao receber o os arquivos digitas, ele passou um código HASH, uma espécie de lacre digital. O curioso é que ninguém antes dele se preocupou em adotar algum procedimento de garantia da integridade da prova. Decidi chamá-lo para depor.

Na audiência fiz perguntas técnicas sobre o código HASH e enalteci a sua preocupação com a cadeia de custódia da prova, angariei a concordância e a simpatia do funcionário, que estava orgulhoso do seu zelo com a prova. Ao final, lancei a pergunta decisiva. “O senhor pode garantir a integridade desta prova, antes de ter chegado ao MPF “? Por tudo que já havia respondido, não havia como dizer outra coisa senão um sonoro não. A prova cruzou o Atlântico duas vezes, de Curaçao para a Holanda e da Holanda para o Brasil, passou pelo Ministério das Relações Exteriores e chegou ao MPF sem nenhum procedimento de resguardo da sua integridade.

Não era possível garantir que as movimentações detectadas pelas autoridades holandesas eram as mesmas que chegaram meses depois às mãos do MPF. A prova era absolutamente imprestável. Mas o juiz da causa não eram os sete jurados comprometidos apenas com a justiça do caso, era um jovem e desconhecido juiz federal de uma seção judiciária do sul do país, que anos depois viria a ganhar fama internacional pelo trabalho na Operação Lava Jato. O réu foi condenado. Nada foi dito na sentença sobre a alegação de quebra de cadeia de custódia da prova.

Mais recentemente patrocinei, a convite de um colega, um caso que coincidentemente também era originário da famosa vara de Curitiba. O caso versava sobre supostos crimes de peculato e corrupção envolvendo o tribunal de contas do Estado. A prova usada para incriminar os réus era uma interceptação telefônica autorizada pelo então juiz Sergio Moro, o que desde o início causava certa surpresa, pois um dos principais alvos era um juiz do Tribunal de Contas, com foro no STJ. Como, no entanto, não havia prova de que o telefone específico do juiz fora interceptado – embora ele aparecesse em diversos diálogos – o STJ entendeu que não teria havido usurpação de sua competência.

Um documento conseguido pela defesa e juntado ao final do julgamento em primeiro grau mudaria completamente os rumos do caso. Os diligentes advogados curitibanos, liderados por Rodrigo Castor, conseguiram demonstrar documentalmente que em pelo menos uma ligação telefônica o número interceptado era o do juiz. E mais grave do que isto, o extrato havia sido adulterado para que constasse o número de sua esposa. Ou seja, a polícia havia fraudado a prova para não ter que submeter o caso ao escrutínio do STJ.

Quando tomou conhecimento do fato, a juíza então à frente da vara mandou imediatamente instaurar inquérito para apurar a autoria do crime. A questão processual a saber era se a prova colhida na interceptação telefônica poderia permanecer válida nos autos. Qual a credibilidade de uma prova produzida por agentes do estado que foi comprovadamente manipulada?

A defesa se valeu do magistério de GERALDO PRADO. De acordo com o respeitado professor, “verificada a quebra da cadeia de custódia, o que há é a impossibilidade do exercício efetivo do contraditório pela parte que não tem acesso à prova íntegra”1.

O Tribunal Regional Federal da 4ª região acolheu a tese, deu provimento à apelação e determinou a anulação do processo.

Todos estes são exemplos de casos em que discutimos a quebra da cadeia de custódia da prova nos tribunais, ora obtendo sucesso, ora não. Em um destes casos o juiz era o hoje Ministro da Justiça Sergio Moro, que nenhuma importância deu na época à questão, agora tornada lei no bojo de Pacote Anticrime que ironicamente leva seu nome.

Isto não foi obra do Ministro. O projeto passou por uma tremenda reformulação no Congresso Nacional, que merece efusivos aplausos por ter produzido, salvo uma ou outra questão, uma das reformas penais mais progressistas dos últimos anos, introduzindo o juiz de garantias, criando limites à indústria da delação, colocando freios ao uso abusivo da prisão provisória e regulamentando o procedimento para preservação da cadeia de custódia da prova.

Ainda há muita coisa para ser aprimorada. Mas cada luta a seu tempo.

Caso Lulinha: o fugaz juízo das opiniões precipitadas

A maior diferença entre um julgamento no tribunal e na imprensa é que no tribunal o julgamento é baseado na lógica das provas e no uso do discurso racional do direito, enquanto que na imprensa um pequeno dado isolado, uma foto ou uma informação deslocada do contexto acabam assumindo importância maior do que o próprio fato e suas circunstâncias. Na imprensa, o julgamento corre o risco de ser mais impressionista do que realista.

No caso de Fábio Luiz Lula da Silva não é diferente. Dados manipulados pela investigação ao calor das conveniências acabam despertando maior interesse do que os próprios fatos objeto da investigação. Basta colocar no título da matéria uma enorme cifra de dinheiro para criar uma suspeita que nenhuma análise lógica é capaz de anular.

Foi o que aconteceu no último final de semana com duas matérias, uma da Folha e outra da revista Veja, que focaram nos elementos impressonistas do caso, dificultando a absorção dos elementos de racionalidade.

Vamos, então, a eles:

As matérias reproduzem as suspeitas da FT de Curitiba no sentido de que Fábio Luiz teria ocultado dados relacionados ao imóvel onde mora. De acordo com os investigadores, tal expediente serviria para ocultar vantagens recebidas da OI, por meio de duas empresas, a GOL, de propriedade de Jonas Suassuna , e a GAMECORP.

Há, porém, um elemento de irracionalidade nesta tese que passou despercebido nas matérias. Fabio Luiz não só tem participação acionária como é diretor-presidente da Gamecorp. Seu nome está no contrato social registrado na Junta Comercial, em um documento de acesso público. Não há mistério, nem segredo. Por que figuraria ostensivamente na empresa se quisesse ocultar sua relação com a Oi?

Que sentido faria pedir para um amigo qualquer “favor” que fosse com o objetivo de esconder o recebimento de valores, se nunca escondeu sua própria relação societária e comercial com a Oi?

As cifras mencionadas, por sua vez, são outro fator impressionista. Fala-se em dezenas de milhões, como se tivessem sido aportados de uma só vez. O que não se diz é que estes valores são a somatória de tudo que a Gamecorp recebeu ao longo de 12 anos de serviços prestados pela empresa, que chegou a ter quase 200 funcionários e vários outros clientes importantes, como Microsoft, Sony, Hyundai, AMD, Sadia, Ambev (Guaraná e Skol) , Warner Games e Cinemark.

As vidas de Fábio e de suas empresas  já foram devassadas por anos a fio e nada de irregular foi apurado. Tanto é assim que o inquérito que apurava estes fatos foi arquivado a pedido do próprio Ministério Público Federal de São Paulo. Não deixa de causar estranheza que estes fatos tenham sido ressuscitados agora pela Força Tarefa da Lava Jato, poucas semanas após seu pai deixar a prisão.

O que mais admira na verdade é que não se aponta um único ato ou um mero gesto de Fábio para defender interesses privados no governo. Nada, absolutamente nada. As insinuações chegam a ser tão irreais que passam por cima de uma das colaborações premiadas mais festejadas e bem sucedidas firmadas em Curitiba, a do executivo Otávio Azevedo, da Andrade Gutierrez, na época , controladora da Oi, que sempre negou qualquer irregularidade na relação com as empresas Gamecorp e Gol.

Se a Lava Jato quiser chamar esta colaboração de mentirosa terá que anular três anos de operação . Será um bom teste para a credibilidade e imparcialidade das investigações.

Cumprir a lei e a Constituição virou crime e sinônimo de subversão

“Qualquer pessoa pode ser presa antes da última instância, basta preencher os requisitos para a prisão preventiva. O que não existe é alguém ser forçado à prisão com o processo cabendo recurso e sem prisão preventiva. É isso que o STF está julgando. Por favor, se informem.”

Quem escreveu esse post não foi um catedrático de direito. Foi o youtuber Felipe Neto. Mas qualquer processualista ou constitucionalista poderia, arrumando, evidentemente, algumas palavras e expressões jurídicas, assinar embaixo. Praticamente uma aula.

E nós vamos dizer pela milésima vez: o Supremo Tribunal Federal não vai proibir a prisão em segunda instância, muito menos em primeira ou até antes de iniciado o processo. O STF está decidindo apenas se a partir da segunda instância a prisão pode ser decretada com um singelo carimbo, ao sabor dos humores de cada juiz, ou se isto só é possível na forma da lei, preventivamente, desde que fundamentadas as razões, ou ainda após o trânsito em julgado, como diz a Constituição e o artigo 283 do Código de Processo Penal. É isso!

Mas, se é tão simples assim, por que há tanta desinformação? Vamos lá. Democracia implica a existência de uma esfera pública em que haja paridade de armas. Hoje, as redes sociais passaram a ser o espaço do engodo. O julgamento das ADCs (Ações Declaratórias de Constitucionalidade) 43, 44 e 54 são um exemplo privilegiado do uso de mentiras e ameaças aos ministros do STF que não concordam com a opinião “whatsappiada-twuitada”, que, de pública, nada tem. O que há são discursos raivosos, somados aos textos da grande mídia que distorcem os fatos e os dados.

São impublicáveis as postagens assacadas contra os ministros que já votaram a favor da coisa mais prosaica que existe em direito: a confirmação da textualidade de um código, que espelha o que diz a Constituição, coisa já feita muito bem pelos ministros Marco Aurélio, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski. Agora querem pressionar os ministros que podem votar do mesmo modo que esses três.

E, para pressionar os demais julgadores, formou-se um estado de natureza “desinformacional”, com postagens e “notícias” dizendo coisas como “presunção da inocência é o paraíso da impunidade”; “presunção é para os ricos”; “190 mil pessoas serão soltas”; “julgamento vai acabar com a Operação Lava Jato”; “qualquer criminoso poderá recorrer, em liberdade, até o STF, por anos e anos” e assim por diante.

Sim, mente-se que, se o STF garantir o que está na Constituição Federal e no Código de Processo Penal, estarão proibidas as prisões depois da condenação. Confundem, por desconhecimento ou má-fé, pena de prisão e prisão processual. Inverdades multiplicadas.

Pior: há gente da área jurídica envolvida. Professores espalhando boatos e sugerindo até o fechamento da Suprema Corte, dando eco ao discurso de alguns caminhoneiros que ameaçam fechar estradas caso o STF vote conforme o que diz a lei.

Cumprir a lei e a Constituição estritamente virou crime e sinônimo de subversão. Que tipo de gente formamos em nossas faculdades? Professores pregando o caos só porque o STF “ameaça” dizer aquilo que diz a Constituição?

Urge que a camada pensante do país —que pensamos ainda existir— venha a campo e ajude a dizer que o STF tem liberdade de julgar. E que o Supremo não tem nada a ver com a voz dos grupos de WhatsApp. Aliás, a função da corte é garantir a mais antiga verdade do direito: a de que a Constituição é um remédio contra maiorias. Decisão do STF não é plebiscitária.

Numa palavra, eis o paradoxo: como youtuber, Felipe Neto mostra-se um ótimo jurista! Melhor que muita gente por aí que estudou direito.

Atenção: O espectro da prisão antecipada ronda o Tribunal do Júri

A instituição do Júri está sob a ameaça da prisão antecipada decorrente de uma variante da tese contestada nas ADC 43, 44 e 54 no Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, há decisões no STF — por todos, veja-se a posição do ministro Dias Toffoli — no sentido de considerar a decisão do Júri como instância equivalente ao esgotamento da prova e, assim, permitir a prisão do réu de imediato.

Pois agora está em julgamento virtual a repercussão geral a respeito da matéria. Se for reconhecida a repercussão geral, a matéria vai a plenário: a questão será a seguinte — “decisão do Júri autoriza imediata execução da pena”?

Há decisões permitindo e há decisões contrárias à prisão imediata de condenado pelo Júri. Importa discutir, então, as condições pelas quais essa posição é inconstitucional e não deve vingar. Vale ou não vale a presunção da inocência?

O furo, portanto, é mais embaixo. O ministro Luís Roberto Barroso tem, ao que parece, posição no sentido de que cabe a prisão imediata. Ele se perguntou se é cabível ou não o princípio da presunção da inocência no caso. Ótimo. A parte boa é que ele admite que a presunção da inocência é um princípio. Já é um grande avanço. Logo, se é princípio, é norma. Vale. E é norma constitucional. A pergunta é: se é um princípio, como lhe negar aplicabilidade e dizer que decisões do Júri são aptas a escapar do princípio?

Permitimo-nos mostrar que há dois obstáculos para que o STF permita que a decisão do Júri autorize imediata prisão. Primeiro, decisão do Júri é decisão de primeira instância. Prender desde logo viola o duplo grau de jurisdição. Segundo, a decisão do Júri não é tomada tecnicamente. É fruto da íntima convicção, que não exige fundamentação, o que se choca com a garantia prevista no artigo 93, X, da Constituição.

Assim, o fato é que a íntima convicção é insustentável na democracia — e esse é um dos pontos do problema. Se é possível condenar alguém com base em “sims” em número maior que “nãos”, isso não pode significar que esse julgamento seja equiparado a um colégio de juízes. É esticar demais o sentido de “decisão colegiada”.

A Constituição garante a instituição do Júri e o sigilo das votações. Porém, não garante a íntima convicção. Se da decisão do Júri que condena cabe recurso por nulidade e manifesta contrariedade à prova dos autos, por qual razão o Júri esgota a faticidade? É difícil compreender esse ponto. Como afirmar que a decisão dos jurados significa trânsito em julgado e determina a prisão?

Assim, à pergunta “Decisão de jurado equivale a trânsito em julgado”, respondemos: Não. Não equivale. Por quê? Porque é inconstitucional essa posição que justifica a imediata execução da pena. Se a prisão antecipada decorrente do HC 126.292 já é inconstitucional por ferir clara disposição legal e constitucional, o que diremos da prisão antecipada decorrente de um Tribunal que, em primeira instância, decide por intima convicção, por “sim” ou “não”?

A Constituição garante a soberania das decisões proferidas pelo Júri. Isto não significa que o Júri pode tudo ou pode qualquer coisa. Tanto não pode que cabe recurso contra suas decisões. O STF tem restringido estas hipóteses de recursos a casos de condenação. Ou seja, a soberania dos vereditos é uma garantia do réu e não algo que possa ser invocado contra ele. O próprio tribunal do Júri existe para dar maior proteção aos acusados, tanto que está previsto no artigo 5º, o qual elenca os direitos e garantias individuais de todo cidadão.

Sob nenhuma hipótese a soberania do Júri pode implicar cumprimento imediato da pena. Soberania, no máximo, pode significar aquilo que constou do voto recentíssimo do ministro Celso de Mello, quem decidiu, em sede do RHC 117.076/PR, que não cabe apelação ao Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com a prova dos autos. Soberania é nesse sentido. E não no sentido de que a decisão do Júri esgota a discussão probatória contra o réu. Ou eliminemos os recursos do Júri a favor da defesa.

Júri é primeiro grau. Se a soberania do Júri é direito fundamental (sim, Júri está previsto como garantia), como pode essa garantia constitucional se virar (ou ser usada) contra o réu?

Insistimos: cada tese tem uma antítese. Se a decisão do Júri “prende” de imediato, então não cabe recurso da absolvição. Isso também seria inconstitucional.

O próprio pacote “anticrime” do ministro Sergio Moro expressa preocupação com a forma arbitrária com que o Júri condena. É esta afinal a razão pela qual pretende enfiar goela abaixo dos jurados a “correta” forma de julgar policiais, engessando a possibilidade de condenarem em determinados casos. Como uma instituição tão sujeita a erros na opinião de todos pode permitir prisão antes do exame do recurso que desafia suas decisões?

É preocupante que o próprio STF resolva usar as garantias contra os próprios beneficiários dessas garantias, já que o réu não pode “abrir mão dela e pedir um julgamento por juiz togado”. No Brasil, o in dubio pro reo, consagrado já na mitologia grega, agora virou in dubio contra o réu. Aliás, não há registro da normatividade disso. In dubio pro societate? Veja-se que no ARE 1.067.392, os ministros Lewandowski, Gilmar e Celso rejeitaram a possibilidade de aplicação desse standard.

Urge que o Júri passe por uma reformulação. Mas, antes disso, não deixemos que suas decisões sejam tidas como plenipotenciárias e tenham o condão de prender, desde logo, o condenado. Presunção da inocência é um princípio. Princípio é arché. Ele principia. Ele está acima da regra.

Em um Estado Democrático de Direito, ninguém pode perder a liberdade por um detalhe de um sim ou um não, dados às escuras, sem o dever de dizer o porquê. Como bem assinalou o ministro Gilmar Mendes, em recente decisão sobre o tema, “a privação da liberdade do condenado, em tais circunstâncias, somente pode ser dar se presente motivo justo a reclamar a decretação da prisão preventiva” (HC 176.229).

Neste momento, mais urgente é não permitirmos que uma decisão tomada em primeiro grau e por íntima convicção tenha o condão de “esgotar a matéria de fato-prova” e jogue o réu na prisão, sem esgotar as instâncias recursais, que é aquilo que chamamos de princípio da presunção da inocência.

Carta branca para matar

A lei penal pode tanto criar crimes que não existem e aumentar penas dos que já constam do código como pode também criar excludentes, circunstâncias que, dependendo da situação, excluem o crime.

É o caso da legítima defesa. A legítima defesa prevista no Código Penal atualmente é uma fórmula genérica, que vai sendo moldada de acordo com cada caso concreto. É da boa técnica legislativa que a lei seja a mais genérica possível para não invadir a esfera do Judiciário, que é o poder responsável por aplicar a norma aos casos concretos.

O Legislativo não pode distribuir imunidades a pessoas ou grupo de pessoas a seu bel-prazer.

É isso o que pretende, no entanto, o pacote anticrime do Ministro Sergio Moro, ao criar um excludente de ilicitude para policiais no exercício da função.

Os agentes encarregados da segurança pública são os mais preparados para reagir a uma situação adversa, porque dispõem, digamos assim, de aptidões e conhecimentos que lhes permitem calcular melhor a necessidade e a proporcionalidade da reação a uma situação de perigo real ou iminente.

Logo, causa perplexidade que justamente essa categoria de profissionais seja agraciada com uma excludente especial que não alcança o cidadão comum, em favor de quem seria muito mais justificável perdoar erros e exageros empregados numa situação extrema de violência.

Aliás, o pacote pretendeu cercar de todos os lados a possibilidade de um policial ser punido por excessos cometidos em situação de violência de rua. Paralelamente à legítima defesa especial, previu também uma isenção de pena caso o excesso nessa legítima defesa seja causado por medo, surpresa ou violenta emoção.

Em outras palavras, a nossa polícia, uma das que mais mata no mundo, quer matar mais, mas para isso quer imunidade penal, e o governo está atendendo a esta reivindicação.

É bem verdade que os próprios apoiadores da excludente argumentam que ela não cria uma hipótese de legítima defesa tão diferente da que já existe no código. Será? Por que então insistir tanto na sua aprovação?

Ainda que tecnicamente, na prática, os tribunais não devam interpretar esta excludente de forma muito diferente da que já interpretam a legítima defesa clássica prevista atualmente na lei, existe um efeito nocivo caso a proposta seja aprovada, que não deve ser menosprezado pelos parlamentares.

Além dos efeitos propriamente jurídicos, a lei penal contém um efeito tão ou mais importante, que é o efeito pedagógico. Enquanto os tribunais não pacificam o entendimento sobre o alcance da nova lei, algo que pode demorar anos, se não décadas, para acontecer, o cidadão vai se guiando pelo que lhe dizem os jornais, o bom senso e, principalmente, a comunicação que é atrelada ao pacote.

E, nesse aspecto, a comunicação do governo e dos que grupos que o apoiam é a mais nociva possível. Basta ouvir os discursos do presidente Bolsonaro e do governador Witzel, principais garotos-propaganda dessa proposta, para perceber que não há qualquer exagero nesse prognóstico.

Faz lembrar o guarda da esquina de Pedro Aleixo. O problema não é nem tanto a letra fria da lei, cujas deformidades ou imprecisões os tribunais dão conta de resolver, mas o escudo moral que o policial fará dela até que a jurisprudência consolide um entendimento razoável para sua aplicação.

Não há como não enxergar a curto prazo um resultado trágico caso o excludente seja aprovado: uma carnificina ainda maior e um terror policial ainda mais intenso nas periferias das grandes cidades.

O ministro Moro podia ter um gesto de grandeza e vir a público dizer que errou, e que não apoia mais essa proposta. Pode inclusive alegar que agiu sob violenta emoção. Seria uma saída honrosa.