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Tribunal do Júri, esse ilustre desconhecido
Nos anos 1930, em uma pequena cidade mineira, dois irmãos foram acusados da morte de um caminhoneiro. Sob tortura, confessaram o crime.
Levados a júri, foram absolvidos; os jurados farejaram o cheiro de arbitrariedade policial. O Tribunal de Justiça, porém, não aceitou o veredito e os mandou a novo júri.
Os jovens foram levados a novo julgamento e novamente absolvidos. Neste meio-tempo, um decreto editado pelo ditador Getúlio Vargas acabava de vez com a soberania do júri, de modo que o Tribunal de Justiça agora podia não apenas cassar o veredito como ele mesmo decidir a culpa dos réus.
Escolheu-se a segunda opção, e os irmãos foram condenados a longos anos de cadeia. Alguns anos depois, um deles já havia morrido em um asilo, como indigente, após lhe ter sido concedido o livramento condicional —e eis então que a vítima aparece viva, em carne e osso.
O caso dos irmãos Naves é até hoje um dos mais conhecidos erros judiciários da história brasileira. O erro foi cometido pela Justiça técnica três vezes: não só pelo tribunal que cassou a decisão do júri e depois condenou, mas também pelo juiz que autorizou o caso ir a júri (em decisão chamada sentença de pronúncia).
Mais do que isso, o erro jurídico teria sido evitado se aos jurados fosse dado o poder de julgar arbitrariamente contra as provas ou a evidência dos autos.
Quando se maldiz a instituição do júri, acusando-a de arbitrária —conforme o artigo “Abaixo o Tribunal do Júri”, do colunista Hélio Schwartsman, publicado nesta Folha em 29 de dezembro último—, na verdade se critica sua maior virtude.
A possibilidade de o júri decidir sem apoio na prova, se for para absolver, não é um fardo a suportar em nome da soberania, mas a sua própria razão de ser. E, como corolário desta soberania, a absolvição proclamada pelo júri não pode ser censurada pelas cortes togadas.
Nos EUA, esta é uma regra de ouro. A Quinta Emenda da Constituição estadunidense prevê que “ninguém terá sua vida ou integridade física submetida a risco duas vezes em razão dos mesmos fatos”. É a garantia do “no double jeopardy”.
No Brasil, o Código de Processo Penal, dos anos 1940, admite a cassação dos vereditos populares contrários à prova dos autos, o que sempre foi motivo de crítica de setores da doutrina e da academia. Em 2008, com a reforma parcial do código, introduziu-se um quesito obrigatório que deve ser formulado ao jurado: “O jurado absolve o réu?”.
Decorreu daí nova polêmica: se é dado ao jurado a oportunidade de absolver independentemente do caso e das teses sustentadas (o quesito é obrigatório sempre), é possível censurar a decisão absolutória do júri sem ferir sua soberania?
É o que está em discussão no julgamento do recurso extraordinário nº 1.225.185-MG. Se o STF decidir a favor da soberania do júri, estará, embora com décadas de atraso, oxigenando uma das instituições mais democráticas que o direito já foi capaz de criar —e que erra sim, como todos os juízes humanos.
Há Estados democráticos sem a instituição do júri, mas dificilmente veremos o funcionamento de um júri popular soberano em Estados antidemocráticos.