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Liberdade de expressão versus regulação?
A tendência que predominou nas últimas décadas no ambiente cibernético foi a de isentar as plataformas digitais de responsabilidades jurídicas por serem, teoricamente, meras intermediárias de conteúdo gerados por terceiros.
No entanto, agora, diante da relevância do papel das chamadas big techs para a sustentabilidade do ambiente digital, passou a haver forte demanda social pela adoção de medidas capazes de mitigar os efeitos nocivos de alguns conteúdos, como campanhas dolosas de desinformação, crimes de ódio e instigação a homicídios, entre outros graves ilícitos, cibernéticos ou não.
A liberdade de expressão nunca foi absoluta em democracia alguma no mundo. No Brasil, desde o Império, passando por todos os códigos penais que se sucederam até o ora vigente, a lei sempre criminalizou a injúria, a calúnia, difamação, a ameaça, a instigação e a apologia ao crime, entre outras formas de expressão verbal que afetam bem ou direito de outrem.
Também o discurso de ódio merece a atenção do Supremo Tribunal Federal pelo menos desde o início do século, com o julgamento do caso Ellwanger, condenado por racismo por divulgar ideias antissemitas e negar a existência do Holocausto judeu.
Mais recentemente, diversos países passaram a obrigar as plataformas a adotarem o que se convencionou chamar de devido processo informacional na moderação de conteúdo, cabendo citar como exemplo o Digital Millennium Copyright Act (EUA), Direito ao Esquecimento (União Europeia), NetzDG (Alemanha) e Digital Service Act (União Europeia).
O que se busca com essa nova forma de regulação é o estabelecimento de regras claras e medidas efetivas para moderação de conteúdo e comportamento dos seus usuários. Até porque a ausência de regra acaba criando aquilo que menos se deseja: um ambiente jurídico onde campeia o arbítrio, ou seja, onde o permitido e o proibido acabam ficando ao alvedrio e ao sabor dos humores da autoridade de plantão.
Não se trata, portanto, de criminalizar discursos que antes eram tolerados, restringindo a liberdade de expressão, mas sim de obrigar o estabelecimento de um regime de conformidade para o gerenciamento de conteúdo nocivo. Neste regime deve haver medidas como:
1 – Imediata eliminação de conteúdos explicitamente tipificados criminalmente, como racismo, terrorismo, instigação a suicídio, violência contra mulheres e ilícitos contra crianças e adolescentes, os quais devem ser tratados e removidos em até 24 horas pelas plataformas;
2 – Adoção de medidas visando melhor compreender conteúdo cuja nocividade seja duvidosa, preferencialmente franqueando a oportunidade de ampla defesa aos usuários;
3 – Existência de consultores e entidades externos a serem acionados para avaliação de casos mais complexos, dentro do instituto da autorregulação regulada —modelo já existente na Alemanha, por exemplo;
4 – Limitação de alcance do conteúdo e calibragem de algoritmos; vedação de utilização de contas inautênticas para práticas nocivas; avisos sobre a sensibilidade de determinados conteúdos; desestímulo financeiro, impedindo a monetização, suspendendo ou cancelando contas que servem para atividades ilícitas, entre outras providências.
Todas essas medidas devem ser periodicamente tornadas públicas pelas plataformas de forma precisa, transparente e detalhada para o devido escrutínio da sociedade, possibilitando que sobre elas possam se realizar pesquisas acadêmicas, auditoria e fiscalização do desempenho do devido processo informacional, tanto para se medir o eficiente combate ao discurso de ódio e à desinformação como para a própria proteção da liberdade de expressão.
A regulação não é inimiga dos direitos; a lei é o melhor remédio que já inventaram contra a desordem social e o arbítrio estatal. O desafio é como aprimorá-la para dela extrair a maior eficiência com o menor custo às nossas liberdades.