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O crime de lavagem de dinheiro na operação “lava jato” e o caso Lula
A operação “lava jato” cometeu arbítrios e ilegalidades que já foram por diversas vezes apontadas por professores, advogados e especialistas.
O excesso acusatório é traço distintivo bastante visível nessa operação. O MPF operou com manifesto bis in idem em diversos casos. Houve casos em que, embora de forma disfarçada, puniu-se duas, em alguns até três vezes a mesma conduta, sob o pretexto de configurarem tipos penais autônomos.
No entanto, é sem dúvida no crime de lavagem de dinheiro que o bis in idem — ou a dupla ou tripla incriminação — se mostra ainda mais manifesto.
Há grande debate jurisprudencial em torno do que é lavagem. O desafio dos tribunais tem sido, porém, menos definir o que é lavagem, e muito mais distinguir o que não é lavagem.
Coube ao STF papel preponderante nos contornos e limites ao tipo legal, definindo ineditamente, por exemplo, que as diversas formas de usufruir do patrimônio ilícito por si só não configura lavagem, mas mero exaurimento do crime antecedente (HC 80.816, relator ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 18 de junho de 2001). Depois, no julgamento da Ação Penal 470, ao proclamar que não configura lavagem os atos dissimulados utilizados para receber a vantagem indevida no crime de corrupção (caso do deputado João Paulo Cunha).
Tal entendimento foi completamente desvirtuado na “lava jato”. Na 7ª fase da operação, conhecida como juízo final, diversos executivos de empresas foram acusados por lavagem de dinheiro, pela conduta de celebrar contratos de fachada com empresas do doleiro Alberto Youssef, valores em seguida transferidos a agentes públicos como pagamento de propina.
A um leigo pode parecer óbvia ou até intuitiva a ocorrência de lavagem. Mas no Direito nem tudo que é óbvio ou intuitivo é o certo. Do contrário, a Justiça poderia ser feita por qualquer um, e não por juristas. Nem nos países que consagram a instituição do júri a lei subtrai da análise de juristas o exame de questões eminentemente jurídicas.
Para afirmar, pois, que a celebração de tais contratos com Youssef configura lavagem de dinheiro, é preciso primeiro demonstrar que os valores objeto dessa operação financeira são produto de crime antecedente. Lavagem é por definição legal aquilo que se faz com o produto do crime antecedente. Sem um crime anterior que tenha produzido bens ou valores, pode haver outros crimes, falsidade ideológica, corrupção, mas não lavagem.
A tese então que passou a vigorar com sucesso na 13ª Vara do Paraná foi a de que os valores transferidos a Alberto Youssef eram produto dos crimes praticados contra a Petrobras, cartel, fraude à licitação, peculato…
A opção remanescente seria ainda mais absurda, a de que o crime antecedente seria a própria corrupção, tese bem mais difícil de emplacar, já que a etapa da operação que o MPF considerava caracterizadora da lavagem era muito anterior ao momento em que os valores foram efetivamente entregues ao agente público.
No entanto, tampouco os crimes contra a Petrobras, cartel, fraude à licitação e peculato poderiam ser considerados antecedentes à lavagem. E nem pretendo entrar na questão de que tais crimes nunca chegaram a ser objeto de acusação contra alguém, embora até fosse argumento relevante.
A questão que nos interessa neste momento é quanto à natureza dos valores que as empresas de engenharia receberam da Petrobras, mesmo considerando a hipótese de serem valores superfaturados (muito embora, frise-se, a acusação por peculato nunca tenha sido formulada).
A lavagem é processo que se leva a efeito com a finalidade de conferir ao proveito do crime proteção patrimonial que, em razão da clandestinidade dos recursos, não pode ser obtida por meio dos instrumentos oficiais da economia formal. Se o recurso já ingressa de forma oficial, qual seria a lavagem?
São pressupostos essenciais da lavagem a clandestinidade dos recursos e o caráter oficial ou lícito que se queira atribuir a eles.
Ou seja, não se lava o que já está limpo. Não se oficializa o que já é oficial. Não se pode confundir dinheiro ilícito ou recebimento indevido de valores com dinheiro sujo, clandestino, que precisa passar pelo processo de lavagem para ser incorporado à economia formal.
Ninguém cogita, nem o MPF, que as empresas desejavam por meio dos contratos celebrados com Youssef — ou outros com atividade semelhante — esconder, escamotear, dissimular ou ocultar os valores recebidos da Petrobras.
Seria até absurda essa suposição, pois esses valores já eram oficiais e não precisavam ser lavados, eram usados para pagar funcionários, fornecedores, despesas gerais. Então todas as operações financeiras feitas com esses valores configuram lavagem? Nem o mais xiita dos acusadores chegou a sustentar tal hipótese.
Na verdade, os contratos fictícios eram forma de fazer a propina sair da empresa sem chamar atenção, para que depois, num segundo momento, pudessem chegar ao agente público.
Logo, não visavam lavar valores provenientes de crime antecedente contra a Petrobras, mas dissimular os atos preparatórios do crime posterior de corrupção, o que faz toda a diferença para efeito de tipicidade da lavagem. É que não há lavagem de crime que ainda não se consumou ou, no caso da corrupção, não teve seu exaurimento verificado.
Ou melhor, propina só pode ser lavada depois que entra na esfera de disponibilidade do agente corrompido.
É o que afirmou com precisão a ministra Rosa Weber no julgamento da Ação Penal 470:
“… o ato configurador da lavagem há de ser, a meu juízo, DISTINTO E POSTERIOR à disponibilidade sobre o produto do crime antecedente” (STF, AP 470, voto Minª. ROSA WEBER, fls. 52.880, do v. acórdão do julgamento da ação penal).
No caso do ex-presidente Lula, a acusação considerou, em síntese, que a corrupção teria se consumado com a aceitação de oferta que seria em algum momento materializada com transferência de um apartamento triplex em Guarujá (SP).
Falso ou verdadeiro — não importa para efeito deste artigo —, fato é que o acórdão do STJ parte da premissa de que o apartamento nunca foi efetivamente passado para o nome do ex-presidente, o que levou o STJ a entender que, por esse motivo, estaria configurado também o crime de lavagem.
Pela intelecção do acórdão, ao manter o apartamento em nome de terceiro, os réus estariam ocultando ou dissimulando a propriedade de bem fruto de crime, no caso, a própria corrupção.
A premissa do acórdão então é que o imóvel, embora prometido por empresa envolvida no escândalo da Petrobras, não chegou a ser transferido, ou seja, continuou em nome da empresa.
Se isso é verdade, não teria havido o próprio exaurimento do crime de corrupção, isto é, não houve por parte do ex-presidente recebimento de bem ou valor, mas, no máximo, uma suposta aceitação de promessa de entrega de bem, ou usufruto da posse, mas não acréscimo patrimonial.
O próprio acórdão chega a reconhecer que “estivesse em seu nome o apartamento (…) não seria possível cogitar do crime de lavagem”. Veja-se então o paradoxo: se a suposta corrupção tivesse avançado um pouco mais, e o imóvel sido efetivamente transferido ao ex-presidente, este estaria livre do crime de lavagem, mas, como parou na mera promessa, responde então por ambos os crimes. Não parece fazer sentido, data máxima vênia.
Ao rebater a tese de bis in idem levantada pela defesa, aduziu o voto do ministro Felix Fischer:
“Nos crimes de corrupção, cabe recordar, o efetivo pagamento sequer é essencial ao tipo penal. Nesta conjugação de balizas, é impensável admitir-se, como regra geral, que ao ato — posterior, autônomo e sem necessária relação com o antecedente — tendente a ocultar ou dissimular a origem ilícita de dinheiro já incorporado ao patrimônio do agente seja mero exaurimento da corrupção (p. 91)”.
O acórdão tem razão quando diz que, para a configuração da corrupção, não é preciso haver a efetiva incorporação da vantagem no patrimônio do agente público. A corrupção se consuma com a mera aceitação da vantagem.
O mesmo, porém, não se aplica ao crime de lavagem, como inclusive já teve a oportunidade de observar Pierpaolo Bottini nesta ConJur (“Análise do conceito de lavagem de dinheiro na condenação de Lula”, publicado em 5 de março de 2018).
O crime de lavagem não se compadece de meras formalidades, ficções ou virtualidades. Enquanto não há o efetivo recebimento material de bem ou valor produto de crime antecedente, não há o que ser lavado, há apenas uma expectativa de receber a propina. Como então falar em lavagem de bem que nunca saiu do patrimônio da empresa acusada de oferecer a vantagem indevida?
O próprio voto acima citado reconhece que, para que se possa cumular lavagem e corrupção, é preciso que, após o recebimento da propina, haja ato posterior e autônomo, praticado com a finalidade de dissimular ou ocultar a origem de bem já incorporado ao patrimônio do agente beneficiado pela corrupção.
Mas que ato posterior e autônomo seria este se o próprio acórdão admite que o agente público não chegou a receber o imóvel, que sequer saiu da esfera patrimonial da empresa acusada de oferecer a propina? Até porque, vale lembrar, para haver lavagem, é preciso ter havido recebimento material de bens, valores ou recursos, o que não ocorre com a mera posse ou usufruto de imóvel.
Seria até mesmo hipótese de crime impossível pela impropriedade do objeto. Vale dizer, é impossível lavar o produto de propina que ainda não ingressou na esfera de disponibilidade do agente público.
Em suma: como falar em lavagem da propina sem que tenha havido o exaurimento (pagamento) da corrupção?
A lógica consagrada no acórdão é a de que configura lavagem o fato de alguém prometer entregar imóvel como propina e não transferir a propriedade ao agente público. Ou seja, a mensagem transmitida do ponto de vista da política criminal é a pior possível, é a de que seria preferível receber logo a propina do que não receber, e ficar na mera promessa, ou na expectativa de recebimento.
Chama a atenção no referido precedente não haver muita clareza de qual seria o crime antecedente. Pois, em outra passagem do acórdão ora analisado, extrai-se o seguinte argumento:
“Demais disso, constatou-se a ocorrência de operações de compensação entre contas de diferentes empresas (…) como forma de repassar as vantagens indevidas e dificultar o rastreamento dos valores ilícitos. Isso por si só, caracteriza a técnica de lavagem por mera movimentação, intitulada mescla, como destacado em razões finais do órgão de acusação” (p. 91).
Pelo que se deflui do trecho acima, a lavagem aqui já não teria mais consistido na dissimulação da propriedade do imóvel, mas, sim, em movimentações financeiras e contábeis simuladas que precedem a corrupção.
Neste tópico, o acórdão considera que configuram lavagem os atos utilizados para fazer a suposta propina chegar até o beneficiário.
Os atos dissimulados praticados pela contabilidade da empresa podem configurar crimes autônomos, como falsidade, ou até corrupção, mas não lavagem de dinheiro de uma corrupção futura.
O voto proferido pelo ministro Jorge Mussi foi ainda mais além no sentido de proclamar que não é possível nem preciso demonstrar o nexo de causalidade entre o produto do crime antecedente e o bem ou valor sob apuração, quando se trata de bem fungível como dinheiro. A assertiva, de largada, provoca alguma confusão, porque neste ponto já não se sabe mais se o acórdão considera produto do crime dinheiro ou imóvel.
Deixando este pormenor de lado, há de qualquer forma interpretação equivocada do delito de lavagem. Para efeito de lavagem, a operação de dissimulação ou ocultação deve ocorrer sempre sobre o “mesmo bem ou sobre o mesmo dinheiro”, e não sobre “qualquer dinheiro”.
Pensemos na seguinte situação: A recebe propina de B em dinheiro no Brasil e guarda debaixo do colchão. A, porém, precisa dividir a propina com C, outro agente público, e resolve transferir de uma conta declarada no exterior a parte de C, que a recebe em conta também declarada no exterior. Houve lavagem do dinheiro recebido em espécie no Brasil? Parece que não. O dinheiro “sujo” continua “sujo” no Brasil, de forma idêntica à de quando foi recebido. Não houve nexo causal entre o produto do crime e a operação econômica subsequente capaz de lhe alterar alguma qualidade.
Intérprete mais açodado poderia se ver tentado a dizer: “Claro que há lavagem, pois a jurisprudência brasileira considera que compensação de valores entre mantidos no Brasil com contas no exterior por meio de operação de câmbio pode, em tese, configurar lavagem”.
Sim, mas basta reler o exemplo usado no parágrafo anterior para perceber que naquele caso específico não houve utilização do dinheiro recebido como propina no Brasil para efetivar qualquer operação de câmbio (tipo dólar-cabo).
Se os valores tivessem sido entregues a um doleiro aqui para que fizesse a transferência no exterior, seria lavagem. Mas não foi o que ocorreu no exemplo citado.
Os valores recebidos em espécie não foram usados na operação internacional.
O exemplo bem mostra como é fundamental o nexo causal entre o ato que se quer chamar de lavagem e o efetivo produto do crime antecedente.
Para Godinho, “é indispensável demonstrar tal efectiva proveniência [do produto do crime antecedente], não bastando apurar que o agente manipulou bens cuja origem lícita não resulta clara”[1].
O festejado autor argentino Raúl Cervini é taxativo também a esse respeito:
“El vínculo entre el bien que se pretende legitimar y el delito prévio ES ESENCIAL PARA LA CONFIGURACIÓN DEL LAVADO” (CERVINI, Raúl et alli. El delito de blanqueo de capitales de origen delictivo. Cuestiones dogmáticas y político-criminales. Córdoba: Alveroni Ediciones, 2008, p. 38).
Para Gustavo Badaró, celebrado professor da Universidade de São Paulo, “no caso de produto indireto da infração antecedente, a relação de causalidade entre o produto ilícito apto a ser lavado e sua origem infracional é condição necessária”[2].
Sendo assim, a dificuldade de estabelecer relação de causalidade entre valores produto de crime e o ato que se quer inquinar de lavagem não permite condenação pelo crime acessório, sob pena de violação da cláusula do in dubio pro reo.
Por qualquer ângulo que se examine a questão, o precedente do STJ ora em comento definiu como lavagem de dinheiro hipótese que claramente não se enquadra nas figuras típicas da Lei 9.613/98, seja porque não se pode falar em lavagem da propina sem exaurimento (pagamento) da corrupção, seja porque os crimes praticados contra empresa estatal já são oficiais, não têm como ser lavados, representam no máximo benefício ilícito, distinção fundamental, que torna inapropriado cunhar o termo lavagem para designar a movimentação financeira feita com tais valores, introduzidos desde sempre, por essência, na economia formal, seja ainda porque não se pode falar em lavagem sem demonstração do nexo causal entre o bem que se pretende legitimar e a prática de crime prévio ou antecedente.