Muito se fala, mas pouco se escuta entre os atores do Judiciário

Em praticamente todas as sessões de julgamento do Superior Tribunal da Justiça tornou-se praxe ouvir os ministros se queixarem do excesso de Habeas Corpus que são ajuizados pelos advogados. Segundo dados do próprio tribunal, o número não para de crescer e pode acabar inviabilizando o próprio funcionamento do STJ.

A queixa é legítima e, em boa parte, procedente. Há, no entanto, um problema crônico de comunicação na Justiça brasileira. Os atores da Justiça dialogam mal, muito mal. As faculdades não formam pessoas capazes de articular bem seus argumentos num processo. Nem mestrado e doutorado são capazes de suprir essa carência — senão até a pioram, pelo excesso de juridiquês.

Advogados, promotores e juízes escondem-se atrás de precedentes, decisões e artigos de lei porque isto todos aprendem na faculdade. Mas é comum ver acusações que não descrevem com precisão os fatos, decisões que não enfrentam os argumentos da parte e, claro também, habeas corpus que não conseguem deduzir de forma cristalina a pretensão.

Na área criminal, os advogados se deparam diariamente com decisões padrão, que repetem jargões como “a liminar é medida excepcional, e não se mostra cabível, na espécie” — ou seja, uma frase que encaixa em qualquer caso e não precisa do exame da ilegalidade apontada no caso concreto.

Comunicação forense

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, tem encabeçado uma campanha importantíssima voltada à simplificação da comunicação forense.

É preciso eliminar os data vênias, os egrégios e preclaros, o latinório; mas, mais do que isso, é preciso melhorar a comunicação. As petições precisam ser mais sintéticas, as denúncias não podem ser um calhamaço interminável, e as decisões e acórdãos não devem também passar de algumas páginas.

Basta também assistir a algumas sessões de julgamento para se perguntar se é necessário um voto levar às vezes horas para ser lido.

No criminal, é comum ver sentenças de 100, 200 páginas, transcrevendo depoimentos, manifestações do Ministério Público, e precedentes. Argumentos próprios mesmo, pensados para o caso concreto, pouco se veem. O mesmo ocorre com as petições. Muitos advogados ainda escrevem muito, lotam a petição de doutrina e jurisprudência, mas dedicam poucos argumentos à análise do caso efetivamente.

Os bons juízes são aqueles que decidem em poucas páginas, mal citam doutrina ou jurisprudência, mas exaurem o debate da causa.

Alguns dizem que o computador piorou muito a situação, em virtude do famoso “recorta e cola”, mas não é só isso. O computador também tornou o direito mais acessível. Em um clique, qualquer advogado, juiz ou promotor encontra na internet um precedente bom para usar no seu caso, até porque o Brasil ainda tem jurisprudência para todos os gostos.

Monólogo

O resultado disso é que muito se fala, mas pouco se escuta. A impressão às vezes é de que o diálogo processual é um monólogo.

Gritos roucos para ouvidos moucos

Em praticamente todas as sessões de julgamento do Superior Tribunal da Justiça tornou-se praxe ouvir os ministros se queixarem do excesso de habeas corpus que são ajuizados pelos advogados. Segundo dados do próprio tribunal, o número não para de crescer e pode acabar inviabilizando o próprio funcionamento do STJ.

A queixa é legítima e, em boa parte, procedente. Há, no entanto, um problema crônico de comunicação na Justiça brasileira. Os atores da Justiça dialogam mal, muito mal. As faculdades não formam pessoas capazes de articular bem seus argumentos num processo. Nem mestrado e doutorado são capazes de suprir essa carência —senão até a pioram, pelo excesso de juridiquês.

Advogados, promotores e juízes escondem-se atrás de precedentes, decisões e artigos de lei porque isto todos aprendem na faculdade. Mas é comum ver acusações que não descrevem com precisão os fatos, decisões que não enfrentam os argumentos da parte e, claro também, habeas corpus que não conseguem deduzir de forma cristalina a pretensão.

Na área criminal, os advogados se deparam diariamente com decisões padrão, que repetem jargões como “a liminar é medida excepcional, e não se mostra cabível, na espécie” —ou seja, uma frase que encaixa em qualquer caso e não precisa do exame da ilegalidade apontada no caso concreto.

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, tem encabeçado uma campanha importantíssima voltada à simplificação da comunicação forense. É preciso eliminar os data vênias, os egrégios e preclaros, o latinório; mas, mais do que isso, é preciso melhorar a comunicação. As petições precisam ser mais sintéticas, as denúncias não podem ser um calhamaço interminável, e as decisões e acórdãos não devem também passar de algumas páginas.

Basta também assistir a algumas sessões de julgamento para se perguntar se é necessário um voto levar às vezes horas para ser lido.

No criminal, é comum ver sentenças de 100, 200 páginas, transcrevendo depoimentos, manifestações do Ministério Público, e precedentes. Argumentos próprios mesmo, pensados para o caso concreto, pouco se veem. O mesmo ocorre com as petições. Muitos advogados ainda escrevem muito, lotam a petição de doutrina e jurisprudência, mas dedicam poucos argumentos à análise do caso efetivamente.

Os bons juízes são aqueles que decidem em poucas páginas, mal citam doutrina ou jurisprudência, mas exaurem o debate da causa.

Alguns dizem que o computador piorou muito a situação, em virtude do famoso “recorta e cola”, mas não é só isso. O computador também tornou o direito mais acessível. Em um clique, qualquer advogado, juiz ou promotor encontra na internet um precedente bom para usar no seu caso, até porque o Brasil ainda tem jurisprudência para todos os gostos.

O resultado disso é que muito se fala, mas pouco se escuta. A impressão às vezes é de que o diálogo processual é um monólogo.

Para piorar, os criminalistas cuidam de casos antipáticos perante a opinião pública; logo, antipáticos também perante o Judiciário. Muitas vezes o juiz ou o tribunal nega-lhe o direito, ou lhe dá tratamento diferente “porque o caso é ruim”.

Não é algo que se admite com facilidade, mas a natureza humana está aí para comprová-lo. Ou seja, o Judiciário brasileiro universalizou o acesso à Justiça nos últimos 20 anos, mas não universalizou a efetiva entrega do direito igual a todos. Resultado: os advogados estão a todo tempo buscando garantir essa isonomia aos seus clientes.

Existem muitas questões para serem repensadas, que vão desde o ensino jurídico, a comunicação e a linguagem forense até o efetivo funcionamento da máquina judiciária.

O que não se pode é eleger um culpado: no caso, o habeas corpus, protetor maior da liberdade humana, pelas mazelas que acometem os tribunais e a efetiva realização da justiça no país.

Como combater o uso de drogas?

Está em curso julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre a questão do porte de drogas. A tendência é a descriminalização do porte de maconha. Como era de se esperar, reações surgiram.

De um lado, vozes conservadoras consideram que a decisão a ser proferida significa um caminho para a liberação total do tráfico de drogas. De acordo com esse pensamento a liberação do uso de maconha seria apenas o início para a liberação do uso indiscriminado de drogas. Mais que isso, a não punição ao usuário tornaria impossível a repressão ao tráfico, principal causa, segundo sustentam, do aumento da violência.

De outro lado, discute-se se a matéria comporta julgamento pelo Poder Judiciário.

O presidente do Senado, por exemplo, sustenta que a matéria é da alçada exclusiva do Poder Legislativo, único que pode definir a tipicidade da conduta de quem usa ou comercializa substância entorpecente que, por definição, causa dependência física e psíquica.

A matéria – descriminalização do uso de drogas – suscita debates.

Os defensores da posição que, tudo indica, o Supremo Tribunal Federal vai adotar para a maconha, afirmam que a questão é de saúde pública e não criminal, o que vale dizer que admitem que o uso de drogas não deve ser incentivado ou ignorado pelo Estado, mas não justifica seja considerado como conduta típicas.

Não me parece sustentável o primeiro argumento. Não vejo como se possa sustentar a não punição ao usuário de drogas importaria, necessariamente, em fragilizar a repressão ao tráfico. A toda evidência, a ideia repressiva da legislação tem sido, para dizer o mínimo, insuficiente, seja para a devida e necessária punição aos traficantes, seja para inibir o aumento de viciados. A proliferação das chamadas Cracolândias é o exemplo mais claro deste fracasso.

As forças policiais – Polícia Civil, Polícia Militar e Polícia Federal – em diversas operações informam de aumento exponencial nas apreensões. A todo instante há notícia de prisões de traficantes apontados como os principais distribuidores de drogas em determinadas regiões.

Não cabe aqui discutir sobre a qualidade das diligências policiais. Mas, é certo que, apesar da expressiva quantidade de droga apreendida e do expressivo número de prisões, não há qualquer indício de que as quadrilhas que se dedicam ao tráfico de substância entorpecente tenham diminuído sua atividade.

Isso posto, parece evidente que a atual sistemática, que prioriza a punição, não vem obtendo êxito.

O segundo argumento – a decisão do Supremo invade matéria da alçada do Poder Legislativo – , sem dúvida, é mais consistente.
Bem por isso, cabe aqui uma discussão sobre a legislação a respeito do tema.

O Brasil, a exemplo de vários países, não tem uma política clara para o tema. Ainda assim, é possível, como já afirmado acima, se dizer que a opção tem sido por uma posição mais repressiva.

O Código Penal de 1940 tratou do tema no artigo 281, tipificando condutas relativas ao tráfico e à posse ilícita.

Durante a ditadura militar, treze dias após a edição do AI 5, o Decreto-lei 385, de 26 de dezembro de 1968, revogou o artigo 281 do Código Penal e, em retrocesso evidente, equiparou a conduta do usuário e do traficante.

Essa inaceitável situação perdurou até a edição da Lei 6.368, de 1976, a primeira conhecida como a Lei de Entorpecentes, que distinguiu a conduta do usuário- punida com detenção-, do traficante- punida com reclusão.

Curioso que a Lei 6.368/76, duramente criticada por punir o usuário, representou, em verdade, uma evolução pois acabou com o absurdo de se punir igualmente usuário e traficante.

Hoje a matéria é regulada pela Lei 11.343/06, que distingue o usuário do traficante, mas é criticada por não estabelecer critérios seguros para diferenciar o tráfico do mero uso de substância entorpecente.

A crítica parece procedente.

Diante da falta de critério objetivo na lei, a quantidade de drogas apreendidas e as circunstâncias da prisão- local supostamente conhecido como ponto de venda, atitude do preso diante da aproximação da polícia, entre outras- passaram a ser decisivas para definir se o autuado em flagrante delito deve ser indiciado como traficante ou tratado como usuário.

A esmagadora maioria dos processos instaurados tem como nascedouro a prisão em flagrante delito.

Infelizmente, não há trabalho de investigação e, assim, só se tem o auto de prisão em flagrante delito para a definição do tipo penal, o que, a toda evidência, conduz a conclusões, para dizer o mínimo, duvidosas.

A palavra do policial que deu a voz de prisão em flagrante, no mais das vezes, constitui a prova mais importante para se definir se o investigado é ou não traficante.

Uma vez definido que se trata de tráfico, outra questão se coloca e mais uma vez com precariedade de informações.

O preso deve ser indiciado como incurso no artigo 33, caput, da Lei 11.343/06 ou é admissível reconhecer a causa de diminuição prevista no § 4º?

A causa de diminuição de pena, impropriamente chamada de tráfico privilegiado, aplica-se a réu primário que não pertença a organização criminosa.

A intenção do legislador, certamente, foi diferenciar a conduta do gerente do tráfico do pequeno traficante, permitindo a este último pena mais leve.

Como é sabido, recentemente o Supremo Tribunal Federal editou súmula concedendo ao condenado por tráfico privilegiado o direito à pena restritiva de direito, o que, sem dúvida, representou uma evolução, eis que, antes da edição da súmula, não poucos magistrados de primeira e segunda instância aplicavam penas privativas de liberdade, mesmo reconhecendo a incidência do redutor

Sucede, no entanto, que a exigência da primariedade permite que os chamados “mulas” recebam penas desproporcionais.

Isto porque há entendimento jurisprudencial forte no sentido de que o redutor só pode ser aplicado a traficante eventual. Ora, o “mula”, embora peça sem grande importância no mundo do tráfico, por ser peça de fácil reposição, não é traficante eventual, pelo que acaba sendo punido com regime fechado, o que, claramente, não se justifica.

Pior: como a lei não estabelece critérios para se diferenciar o traficante do usuário, há vários julgados em que se reconhece a viabilidade do usuário, até para manter o vício, também se dedicar ao comércio ilícito. Ora, quem está nesta condição (traficante e usuário), dificilmente será primário eis que frequentemente será surpreendido trazendo consigo substância entorpecente.

Em verdade, o legislador, até agora, com pequenas modificações, optou pela repressão.

Se, de um lado, a opção pela punição não redundou em eficiência, de outra, não será a liberação do uso de maconha que vai aumentar o problema.

Para aqueles que sustentam que só a punição pode diminuir o consumo de drogas, não custa lembrar o que ocorreu com a indústria do fumo (droga lícita, é verdade, mas com poderoso lobby).

Faço parte de uma geração em que todos fumavam em lugares públicos (quem não se lembra como sofriam os não fumantes em aviões, restaurantes e até mesmo salas de aula?). Sem repressão, mas com políticas públicas sérias dando conta do grave risco à saúde que o fumo representa, a diminuição no hábito de fumar foi impressionante a ponto do fumante hoje se sentir constrangido.

Não se imagina que a liberação geral de todo tipo de droga seja defensável.

Ainda que se possa sustentar, como no caso da nicotina, que o uso de drogas deve ser combatido com políticas mais ligadas à área de saúde, inegável que a comercialização de drogas pesadas deve ser repelida pela legislação criminal, tarefa que deve ser exercida pelo Poder Legislativo e não pelo Supremo Tribunal Federal.

Diante deste quadro, já passou da hora de uma profunda modificação legislativa sem nenhum receio de vozes conservadoras. A omissão do Poder Legislativo incentiva o protagonismo do Supremo Tribunal Federal.

Cabe ao Poder Legislativo modificar a legislação e distinguir, com clareza o traficante (pernicioso e merecedor da reprimenda penal) do usuário. Em seguida, urge distinguir diversas condutas hoje tratadas de maneira uniforme, não sendo mais razoável que pequenos traficantes sejam tratados com rigor que deve ser reservado ao gerente do tráfico.

Em suma: ainda que se possa entender que o Supremo Tribunal Federal, ao descriminalizar o uso de maconha, invada área da alçada do Poder Legislativo, tal decisão em nada vai fomentar a violência.

Cabe ao Poder Legislativo, reconhecendo as imperfeições da legislação a respeito do tema, enfrentar a matéria de maneira realista e responsável.

O protagonismo do Supremo Tribunal Federal

Quando se discute o papel do Supremo Tribunal Federal, é muito comum se criticar o protagonismo de seus membros que, em suas decisões, de acordo com os críticos, invadem áreas de competência dos demais poderes da República.

Décadas atrás os nomes dos ministros do Supremo Tribunal Federal sequer eram conhecidos.

Nos dias de hoje, a cada aposentadoria de um ministro, inicia-se uma grande articulação, mais política do que jurídica, para a substituição.

Nas três últimas nomeações o presidente da República fez uma opção pessoal. Bolsonaro, sem nenhum pudor, deixou claro que, entre outros critérios, escolheria alguém com quem pudesse “tomar tubaína” e que fosse “terrivelmente evangélico”. Já Lula nomeou seu advogado pessoal.

Isso porque, diante da importância de cada um dos membros do Supremo Tribunal Federal, o chefe do Poder Executivo opta por alguém com quem tenha diálogo e, mais que isso, seja previsível nos votos dos casos de interesse do governo.

Em verdade, desde a promulgação da Constituição de 1988, o STF foi ocupando espaço ascendente na vida política do Brasil.

Felipe Recondo e Luiz Weber, em magnífico estudo (Os Onze, Companhia das Letras) procuram apontar as razões para essa ascensão e ponderam:

“Não há explicação simples para essa ascensão. A Carta de 1988 regulou inúmeros temas da vida brasileira, canalizando conflitos sociais para o STF, o tribunal com competência para interpretar, quando motivado, a letra da lei. A Constituição ainda abriu as portas do tribunal para que partidos políticos e organizações da sociedade civil questionassem, por meio das ‘ações diretas de inconstitucionalidade’, a constitucionalidade das leis, antes prerrogativas do procurador-geral da República – demissível pelo presidente. Ou seja, a Constituição alçou o Supremo à última arena das disputas políticas do país, uma Corte muito diferente do tribunal que os anos de ditadura militar apequenaram. As transformações não ocorreram de forma linear, nem decorreram apenas da nova Constituição. O Congresso aprovou leis que, ao reformarem o controle de constitucionalidade, aumentaram o poder de fogo do tribunal”.

Importante notar que os nomeados são vitalícios e nada garante que, ao longo dos anos, manterão suas tendências que impulsionaram a nomeação.
Basta lembrar que no julgamento do mensalão, o relator, ministro Joaquim Barbosa, decisivo para a condenação de vários dirigentes do PT, entre os quais o então todo poderoso José Dirceu, foi nomeado pelo presidente Lula.

A propósito, o ministro Alexandre de Moraes assumiu o cargo após a morte de Teori Zavascki, nomeado no breve mandato de Michel Temer. Na ocasião sua nomeação foi duramente contestada por partidários do PT, críticos de sua atuação como Secretário de Segurança do governo Geraldo Alckmin.

A atuação da polícia de São Paulo, no período em que Alexandre era o responsável pela pasta da segurança, no dizer de muitos petistas, criminalizava os movimentos sociais e muitas vezes não respeitava o direito de livre manifestação da classe trabalhadora. A expressão “polícia do Alckmin” era usada de maneira pejorativa por setores da esquerda ligados ao atual Presidente da República.

Ainda que hoje pareça incrível, a nomeação de Alexandre de Moraes por Michel Temer foi bem recebida pelos setores mais conservadores da sociedade, ao contrário do que ocorreu com os chamados progressistas. Em outras palavras, o exercício do cargo fez com que a visão sobre Alexandre de Moraes mudasse radicalmente.

Em verdade, o longo tempo de mandato de cada ministro faz com que, com o passar dos anos, cada ministro se distancie de quem o nomeou (alguém se lembra que o decano Gilmar Mendes foi nomeado por FHC?).

Como é sabido, os primeiros votos do ministro Zanin desagradaram vários segmentos da sociedade ligados ao Presidente que o nomeou. Certamente, daqui a uma década, assim como ocorre com Gilmar Mendes e FHC, será difícil se lembrar que Zanin foi nomeado por Lula.

Embora a classe política reclame do que se convencionou chamar de ativismo judicial, o Supremo foi crescendo porque não poucas vezes parlamentares, vencidos no Legislativo, começaram a levar ao Supremo demandas pendentes no Congresso, o que vale dizer que passaram a se utilizar da mais alta corte do país no campo da disputa política.

De outro lado, a competência originária do Supremo Tribunal Federal fez com que casos que causaram impacto- mensalão e petrolão são os melhores exemplos- fossem julgados em sessões televisadas com grande audiência. Importantes quadros políticos foram julgados e condenados pela cúpula do Poder Judiciário, o que ocasionou crítica descabida segundo a qual o Judiciário estava criminalizando a atividade política.

Importante destacar que até 2001 o STF só podia processar e julgar deputados e senadores se a Câmara e o Senado, respectivamente, tivessem autorizado e isso, raramente, ocorria. A propósito, o famigerado deputado Hildebrando Pascoal, acusado de liderar grupo de extermínio no Acre não foi julgado pelo Supremo. A Câmara, ao invés de autorizar o processo, preferiu cassar-lhe o mandato, pelo que, com a perda da prerrogativa de função, foi processado e condenado em primeira instância. Com a aprovação da emenda constitucional 35 houve importante inversão: o Supremo passou a ter competência para julgar sem autorização prévia. É certo que a Câmara e o Senado podem suspender o processo a posteriori, o que traz, sem dúvida, enorme custo político.

Feitas essas observações, fica claro que o protagonismo do Supremo tem como causa o texto da Constituição, o uso da própria classe política quando submete ao tribunal casos em que sua posição não prevaleceu e, finalmente, as inúmeras causas de competência originária da mais alta corte do país.

Ainda assim, mesmo não podendo se afirmar que o Supremo tenha dado causa ao seu excesso de visibilidade algumas ponderações devem ser feitas.

É preciso, em primeiro lugar, priorizar a ideia de que o Supremo Tribunal Federal, a exemplo do que ocorre na maioria das democracias, deve ser rápido e eficiente com competência prioritariamente constitucional.

Neste passo, caberia ao Supremo limitar o conhecimento dos casos que lhe são submetidos a apreciação.

Como é sabido, a nossa Constituição é criticada por ser muito extensa e por ser mais uma “carta de intenções” do que uma “carta de princípios”. Princípios extremamente amplos, como o da razoabilidade, por exemplo, no limite, permitem que a corte reveja decisões dos outros poderes.

Uma interpretação mais restrita dos casos de competência do Supremo Tribunal Federal traria, no meu sentir, mais segurança jurídica. Sucede, no entanto, que ninguém renuncia a poder pelo que, cada vez mais, o Supremo Tribunal Federal chama para si questões de duvidoso interesse constitucional.

Não bastasse a falta de clareza no estabelecimento dos limites ao “guardião da Constituição”, falta clareza nos poderes de cada um dos ministros. Há quem diga que temos onze supremos.

As liminares com efeito de decisão definitiva, os pedidos de vista muitas vezes protelatórios e a falta de um critério técnico para a definição da pauta de julgamento dão a cada membro da corte enorme dose de poder.

Não poucas vezes, os julgamentos são adiados com pedidos de vista com maioria já formada.

Para ficar apenas em um exemplo, o juízo de garantias, previsto no pacote anticrime, não foi introduzido até hoje muito em razão de liminar concedida pelo então presidente do Supremo e a não colocação do assunto em julgamento durante todo seu mandato.

Questionável também o tempo de mandato de cada um dos ministros. Com a aprovação da chamada PEC da Bengala, os ministros permanecem décadas no cargo, o que, sem dúvida, traz sérios inconvenientes quando o nomeado eventualmente não se mostrar preparado para o cargo.

Não se nega que, por quatro anos, vivemos momentos difíceis em que o Supremo Tribunal Federal teve atuação decisiva para a manutenção da ordem democrática e do Estado de direito.

A dívida existe.

Ainda assim, cabe ao Supremo Tribunal Federal uma reflexão sobre as críticas, cada vez mais frequentes e não necessariamente de inimigos da democracia, a respeito do excesso de protagonismo e excesso de poder.

A discussão é válida.

Juiz de garantias: o que está em discussão

Em fins de 2019, o Congresso Nacional aprovou com modificações um projeto de lei chamado pomposamente pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, de pacote anticrime, com importantes modificações em matéria penal, processual penal e de execuções criminais.

O objetivo do pacote, no dizer do governo, era implementar medidas mais duras para enfrentar o aumento da violência e corrupção no país.

Passados mais de dois anos, parece evidente que não houve diminuição significativa, seja da violência, seja da corrupção.

E nem poderia ser diferente.

Qualquer pessoa minimamente informada sabe que a simples mudança legislativa, ainda que bem redigida com a intenção de aumentar penas e criar mais tipos penais, não tem impacto significativo para a diminuição da criminalidade.

Apesar de todo o protagonismo do ministro Sergio Moro, duas opções do Congresso Nacional demonstraram sua perda de força e prestígio: a não permissão de prisão de réu condenado em segunda instância e a criação do juiz de garantias, reivindicação de boa parte da advocacia criminal com considerável rejeição das entidades de classe ligadas ao Poder Judiciário e Ministério Público.

A primeira questão, como ficou assentado, depende de emenda constitucional e, ao que parece, saiu de pauta, o que não deixa de ser estranho diante da nova composição do Congresso Nacional com aumento expressivo da chamada “bancada da bala”, apoiadores de Jair Bolsonaro.

Já a segunda questão, após um inexplicável silêncio do Supremo Tribunal Federal, voltou à baila.

Como é sabido, está em curso julgamento, adiado pelo pedido de vista do ministro Dias Toffoli, em que se julgará a constitucionalidade do juízo de garantias – o julgamento ocorrerá a partir de agosto, já com a presença do novo ministro Cristiano Zanin.

Em verdade, este único tema – constitucionalidade ou não – deveria ser o objeto do julgamento, não cabendo qualquer discussão sobre a sua conveniência, questão já decidida por quem de direito: o legislador.

Cabe aqui um rápido histórico: o ministro Sergio Moro sempre foi contra a criação do juiz de garantias por entender que retardaria o andamento do processo criminal e, consequentemente, traria indesejada impunidade.

Não por acaso, Moro solicitou o veto presidencial dos artigos que alteraram o Código de Processo Penal para a criação do juiz de garantias.

O pedido de Moro, já enfraquecido por suas desavenças com Bolsonaro e seus filhos, não foi atendido.

Com a ausência de veto, o processo legislativo foi integralmente cumprido: o Executivo encaminhou projeto que sofreu mudanças nas casas legislativas, sendo, afinal, sancionado pelo Presidente da República sem nenhum veto relevante ao que foi decretado pelo Congresso Nacional.

Em suma: o juízo de garantias – goste-se ou não – foi criado por quem tem legitimidade para tanto: o Poder Legislativo.

Poderia ter sido vetado e não foi.

Com o devido respeito, não vejo fundamento para o debate que ocorre hoje na mais alta corte do país. Insisto: não está em discussão se a criação do juiz da garantias é ou não medida acertada, eis que a questão já foi apreciada pelo legislador que deliberou pela sua criação. O que está em discussão é a constitucionalidade da lei na forma em que foi promulgada.

Como é sabido, o que Sergio Moro não conseguiu no Poder Executivo, obteve no Judiciário.

Medida liminar concedida monocraticamente pelo ministro Luiz Fux impediu a efetivação do juiz da garantias.

A decisão monocrática perdurou por anos e só agora, quase três anos depois, vai ser apreciada pelo plenário.

Em 28 de junho, o ministro Fux apresentou seu voto e, como não poderia deixar de ser, foi contrário ao juízo da garantias.

De acordo com o voto, o “juiz de garantias não passa de um nome sedutor para uma cláusula que atentará contra a concretização da garantia constitucional da duração razoável dos processos”.

O argumento, com a devida vênia, não convence.

A uma porque, ao chamar de “um nome sedutor” questão apreciada pelo Poder Legislativo, o ministro invade seara alheia e faz indevida crítica a matéria debatida por quem tem competência para tanto.

A duas porque parece contraditório se invocar o princípio da duração razoável do processo, após a manutenção da liminar por quase três anos – notícias dão conta que o julgamento em plenário só ocorre em razão da pressão de outros ministros.

Finalmente, a observação ignora experiência bem-sucedida em São Paulo com a existência do DIPO que, basicamente, exerce as funções que seriam da competência do juiz de garantias sem que se possa dizer que acarrete retardamento no andamento dos processos.

Não se nega que alguns tribunais em alguns Estados terão dificuldades materiais e até orçamentárias para a introdução do juiz de garantias. Bem por isso, já se fala em estabelecer em implementação gradual da medida.

O que não parece razoável é a não adoção da lei, não por sua suposta inconstitucionalidade, mas por falta de estrutura.

O mesmo argumento pode ser utilizado para qualquer lei que acarrete criação de novas estruturas. Cabe, aqui, lembrar a previsão constitucional audaciosa do Sistema Único de Saúdes que, obviamente, em um primeiro momento, foi considerada impraticável.

Aceitar a ideia de falta de estrutura para justificar a não implementação de norma legitimamente criada transforma o Poder Judiciário em juiz da conveniência da legislação aprovada.

O que está em julgamento é se a norma é ou não constitucional.

Qualquer análise sobre sua viabilidade ou conveniência importa em indevida invasão na atividade legislativa.

Com a palavra, o plenário do Supremo Tribunal Federal.

Liberdade de expressão versus regulação?

A tendência que predominou nas últimas décadas no ambiente cibernético foi a de isentar as plataformas digitais de responsabilidades jurídicas por serem, teoricamente, meras intermediárias de conteúdo gerados por terceiros.

No entanto, agora, diante da relevância do papel das chamadas big techs para a sustentabilidade do ambiente digital, passou a haver forte demanda social pela adoção de medidas capazes de mitigar os efeitos nocivos de alguns conteúdos, como campanhas dolosas de desinformação, crimes de ódio e instigação a homicídios, entre outros graves ilícitos, cibernéticos ou não.

liberdade de expressão nunca foi absoluta em democracia alguma no mundo. No Brasil, desde o Império, passando por todos os códigos penais que se sucederam até o ora vigente, a lei sempre criminalizou a injúria, a calúnia, difamação, a ameaça, a instigação e a apologia ao crime, entre outras formas de expressão verbal que afetam bem ou direito de outrem.

Também o discurso de ódio merece a atenção do Supremo Tribunal Federal pelo menos desde o início do século, com o julgamento do caso Ellwanger, condenado por racismo por divulgar ideias antissemitas e negar a existência do Holocausto judeu.

Mais recentemente, diversos países passaram a obrigar as plataformas a adotarem o que se convencionou chamar de devido processo informacional na moderação de conteúdo, cabendo citar como exemplo o Digital Millennium Copyright Act (EUA), Direito ao Esquecimento (União Europeia), NetzDG (Alemanha) e Digital Service Act (União Europeia).

O que se busca com essa nova forma de regulação é o estabelecimento de regras claras e medidas efetivas para moderação de conteúdo e comportamento dos seus usuários. Até porque a ausência de regra acaba criando aquilo que menos se deseja: um ambiente jurídico onde campeia o arbítrio, ou seja, onde o permitido e o proibido acabam ficando ao alvedrio e ao sabor dos humores da autoridade de plantão.

Não se trata, portanto, de criminalizar discursos que antes eram tolerados, restringindo a liberdade de expressão, mas sim de obrigar o estabelecimento de um regime de conformidade para o gerenciamento de conteúdo nocivo. Neste regime deve haver medidas como:

1 – Imediata eliminação de conteúdos explicitamente tipificados criminalmente, como racismo, terrorismo, instigação a suicídio, violência contra mulheres e ilícitos contra crianças e adolescentes, os quais devem ser tratados e removidos em até 24 horas pelas plataformas;

2 – Adoção de medidas visando melhor compreender conteúdo cuja nocividade seja duvidosa, preferencialmente franqueando a oportunidade de ampla defesa aos usuários;

3 – Existência de consultores e entidades externos a serem acionados para avaliação de casos mais complexos, dentro do instituto da autorregulação regulada —modelo já existente na Alemanha, por exemplo;

4 – Limitação de alcance do conteúdo e calibragem de algoritmos; vedação de utilização de contas inautênticas para práticas nocivas; avisos sobre a sensibilidade de determinados conteúdos; desestímulo financeiro, impedindo a monetização, suspendendo ou cancelando contas que servem para atividades ilícitas, entre outras providências.

Todas essas medidas devem ser periodicamente tornadas públicas pelas plataformas de forma precisa, transparente e detalhada para o devido escrutínio da sociedade, possibilitando que sobre elas possam se realizar pesquisas acadêmicas, auditoria e fiscalização do desempenho do devido processo informacional, tanto para se medir o eficiente combate ao discurso de ódio e à desinformação como para a própria proteção da liberdade de expressão.

A regulação não é inimiga dos direitos; a lei é o melhor remédio que já inventaram contra a desordem social e o arbítrio estatal. O desafio é como aprimorá-la para dela extrair a maior eficiência com o menor custo às nossas liberdades.

‘Mito’

Apesar de Jair Bolsonaro ser filho da velha política, o fenômeno bolsonarista não é. O fenômeno nasce a partir da ideia de “mito”, que em nada condiz com a do medíocre deputado federal que fora até 2018. É a ideia de “mito” que o catapulta ao posto mais importante da República.

Sucede que “mito é uma narrativa”, escreve o professor Everardo Rocha na sua contribuição para a coleção “Primeiros Passos”, da Editora Brasiliense, na década de 1980. Prossegue ele: “O mito não fala diretamente, ele esconde alguma coisa (…) O mito é uma coisa inacreditável, algo sem realidade, é uma mentira; sua verdade, consequentemente, deve ser procurada num outro nível, talvez outra lógica”.

Bolsonaro mais de uma vez se disse escolhido por Deus para presidir o Brasil. Os movimentos de cunho fascista costumam se ancorar nessa premissa. Usam termos que remetem a uma escolha divina, a um poder ancestral. Por isso seus líderes recebem designações como mito, “führer”, “duce”.

Em uma obra pouco conhecida (“Aspectos do Drama Contemporâneo”), que analisa aspectos psicológicos do fenômeno do nazismo na Alemanha, Carl Jung considera que a sociedade foi acometida por uma epidemia psíquica a partir do momento em que o inconsciente coletivo do povo alemão foi capturado por Hitler e seus asseclas.

Jung traça um perfil psicológico de Hitler, considerando-o uma manifestação simbólica do antigo deus germânico Wotan.

De fato, ninguém melhor do que um representante de Deus para conseguir dialogar com os demônios que a razão não consegue dominar. As formas racionais e pacíficas de solução de conflitos são encaradas como covardia e permissividade, típicas de um homem fraco, rendido às peias do comunismo cultural.

Daí a repulsa desses movimentos a tudo que vem da ciência e da razão. Tudo que tenta racionalizar e de alguma forma aplacar as manifestações puras que brotam da alma são tentativas de manipular a mente do povo.

Os movimentos fascistoides são contra o que Bolsonaro e seus seguidores gostam de chamar de “intelectualismo”. Preferem a superfície dos sentimentos primitivos às construções do pensamento filosófico que, ao longo dos séculos, sedimentaram os valores da civilização.

Em “Minha Luta”, Hitler atacava o bolchevismo judaico, ao mesmo tempo em que acusava os judeus capitalistas americanos de quererem dominar o mundo (uma cópia fajuta de “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, talvez a primeira fake news do mundo moderno). Ou seja, teses absolutamente contraditórias, que não operavam com a razão, nem com a lógica, e muito menos com a verdade, mas com o ódio ancestral do povo alemão pela imagem de um judeu medieval que só existia em seu inconsciente atávico. O judeu alemão era uma minoria insignificante, já em grande parte assimilada à sociedade alemã.

Bolsonaro toca no mesmo diapasão. Acusa empresários de globalistas por financiarem causas sociais e progressistas mundo afora —como é o caso de George Soros, mais de uma vez alvo de ataques de filhos do presidente em redes sociais.

Assim como a Alemanha e o mundo eram vítimas de um plano judaico para dominar o planeta, agora é a vez de progressistas —banqueiros ou sindicalistas, jornalistas ou políticos, não importa— serem acusados de usar métodos sub-reptícios para capturar todos os âmbitos da vida nacional. Vão se infiltrando na imprensa, nas universidades e nas escolas porque querem conquistar tudo com sua ideologia pagã. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

As pessoas tendem a achar que o que define o nazismo é Auschwitz. Auschwitz foi o nazismo levado às últimas consequências. O nazismo, como fenômeno político, pode se reproduzir em maior ou menor grau em outros momentos e outros lugares, ainda que sem a violência do nazismo alemão.

Se é verdade que a história se repete como farsa, Bolsonaro é o produto mais bem acabado dessa história —ou dessa farsa, se preferirem.

30 anos depois do Carandiru, o massacre continua

violência policial no Brasil é marcada pela normalização de sua letalidade e impunidade. Os fatos são eloquentes. No último dia 2 de agosto, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que prevê anistia aos policiais militares processados ou punidos pela atuação no assassinato de 111 presos na Casa de Detenção de São Paulo, em 2 de outubro de 1992 —o tristemente conhecido massacre do Carandiru.

A tramitação desse projeto é motivo de profundo pesar. Em vez da necessária atribuição de responsabilidades penais, tenta-se anistiar a barbárie. De autoria do deputado Capitão Augusto (PL-SP), o PL 2.821/2021 é uma aberração jurídica. Constata-se um uso desvirtuado da função legislativa para afrontar decisão do Poder Judiciário, sendo que, para piorar, o julgamento nem sequer foi concluído.

O menosprezo aos direitos humanos e às consequências de um dos mais sangrentos episódios da história brasileira, materializado no PL 2.821/2021, deve ser veementemente rechaçado. O projeto de lei conflita não apenas com a independência da Justiça, como também com o funcionamento do Estado democrático de Direito.

Classificando os policiais como “heróis” que “deveriam ser condecorados”, o parecer do deputado Sargento Fahur (PSD-PR) é um acinte com a verdade dos fatos e com a Constituição. No Estado democrático de Direito, não cabe louvor à prática premeditada de crimes contra cidadãos por parte de agentes do Estado. Não cabe chamar homicídio de “neutralização” ou carnificina de ação “bem-sucedida”.

O PL 2.821/2021 pretende reescrever um julgamento de competência do Poder Judiciário, numa inversão de valores e princípios. Deseja transmitir a mensagem de que chacinas e morticínios serão tolerados, perdoados e até comemorados. É necessário e urgente que se reafirme o respeito à Constituição, à divisão de Poderes da República e ao Estado democrático de Direito.

O IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) foi fundado em 1992, como reação ao massacre do Carandiru. Não se calará em sua luta pela observância dos direitos humanos no âmbito da segurança pública. É preciso avançar, não retroceder. É preciso interromper a normalização da violência policial.


Por Marina Coelho Araújo, Alberto Zacharias Toron, Fábio Tofic Simantob, Bruno Salles Pereira Ribeiro, Felipe Cardoso Moreira de Oliveira, Ester Rufino, Rafael Serra Oliveira, Renato Stanziola Vieira, Maria Carolina de Melo Amorim, Leonardo Palazzi e Vinícius Assumpção.

Venda de indulgências

É válido o decreto de indulto individual editado pelo presidente Jair Bolsonaro? Não, por alguns motivos.

Antes de mais nada, é verdade que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que não cabe ao Judiciário se imiscuir nas razões de política criminal sopesadas pelo presidente da República para editar o indulto coletivo. No entanto, essa decisão do STF tem pouca ou nenhuma aplicação ao indulto individual. Isso porque, diferentemente do indulto coletivo, o individual dificilmente decorre de uma política criminal que o Executivo espera ver implantada no país, como a de desopilar o sistema prisional soltando condenados por casos menos graves —hipótese que sempre inspirou os decretos de indulto no Brasil até o governo Bolsonaro, que praticamente acabou com a tradição de editá-lo na época do Natal.

O indulto individual, por ser personalíssimo, precisa conter um motivo muito relevante, que justifique a sua adoção, sob pena de se transformar em favores do rei a amigos, familiares ou aliados.

Peguemos o caso hipotético de um herói nacional, um esportista adorado pela população, que acaba condenado por um crime não infamante —um crime de trânsito, por exemplo, cuja pena terá de cumprir já em estado avançado de um câncer terminal. Parece haver um interesse coletivo e um clamor nacional pelo indulto.

Diferente do que fez Bolsonaro. O presidente indultou um aliado político que, assim como ele, tem disparado ameaças e incitado a violência contra os Poderes constituídos. E, pior, o fez numa tentativa de substituir o julgamento do STF pelo dele.

Ocorre que não cabe ao presidente da República dizer se uma conduta é ou não criminosa. Quem define o que é crime em abstrato é o Congresso Nacional por meio de lei. E quem define o que é crime no caso concreto é o Judiciário por meio de uma decisão judicial. Nenhum decreto de indulto pode pretender redefinir uma conduta considerada criminosa pelo Judiciário. Somente o Congresso poderia desconstituir a tipicidade penal de um fato pretérito, por meio da chamada “abolitio criminis” ou da anistia. O indulto não se presta a isso. O presidente deu uma anistia individual a fatos praticados pelo amigo e a alcunhou de indulto.

Por outro lado, quando a Constituição Federal garante a imunidade parlamentar por palavras e votos, não está isentando de pena qualquer palavra proferida pelo deputado ou senador. Um pedido de propina é feito com palavras e é crime. Uma ordem para a prática de um crime, um homicídio, por exemplo, é feita com palavras e é crime. O parlamentar está protegido penalmente por opiniões, mas não por palavras que transbordam o terreno da mera opinião e desembocam no pântano perigoso de crimes mais graves.

Por fim, a Lei de Segurança Nacional, editada no final da ditadura militar, não era totalmente antagônica à liberdade de expressão. Tanto que muitos dos crimes nela previstos foram realocados na recém-aprovada Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, delitos nos quais o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) foi dado como incurso.

Alguns crimes nela previstos eram inconstitucionais de fato e, felizmente, abolidos com a nova lei, como o de imputar crime ao presidente da República (calúnia). Pasmem, porém, pois foi justamente por este crime que o agora benevolente presidente da República requisitou dezenas de investigações criminais contra opositores.

Ou seja, com uma mão Bolsonaro usa a Lei de Segurança Nacional para perseguir opositores, enquanto com a outra anistia amigos a quem garante uma liberdade de expressão ilimitada.

É patente a afronta ao princípio da isonomia. É evidente que o presidente age por capricho pessoal e não por interesse público. Extrapola em muito o poder de indultar e se aproxima da prevaricação.

Quarentena eleitoral para juiz protege Judiciário

Não há democracia sem um Judiciário independente, alheio às tentações políticas. Com a tramitação no Congresso do chamado novo Código Eleitoral (Projeto de Lei Complementar 112/21), o Brasil dá um passo importante na direção de concretizar essa ideia.

Pela nova regra, juízes e promotores que desejam concorrer às eleições precisariam se desvincular de suas funções quatro anos antes do pleito. O mesmo se aplicaria a policiais e militares. O projeto não inventa propriamente a regra, mas amplia o tempo de “quarentena” obrigatória entre o desligamento do servidor público e o lançamento de sua candidatura.

O estabelecimento de quarentenas para carreiras públicas é uma estratégia de fortalecimento das instituições de Estado

O texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados e aguarda votação no Senado. Caso entre em vigor, o novo Código Eleitoral será uma importante ferramenta de proteção e fortalecimento da democracia brasileira.

Nosso ordenamento jurídico já prevê regras especiais para carreiras públicas ou de grande alcance popular (caso, por exemplo, de apresentadores de rádio ou TV), visando ao equilíbrio do processo eleitoral. Pelas regras hoje vigentes, servidores do Estado precisam se desligar de suas funções, ainda que temporariamente, para disputar cargos eletivos. Em muitos casos, um período de quarentena já é exigido.

Ocorre que, quando tratamos das carreiras do Judiciário, em especial daquelas ligadas diretamente ao Direito Penal, o que está em jogo vai muito além da garantia da competitividade leal em uma eleição. Trata-se de resguardar a própria segurança jurídica do Estado democrático, o que requer, portanto, cuidados adicionais.

Um operador do Direito não pode estar sujeito à tentação de fazer proselitismo político a partir de seu cargo. Não raro, uma decisão tecnicamente correta, amparada nos autos, é também aquela que desagrada à opinião pública. A independência necessária ao trabalho de juízes e promotores decorre justamente do fato de que sua atuação está sujeita a critérios legais, não de popularidade.

Se permitirmos, no entanto, que decisões judiciais possam eventualmente catapultar carreiras políticas, estaremos contribuindo para corromper essa independência. Se permitirmos que juízes e promotores usem a caneta para atender à opinião pública, teremos ótimos juízes e promotores no Parlamento, mas não nas carreiras onde eles devem estar. Mais do que a lisura do processo eleitoral, põe-se em risco uma série de garantias constitucionais, bases de qualquer sistema democrático. A regra da quarentena para juízes, promotores e demais servidores busca justamente evitar esse risco.

Note-se ainda que o próprio exercício da magistratura, sem que consideremos qualquer violação ética ou normativa, já fere o princípio da paridade de armas em uma disputa eleitoral, dadas as potenciais repercussões das decisões emitidas pelos tribunais. A relevância social do trabalho do juiz, somada ao potencial destaque midiático que suas sentenças podem receber, cria, por definição, uma vantagem indevida no processo eleitoral.

Logo, a regra da quarentena não coloca “sob suspeita” todos os servidores indiscriminadamente, como alegam alguns críticos. Ao contrário, ela reconhece que apesar da conduta ilibada da enorme maioria dos juízes e promotores do país, há algo nas carreiras jurídicas que é essencialmente incompatível com o ambiente político e que, portanto, precisa ser resguardado pelo Código Eleitoral. Por outra, a regra existe não apenas para coibir exceções, garantindo o bom funcionamento do Poder Judiciário, mas também para impedir que os pleitos sejam marcados por competições inevitavelmente desiguais.

No mais, cumpre lembrar que o projeto em tramitação no Senado não impede o acesso dessas categorias à carreira política, apenas impõe um limite mínimo de tempo entre o abandono da toga e o lançamento da candidatura. Pode-se discutir alguns de aspectos do texto – o prazo de quatro anos, por exemplo, é tido por alguns como excessivo -, mas parece evidente que ele representa um avanço na legislação eleitoral brasileira.

Por fim, há que se comentar o contexto político em que a regra da quarentena para membros do Judiciário foi incluída no projeto de reforma do Código Eleitoral. A Operação Lava-Jato teve impacto gigantesco no cenário eleitoral brasileiro, além de ter alçado membros do Judiciário a carreiras políticas de destaque. O ex-juiz Sérgio Moro, membro mais destacado da operação, deixou a magistratura para iniciar imediatamente uma carreira política, ocupando brevemente o Ministério da Justiça do governo Jair Bolsonaro.

Além disso, elegemos em 2018 um número quatro vezes maior de policiais e militares para a Câmara e o Senado na comparação com o pleito anterior – categorias que também seriam incluídas, a princípio, na nova regra da quarentena. Não há dúvida, pois, de que o momento histórico brasileiro ajudou a determinar, ou pelo menos a acelerar, a tramitação do novo Código Eleitoral pela Câmara dos Deputados

No entanto, é incorreto supor que a regra da quarentena representa uma espécie de “revanche” de parte da classe política contra certos grupos de oposição ou candidaturas. Isso porque, caso aprovado, o novo Código Eleitoral só entrará em vigor em 2026, ou seja, daqui a duas eleições, sem qualquer impacto sobre o atual tabuleiro político.

Espera-se que os senadores retomem essas discussões e entendam que o estabelecimento de quarentenas eleitorais para certas carreiras públicas, especialmente no caso da magistratura, é uma estratégia de fortalecimento das instituições de Estado.

A caneta do juiz ou do promotor não pode jamais se transformar em ferramenta política. Proteger a independência do Poder Judiciário é proteger a própria democracia brasileira.